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segunda-feira, 20 de maio de 2019

Natureza morta: isso não é uma alegoria


Natureza morta: isso não é uma alegoria

Consideraçoes sobre a exposição “Deriva – ambiente surreal” do artista plástico amazonense Cássio José da Silva
Bruno Walter Caporrino

Muito se costuma falar acerca do termo surreal. Cunhado por André Breton (1896-1966) em 1924, o termo simboliza o movimento estético e filosófico que transpõe para o campo das artes plásticas o que de mais aprimorado a psicanálise promovia no campo das reflexões acerca do inconsciente. O movimento espraiou-se por manifestações na literatura, fotografia, cinema e, claro, artes plásticas.
O teor de incoerência impingido às peças de Salvador Dalí (1904 - 1989) e Pablo Picasso (1881-1973), por exemplo, permitiu o câmbio entre os estatutos de verdade propagados pelos regimes de exceção e totalitários que tomavam o ocidente à época bem como a promoção da reflexão humanística a respeito de seu devir face às atrocidades que então se cometia.
Surreal acabou virando um conceito difundido e, portanto, acabou perdendo parte de seu poder semântico e filosófico. Mas não é o caso do emprego que lhe dá o excelente artista plástico Cássio José da Silva. Nascido em Canutama, interior do estado do Amazonas, o artista mora em Manaus e se divide entre o árduo ganha-pão de pedreiro, que lhe toma quase todo o tempo disponível e a pintura.
Tive a honra de conversar detidamente com este homem esplêndido durante a vernissage de sua contundente exposição, no dia 18 de maio. Sediada na Casa das Artes (Largo de São Sebastião, Manaus) a exposição foi sabiamente intitulada Deriva – Ambiente surreal e apresenta dez (das sonhadas e já planejadas 250) telas do pintor.
Cássio José da Silva pinta com tinta acrílica (sobre telas que ele mesmo confecciona, assim como parte das molduras) como quem pensa: e posso afirmar sem adulação alguma que se trata de um excelente e afiado pensador.
A proposta dessas dez telas é, estética mas sobretudo epistemologicamente, política. Engana-se quem pensa que política consiste nos comezinhos e mormente espúrios movimentos de camarilha que ocorrem no oceano do sistema partidário; engana-se quem pensa que política é apenas uma seção da vida humana, dissociada de tudo o mais, e engana-se ainda mais quem pensa que política seria apenas aquele rebuliço que assola nossa ameaçada democracia de quatro em quatro anos: por política resgato, aqui, seu sentido primevo e original, qual seja, a arte de viver na polis, a arte de viver em sociedade, equacionando conflitos, tomando decisões e assumindo responsabilidade civil por elas. Cidadania, se preferirem.
Em sua exposição, Cássio José da Silva nos brinda com fragmentos, ou melhor, estilhaços, de um mundo que se esfacela. Vaticinante, sua arte nos solapa o cômodo apoio (muleta?) fornecido pelas (meias)verdades tão propagadas sobre meio-ambiente, sustentabilidade e Amazônia ao mesmo tempo em que retoma, com a fúria e o fôlego necessários, a boa, velha e infelizmente esquecida discussão acerca da função social da arte. E isso me fez respeitá-lo e admirar sua arte de uma maneira incrível: Cássio José tem uma mensagem, e esta mensagem é muito bem fundamentada, solapando alegorias. Por isso me decidi a escrever sobre sua obra: porque essa mensagem tem que ser pontuada, frisada, alardeada.
Se desejam uma resenha sobre a exposição, feita esta introdução, aqui a temos. Sabemos que Cássio José da Silva é um amazonense que detém, sobre a Amazônia e sobre o Amazonas, vasto conhecimento – de causa. Sabemos que é pedreiro de profissão e que se dedica à arte como se dela não pudesse desguiar-se (tal qual todo artista vocacionado ao sucesso). Sabemos, ademais, que é autodidata.
