Bruno Walter Caporrino
Originalmente publicado em minha coluna Filosofias Selvagens do Portal Heráclito - http://www.portalheraclito.com.br/index.php/materias/filosofias-selvagens/783/na-terra-das-vacas-sagradas.html
Re-publicado no portal da Rede Eclesial Pan-Amazônica, Repam, em janeiro de 2018: http://signis.org.br/repam/noticias/articulista/26-01-2018/na-terra-das-vacas-sagradas-elas-valem-muito-muito-mais-do-que-as-vidas-de-guarani-kaiowa
*Créditos da imagem: bricolagem
de Bruno Walter Caporrino
Nós sabíamos que ia acontecer,
porque já vivíamos isso há muito, muito tempo. Meus avós e meus bisavós viveram
isso. Sabíamos que chegaria a esse ponto, mas não que seria assim. O ápice
aconteceu da pior forma possível: consagrou o início da nova era sem
surpreender a quem quer que fosse, porque a verdade é que já vivíamos essa era
desde o início das eras desta terra – desde que tem esse nome. O que me leva a
pensar, ou melhor, sentir, então, que houve “um ápice”, se se trata de algo que
sempre vivemos? Nunca fora de outro modo...
Penso nisso, diariamente, quando
torro o café que sobreviveu e observo a nuvem de urubus que oblitera o céu
fumarento e cinéreo. Espanto as moscas que em profusão assolam meu rosto e
clamo a deus, se acaso algum houver, que me leve logo daqui.
Meu nome é Nício. Nício
Ideltrudes Guarani Kaiowá, assim, no RG. Sou o último remanescente vivo de meu
povo e só estou vivo, acredito, por não me encaixar nos padrões que o povo do
Brasil tem do que é ser índio. Por não parecer índio, já que, para eles, ser é
parecer. Essas rugas que sulcam meu rosto, os dentes que me faltam e as
auréolas branco-leitosas que tomam meus olhos por causa do diabetes; talvez os
cabelos crespos e o nariz achatado, de negro, foram traços herdados de meus
pais, que por sua vez herdaram de meus avós, que, por sua vez, herdaram dos
pais e avós de seus pais e dos pais e avós daqueles com quem trocaram esposas e
maridos durante o genocídio da Guerra do Paraguai. Talvez por isso fui avistado
duas vezes desde os últimos acontecimentos, e ninguém ainda me matou.
Se há algo de que me recordo em
minha mais tenra infância é das caminhadas, longas e dolorosas, pelas estradas
poeirentas e escaldantes, entre uma retomada e outra, entre um acampamento e
outro. O medo, presente em cada um dos segundos de minha terrena existência, só
não é maior do que a dor de ter visto e ouvido meus parentes e conhecidos, meus
semelhantes, agonizarem, um a um, até encontrarem Yvy marã e'y, a Terra sem
Mal.
Quando as ondas de suicídio
tomaram nossas comunidades ilhadas no oceano de soja, agrotóxico, violência e
medo; enquanto os aviões davam rasantes em nossas barracas de lona aspergindo
agrotóxico sobre nós, eu me recolhia, maracá nas mãos, o mais perto possível de
meu avô, pajé Inácio. Quando meus primos e irmãos se enforcaram, e suas mães
choravam até arrancar os cabelos sobre seus túmulos improvisados, agredindo-os,
culpando-os, a fim de que suas almas não desejassem mais voltar; quando seus
corpos eram enterrados em terras nossas que nunca pudemos chamar de nossas, com
os rostos virados para baixo, a fim de que encontrassem o caminho certo à Terra
sem Mal – eu me agarrava à meu avó.
Quando as balas voaram por cima
de nossas casas e roçados, zunindo, e no meio da nuvem de poeira vi todos
caírem esvaindo-se em sangue enquanto os faróis das caminhonetes nos cegavam e
a poeira que havia subido secava sob o banho de sangue, urinei-me e, tremendo, só
percebi que meu avô havia partido, juntamente com todos, quando seu corpo
esfriou.
Restamos apenas Naldo e eu.
Amedrontados, corremos para o meio da infinita plantação de soja que nos
rodeava, à procura da capoeira onde, fazia muito tempo, ou nos enforcávamos ou
nos enterrávamos, até que o clarão nos assustou e, abraçados, caímos no meio do
plantio, aos prantos. Ardendo em chamas, a pequena capoeira, uma ilha de
árvores de dois hectares aspergida pelo napalm da Monsanto financiado com
recursos públicos, do BNDES pelo Plano Safra, simplesmente explodiu. O estrondo
foi tão alto, devido à quantidade de agrotóxico inflamável, que a concussão que
se seguiu nos derrubou. Foi quando caímos.
Erramos à procura dos
acampamentos vizinhos e pranteamos, um a um, os incontáveis cadáveres de nossos
parentes baleados, atropelados, calcinados juntamente com a cana das usinas,
até que, desesperados, famintos e sedentos, encontramos a família de Géssica,
com quem ficamos mais tempo. Nos refugiamos sob a lona preta perfurada a bala
de sua modesta morada provisória, enquanto a fumaça negra dos canaviais trazia
para nossos peitos a chuva de fuligem incandescente que divertia as crianças –
delas é, definitivamente, a Terra sem Mal. O pai de Géssica, pajé Ivair, já o
dizia, enquanto as observava.
