.

.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Na terra das vacas sagradas

Na terra das vacas sagradas 
                                                                Bruno Walter Caporrino

Originalmente publicado em minha coluna Filosofias Selvagens do Portal Heráclito http://www.portalheraclito.com.br/index.php/materias/filosofias-selvagens/783/na-terra-das-vacas-sagradas.html


*Créditos da imagem: bricolagem de Bruno Walter Caporrino

Nós sabíamos que ia acontecer, porque já vivíamos isso há muito, muito tempo. Meus avós e meus bisavós viveram isso. Sabíamos que chegaria a esse ponto, mas não que seria assim. O ápice aconteceu da pior forma possível: consagrou o início da nova era sem surpreender a quem quer que fosse, porque a verdade é que já vivíamos essa era desde o início das eras desta terra – desde que tem esse nome. O que me leva a pensar, ou melhor, sentir, então, que houve “um ápice”, se se trata de algo que sempre vivemos? Nunca fora de outro modo...

Penso nisso, diariamente, quando torro o café que sobreviveu e observo a nuvem de urubus que oblitera o céu fumarento e cinéreo. Espanto as moscas que em profusão assolam meu rosto e clamo a deus, se acaso algum houver, que me leve logo daqui.

Meu nome é Nício. Nício Ideltrudes Guarani Kaiowá, assim, no RG. Sou o último remanescente vivo de meu povo e só estou vivo, acredito, por não me encaixar nos padrões que o povo do Brasil tem do que é ser índio. Por não parecer índio, já que, para eles, ser é parecer. Essas rugas que sulcam meu rosto, os dentes que me faltam e as auréolas branco-leitosas que tomam meus olhos por causa do diabetes; talvez os cabelos crespos e o nariz achatado, de negro, foram traços herdados de meus pais, que por sua vez herdaram de meus avós, que, por sua vez, herdaram dos pais e avós de seus pais e dos pais e avós daqueles com quem trocaram esposas e maridos durante o genocídio da Guerra do Paraguai. Talvez por isso fui avistado duas vezes desde os últimos acontecimentos, e ninguém ainda me matou.

Se há algo de que me recordo em minha mais tenra infância é das caminhadas, longas e dolorosas, pelas estradas poeirentas e escaldantes, entre uma retomada e outra, entre um acampamento e outro. O medo, presente em cada um dos segundos de minha terrena existência, só não é maior do que a dor de ter visto e ouvido meus parentes e conhecidos, meus semelhantes, agonizarem, um a um, até encontrarem Yvy marã e'y, a Terra sem Mal.

Quando as ondas de suicídio tomaram nossas comunidades ilhadas no oceano de soja, agrotóxico, violência e medo; enquanto os aviões davam rasantes em nossas barracas de lona aspergindo agrotóxico sobre nós, eu me recolhia, maracá nas mãos, o mais perto possível de meu avô, pajé Inácio. Quando meus primos e irmãos se enforcaram, e suas mães choravam até arrancar os cabelos sobre seus túmulos improvisados, agredindo-os, culpando-os, a fim de que suas almas não desejassem mais voltar; quando seus corpos eram enterrados em terras nossas que nunca pudemos chamar de nossas, com os rostos virados para baixo, a fim de que encontrassem o caminho certo à Terra sem Mal –  eu me agarrava à meu avó.

Quando as balas voaram por cima de nossas casas e roçados, zunindo, e no meio da nuvem de poeira vi todos caírem esvaindo-se em sangue enquanto os faróis das caminhonetes nos cegavam e a poeira que havia subido secava sob o banho de sangue, urinei-me e, tremendo, só percebi que meu avô havia partido, juntamente com todos, quando seu corpo esfriou.

Restamos apenas Naldo e eu. Amedrontados, corremos para o meio da infinita plantação de soja que nos rodeava, à procura da capoeira onde, fazia muito tempo, ou nos enforcávamos ou nos enterrávamos, até que o clarão nos assustou e, abraçados, caímos no meio do plantio, aos prantos. Ardendo em chamas, a pequena capoeira, uma ilha de árvores de dois hectares aspergida pelo napalm da Monsanto financiado com recursos públicos, do BNDES pelo Plano Safra, simplesmente explodiu. O estrondo foi tão alto, devido à quantidade de agrotóxico inflamável, que a concussão que se seguiu nos derrubou. Foi quando caímos.

Erramos à procura dos acampamentos vizinhos e pranteamos, um a um, os incontáveis cadáveres de nossos parentes baleados, atropelados, calcinados juntamente com a cana das usinas, até que, desesperados, famintos e sedentos, encontramos a família de Géssica, com quem ficamos mais tempo. Nos refugiamos sob a lona preta perfurada a bala de sua modesta morada provisória, enquanto a fumaça negra dos canaviais trazia para nossos peitos a chuva de fuligem incandescente que divertia as crianças – delas é, definitivamente, a Terra sem Mal. O pai de Géssica, pajé Ivair, já o dizia, enquanto as observava.

Até que a Polícia Federal, em quem confiávamos até então, começou a nos caçar. Primeiro foi Genoveva: dois tiros nas costas, quando cruzava a rodovia para pegar um pouco da água pestilenta na vala da estrada. Isaac vomitava sangue: há muito tinha câncer, que ele, dos mais idosos, atribuía a feitiço ou resultado do mau viver a que fomos condenados. Os caciques, mortos. As mulheres, estupradas. As crianças calcinadas não saíam de nossas cabeças e, quando a sede aumentava, eu pensava em correr para o meio da plantação e abrir a boca para beber o napalm que caía dos aviões, propriedade particular dos senhores desses oceanos de terra e que foram comprados com dinheiro público do Plano Safra.