Associando todos esses aspectos, qualquer leitor de fora da Amazônia faz, sozinho, os cálculos rotulatórios inconscientes, quase que automaticamente: “trata-se de um artista plástico amazonense e autodidata. Logo, nos apresentará cenas prosaicas e coloridas da vida ribeirinha, com maior ou menor apelo aos traços indígenas, mais ou menos estereotipados, juntamente com alguns exercícios de retratação pictórica de doces paisagens com paranás e bucólicas casinhotas flutuantes. Ou, se não isso, talvez se arrisque a abstrair um pouco do pictorialismo e produza algumas alegorias nas quais um grande pirarucu enrola-se (dependendo da habilidade representativa do artista) nas pernas de um caboclo estereotipado com chapéu de palha enquanto este o zagaia. Talvez, algum arroubo de abstração, brincadeiras com formas geométricas, e, bem, isso é tudo”.
Ledo engano, caras leitores e caros leitores. O que Cássio José da Silva nos traz é arte e, portanto, questionamento. Não o questionamento vazio e raso das gritas diuturnas que ecoam por galerias mundo afora, mas sim um questionamento muito embasado acerca do que são Amazônia, sustentabilidade e, por isso mesmo, política, atualmente. Cássio José apresenta questões. E essa é a função social da arte.
As telas de Deriva – ambiente surreal coadunam-se. Dialogam de maneira harmônica entre si, perfazendo um conjunto coeso de narrativas ou criptogramas: todas as telas conversam entre si de modo que, percorrendo a sala, pode-se construir um conto ou crônica ao interpretar cada uma e ir re-fazendo a ordem, como no ousado romance O jogo da amarelinha do argentino Julio Cortázar (1914-1984).
As telas perfazem um conjunto coeso entre forma e função, mostrando que o artista leu Le Corbusier com a mente, não com os olhos, pois em sua arte a forma segue a função: em Deriva a mensagem motiva a perspectiva, o arranjo dos elementos em cena está submetido ao roteiro e este é submetido à moral que o artista deseja impingir às telas. Como deve ser.
A poética de Cássio José da Silva impressiona porque não é vã como as rememorações para-inglês-ver que, infelizmente, solapam a produção artística da, na, pela, sobre e para a Amazônia, e cuido que esse foi o aspecto de sua obra que mais me apaixonou. Silva rompe os paradigmas alegóricos sobre a Amazônia, que agrilhoam tantos e tantos artistas que a ela se dedicam (e aí me incluo, por um bom tempo).
Me recordo, respeitosamente, de trechos da respeitável obra de Astrid Cabral (1936), Herculano Marcos Inglez de Souza (1853-1918) e de João Nogueira da Mata (1909-1991) sempre que reflito a esse respeito: são bons exemplos desta tendência, que cuido racional e afetiva, em produzir uma literatura sobre a Amazônia só porque é produzida na Amazônia, mas de maneira quase que obrigatória. Nascestes na Amazônia? Deves escrever ou pintar sobre ela, pois.
Recordo de conhecidos que se mostraram decepcionados quando Miltom Hatoum lançou o primeiro livro de sua trilogia, o Noite de espera. “Então a história se passa no sudeste e em Brasília?”, ouvi muitas pessoas lamentarem, com visível esgar de decepção que traía o enunciado oculto: “se ele é de Manaus, como que escreve sobre algo que se passa em Brasília e não na Amazônia?”.
Essa “obrigatoriedade” pode advir da confluência de dois fatores: de um lado, a percepção de que a Amazônia representa, de seu mais concreto cauxi nas roupas brancas ao mais abstrato tropos epistêmico da alteridade em sua manifestação máxima, em uma grande e perturbadora incógnita, um universo desconhecido e prenhe de significados, significância: uma floresta de signos.