Até que a Polícia Federal, em
quem confiávamos até então, começou a nos caçar. Primeiro foi Genoveva: dois
tiros nas costas, quando cruzava a rodovia para pegar um pouco da água
pestilenta na vala da estrada. Isaac vomitava sangue: há muito tinha câncer,
que ele, dos mais idosos, atribuía a feitiço ou resultado do mau viver a que
fomos condenados. Os caciques, mortos. As mulheres, estupradas. As crianças
calcinadas não saíam de nossas cabeças e, quando a sede aumentava, eu pensava
em correr para o meio da plantação e abrir a boca para beber o napalm que caía
dos aviões, propriedade particular dos senhores desses oceanos de terra e que
foram comprados com dinheiro público do Plano Safra.
Há muito já vivíamos assim. Mas
até então essas ações eram ilegais, e alguns xamãs dos não índios vinham fazer
perícias: tiravam fotos, abriam nossos corpos, levavam os ossos queimados para
laboratórios e diziam que faziam isso para apurar o que acontecera e prender os
culpados. Mas esses xamãs obedeciam a seus caciques, que, de posse de caras
gravatas e relógios, fazem assembleias na imensa casa de reunião deles, aquela,
com as duas cuias, uma virada de cabeça para cima e outra, de cabeça para
baixo. As balas passaram a sumir dos relatórios desses xamãs: mas eles ainda
vinham, só que para provar que nós é que estávamos atirando ou agredindo o dono
da fazenda. Assim também aconteceu com os juízes.
Então, o que vinha acontecendo,
virou... não sei dizer. Oficial? Legal, talvez? Depois do atropelamento de
Gerson, Kleiciane, Nádio, Almir, todos os líderes, um a um, passou a ser lei:
quem atropelasse um boi ou uma vaca deveria responder a inquérito policial e
pegava detenção de 10 a 30 anos. Foi então que, milagrosamente, nossos poucos
parentes vivos passaram a ser atropelados na estrada. A lei, celebrada em
Dourados com rodeio e fogos por mais de uma semana, dizia ainda que quem
atropelasse um de nós ganhava indenização e reforma do carro, e o prefeito e o
governador anunciaram que dariam um prêmio de R$5.000 por cabeça, oriundos do
Fundo de Apoio à Soberania Nacional – que criaram para nos exterminar, com o
dinheiro que recebem da Europa, da China e dos Estados Unidos pela soja e pela
carne que esses poucos caciques dos não-índios, esses pouquíssimos homens que
possuem terras do tamanho de países, extirpam de nessas terras e lhes entregam
baratinho em nome da soberania nacional.
Os xamãs dos não-índios passaram
a dizer que os projéteis encontrados nos corpos de nossos parentes atropelados
milagrosamente deveriam ter aparecido em seus corpos por ingestão: diziam que
comíamos as balas de chumbo e as carregávamos em nossos corpos por toda nossas
vidas.
Muitos foram atropelados. Myriam,
Athaíde, Naelson. Quantos? Não recordo os nomes: quero que fiquem em paz em seu
caminho para a Terra sem Mal, já que não pudemos enterrá-los. Naldo foi o
último. Ardendo nossas barrigas em febre de fome, flechamos um bezerro da
fazenda do deputado que, depois fui saber, tem o tamanho do Paraguai. O mesmo
deputado que gritava nos jornais que tem muita terra para pouco índio, quando
fazíamos alguma tentativa de retomada de nossas terras. Eu disse à Naldo que
era perigoso matar o bicho: esse gado todo é de propriedade privada um homem
só, mas foi comprado com dinheiro público, então o governo viria atrás de nós.
Mas a fome falou mais alto.
Naldo foi se aliviar, depois de
comermos o bezerro com aqueles que ainda restavam de nós, quando duas caminhonetes
estacionaram, faróis acesos; ouvi zunirem balas e apaguei. Acordei com o sol
alto, coberto de moscas e sangue em meio à fumaça de nosso acampamento em
desordem e, rastejando até a estrada, vi o grupo de homens que esperava a
Polícia Rodoviária para receberem seus prêmios por terem atropelado as 26
pessoas da comunidade. “Índio só anda bêbado, o senhor sabe, oficial. Estavam
todos deitados na pista e, quando vimos, estávamos em cima. Agora, me diga, vai
demorar para recebermos o prêmio e consertarmos as caminhonetes?”, disse um,
quando a viatura encostou.
Fui embora, sangrando, até
encontrar esta casa abandonada, onde estou há semanas. As fazendas são tão
grandes que duvido que me encontrem aqui. Observo os urubus e rezo para Nhanderu
vir me buscar; sonho com a Terra sem Mal enquanto, sozinho, reflito e ideias
vêm à minha mente: lembro de uma professora da Pastoral que deu aulas para nós
em um dos nossos acampamentos. Ela disse que quando os portugueses chegaram
aqui, acharam que estavam nas Índias. Erraram o caminho. Nos chamaram de
índios.
Um dia, estava em Dourados e vi
na televisão que na Índia as vacas são sagradas. Só então percebi: no Brasil,
nas Índias Ocidentais, as vacas e bois são sagrados – valem mais do que vidas
humanas. Valem muito, muito mais do que as vidas de Guarani Kaiowá.
Chove: de novo, as pequenas
gotas esverdeadas com forte cheiro de vômito e urina. Vi na TV, muito tempo
atrás: chuva ácida. As telhas de amianto da casa estão furadas. Vou ao meio do
campo gretado, seco, duro, rachado, vazio: abro a boca, e espero por minha
passagem para Yvy marã e'y, pois cansei dessa Yvy vai, dessa terra imperfeita –
deixo-a para as vacas, essas que aqui são sagradas.
Bruno Walter Caporrino
Manaus, 2017
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