Há muito já vivíamos assim. Mas até então essas ações eram ilegais, e alguns xamãs dos não índios vinham fazer perícias: tiravam fotos, abriam nossos corpos, levavam os ossos queimados para laboratórios e diziam que faziam isso para apurar o que acontecera e prender os culpados. Mas esses xamãs obedeciam a seus caciques, que, de posse de caras gravatas e relógios, fazem assembleias na imensa casa de reunião deles, aquela, com as duas cuias, uma virada de cabeça para cima e outra, de cabeça para baixo. As balas passaram a sumir dos relatórios desses xamãs: mas eles ainda vinham, só que para provar que nós é que estávamos atirando ou agredindo o dono da fazenda. Assim também aconteceu com os juízes.

Então, o que vinha acontecendo, virou... não sei dizer. Oficial? Legal, talvez? Depois do atropelamento de Gerson, Kleiciane, Nádio, Almir, todos os líderes, um a um, passou a ser lei: quem atropelasse um boi ou uma vaca deveria responder a inquérito policial e pegava detenção de 10 a 30 anos. Foi então que, milagrosamente, nossos poucos parentes vivos passaram a ser atropelados na estrada. A lei, celebrada em Dourados com rodeio e fogos por mais de uma semana, dizia ainda que quem atropelasse um de nós ganhava indenização e reforma do carro, e o prefeito e o governador anunciaram que dariam um prêmio de R$5.000 por cabeça, oriundos do Fundo de Apoio à Soberania Nacional –  que criaram para nos exterminar, com o dinheiro que recebem da Europa, da China e dos Estados Unidos pela soja e pela carne que esses poucos caciques dos não-índios, esses pouquíssimos homens que possuem terras do tamanho de países, extirpam de nessas terras e lhes entregam baratinho em nome da soberania nacional.
Os xamãs dos não-índios passaram a dizer que os projéteis encontrados nos corpos de nossos parentes atropelados milagrosamente deveriam ter aparecido em seus corpos por ingestão: diziam que comíamos as balas de chumbo e as carregávamos em nossos corpos por toda nossas vidas.

Muitos foram atropelados. Myriam, Athaíde, Naelson. Quantos? Não recordo os nomes: quero que fiquem em paz em seu caminho para a Terra sem Mal, já que não pudemos enterrá-los. Naldo foi o último. Ardendo nossas barrigas em febre de fome, flechamos um bezerro da fazenda do deputado que, depois fui saber, tem o tamanho do Paraguai. O mesmo deputado que gritava nos jornais que tem muita terra para pouco índio, quando fazíamos alguma tentativa de retomada de nossas terras. Eu disse à Naldo que era perigoso matar o bicho: esse gado todo é de propriedade privada um homem só, mas foi comprado com dinheiro público, então o governo viria atrás de nós. Mas a fome falou mais alto.

Naldo foi se aliviar, depois de comermos o bezerro com aqueles que ainda restavam de nós, quando duas caminhonetes estacionaram, faróis acesos; ouvi zunirem balas e apaguei. Acordei com o sol alto, coberto de moscas e sangue em meio à fumaça de nosso acampamento em desordem e, rastejando até a estrada, vi o grupo de homens que esperava a Polícia Rodoviária para receberem seus prêmios por terem atropelado as 26 pessoas da comunidade. “Índio só anda bêbado, o senhor sabe, oficial. Estavam todos deitados na pista e, quando vimos, estávamos em cima. Agora, me diga, vai demorar para recebermos o prêmio e consertarmos as caminhonetes?”, disse um, quando a viatura encostou.

Fui embora, sangrando, até encontrar esta casa abandonada, onde estou há semanas. As fazendas são tão grandes que duvido que me encontrem aqui. Observo os urubus e rezo para Nhanderu vir me buscar; sonho com a Terra sem Mal enquanto, sozinho, reflito e ideias vêm à minha mente: lembro de uma professora da Pastoral que deu aulas para nós em um dos nossos acampamentos. Ela disse que quando os portugueses chegaram aqui, acharam que estavam nas Índias. Erraram o caminho. Nos chamaram de índios.

Um dia, estava em Dourados e vi na televisão que na Índia as vacas são sagradas. Só então percebi: no Brasil, nas Índias Ocidentais, as vacas e bois são sagrados – valem mais do que vidas humanas. Valem muito, muito mais do que as vidas de Guarani Kaiowá.

Chove: de novo, as pequenas gotas esverdeadas com forte cheiro de vômito e urina. Vi na TV, muito tempo atrás: chuva ácida. As telhas de amianto da casa estão furadas. Vou ao meio do campo gretado, seco, duro, rachado, vazio: abro a boca, e espero por minha passagem para Yvy marã e'y, pois cansei dessa Yvy vai, dessa terra imperfeita – deixo-a para as vacas, essas que aqui são sagradas.

Bruno Walter Caporrino
Manaus, 2017 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Todo comentário será bem vindo. Serão publicados os comentários embasados em informações sólidas, e que contribuam para o debate, privilegiando bom-senso e moderação sem abrir mão da crítica.