Por outro lado, há ainda o fato de que estando em províncias tão afastadas dos centros produtores e consumidores de arte, como Rio de Janeiro e, obviamente, a Europa, tais artistas se viram, historicamente, obrigados a lançar mão do trunfo que é ser amazônida, estar na Amazônia, gozar de experiencias e material únicos, inéditos, que certamente encontram no público boa clientela e nas editoras interesse.
Compreensível, este movimento (pelo qual eu mesmo passei, tão logo pude realizar o sonho tão ansiado de cá perder-me para só então me achar) acaba, contudo, traindo a Amazônia e interpondo uma contradição em termos, porque mormente se produz sobre a Amazônia uma arte que toma a Amazônia de verdade, real, concreta, pelo estereótipo que dela fazem justamente aqueles que nada dela conhecem. Gato por lebre ou, pior, gato por maracajá, nos deixamos todos enlear com menor ou maior grau pelo assédio alegórico, como se, por sermos brasileiros, nos sentíssemos obrigados a só compor sambas e só cozinhar feijoadas, já que é isso que os não-brasileiros intuem que façamos o tempo todo.
O resultado é uma literatura prenhe de contos e crônicas eivados de “lendas e mitos”, infinitas versões sobre mitos indígenas deturpados (porque desatrelados da matriz epistemológica que os engendra e que seu sentido, como todo mito, é instanciar) e uma arte plástica pictórica e epistemologicamente comprometida em reproduzir a alegoria que os que não estão na Amazônia desejam ver sobre ela produzida. Botos estando para feijoadas assim como... caipirinha demais.
Daí os quadros com mulheres indígenas sensualizadas, com seios e redondas coxas à mostra, em poses sensuais, banhando-se ao luar, que assolam as peixarias para turistas. Essa produção pode ter muito valor se tomada não como narrativa, mas como objeto. E é a isso que tenho me dedicado: em investigar como a produção artística sobre a Amazônia reitera pressupostos muito comodamente assentados no imaginário popular sobre a Amazônia e acaba refém, por conseguinte, de uma reprodução de artefatos que realizem, personifiquem, a cada obra, essa suíte de signos pela epistemologia ocidental imposta à Amazônia.
Há aqui, em meu percurso, alguns pressupostos. O primeiro deles é que “a Amazônia” consiste em uma abstração, ela mesma artefato, produzida no plano do discurso pelos agentes que operam o idioma epistemológico ocidental. Grosso modo, é como se o pensamento ocidental, ordenado como é, fornecesse aos indivíduos algoritmos pré-formatados com os quais pensar a Amazônia.
Algo como: “Amazônia = exótico, natureza, índios, rios, peixes, floresta, água, caboclo”. “Natureza = lenda, mito, índio, floresta, recursos, riqueza, fragilidade, inferior, proteção, preservação, involuído, primitivo, inculto, simples, domesticável, cru”. “Cultura = ciência, conhecimento, arte, evolução, evoluído, superior, religião, pensamento, reflexão, tecnologia, progresso, avanço, desenvolvimento, sabedoria”. Esses conjuntos de signos e valores, orquestrados como são pelas feições do regime de conhecimento ocidental, gravitam em torno da clássica e, infelizmente ainda não superada, polaridade que é o mito fundador da episteme moderna: natureza versus cultura ou, hierarquicamente, cultura versus natureza (e a ordem dos fatores é, aqui, fundamental).
Assim como uma língua, estes signos e valores se inter-relacionam de maneira sistêmica, de modo que o discurso consiste em manifestações peculiares destas possibilidades todas. Portanto, muito da arte que se produz na ou sobre a Amazônia fica refém deste campo simbólico e, infelizmente, até certo tempo, desta polaridade cultura versus natureza. Pensemos a arte como discurso, narrativa, e as peças como manifestações dos cálculos que os artífices fazem com os termos fornecidos pelo sistema.
Observando a grande narrativa acerca dos povos ameríndios, por exemplo, percebe-se que eram ora vistos como puros descendentes de Deus vivendo em convívio harmônico num Éden tardio e, portanto, tidos como puros e sábios habitantes da floresta dotados de sabedoria e espiritualidades ancestrais; ora vistos como aberrações, fósseis vivos, primitivos incultos e selvagens a quem se deve ou civilizar, levando o progresso, ou exterminar, os habitantes amazônidas são, até hoje, jogados para lá e para cá entre estes tropos. À sua total revelia.
E não foi diferente no campo (privilegiado para tal análise) das artes plásticas e da literatura. Como mencionei, a obrigatoriedade em produzir uma arte sobre a Amazônia ainda foi associada ao tributo adicional de realizar peças artísticas que funcionassem como discursos que reiteravam mitos sobre a Amazônia.
A produção artística que se ocupou da Amazônia esteve e ainda está, infelizmente, muito presa à alegoria. James Clifford, em seu sublime A autoridade etnográfica (Clifford, 2008) nos brinda com a percepção de que alegoria provém do grego allos (“outro”) + agoreuein (falar). A alegoria seria uma espécie de representação que interpreta a si mesma em função da interpretação que se faz do Outro ou, melhor, de como os outros nos interpretam. Estando em um nível acima da interpretação, alegorias consistiriam num manejo quase inconsciente dos signos que o sistema fornece a uma sociedade, espaço privilegiado para observarmos como cada grupo se observa a si mesmo sob a ótica que faz dos outros.
Nesse sentido, é com grande pesar no coração que me sinto obrigado a publicizar um enunciado que sempre me vem à mente quando vejo algumas coisas que se produz na e a partir da Amazônia: como num grande festival de Parintins, parece que a produção amazonense assume para si mesma o papel de versar, sobre si mesma, para os outros, e segundo os termos, critérios, parâmetros e signos que os outros têm sobre nós.
O Nós, Amazônia, nas artes, acaba perpassando por um exercício quase antropofágico (e aí é muito rico) de deglutição do real pela boca sedenta de alteridades pre-formatadas dos Outros. Amazônia, Amazônia, ecoam as toadas cantadas por belas morenas em sumários trajes, ornadas por plumas coloridas, numa exaltação de uma semana da mesma amazoneidade que sua vida fora do evento do Boi consiste em negar: morar na beira é coisa de índio, índio é tudo primitivo, não é porque sou manauara que seja primitiva e analfabeta como esses índios...
Discurso e prática se negam complementarmente no campo desta grande ficção que é produto da narrativa da identidade: a depender do contexto, os atores manejam positivamente as alegorias que os outros entalham sobre amazoneidade. Durante o Boi, a alegoria é engendrada de maneira eufórica: assumir para si a identidade amazônida é motivo de orgulho, exceto quando um grupo de investidores japoneses que visita a Zona Franca interessado em investir pergunta a esse mesmo secretário de infra-estrutura, responsável tanto pelo Boi quanto pela Zona Franca, se seus antepassados são indígenas: “não não, sou civilizado, rapaz. Está achando que somos tudo bugre? A gente sabe fazer fábricas aqui, ninguém é índio não”. E a alegoria solapa e oblitera qualquer reflexão mais profunda. Mas é assim que o mecanismo identidade funciona mesmo, em todo canto.
O fato é que uma grande toada, sobre fantasias plumárias espalhafatosas e carros alegóricos, permeia a nossa produção e, por favor, não ousem suspeitar que para um antropólogo comparar arte ao festival de Boi Bumbá de Parintins seja um exercício de crítica à arte (isso pressuporia que o festival não é arte, e não é o caso). Ser índio, pode: um determinado estereótipo, e apenas em determinadas ocasiões. Pensar como índio, fazer política como índio, produzir ciência e pensamento como índio: isso não.
Apenas, minha tese é que a produção artística da Amazônia é refém, em grande parte, de uma alegoria que consiste em uma discursividade reflexiva muito rica e, sobretudo, muito instigante quanto pensada sob a perspectiva da antropofagia ameríndia e do perspectivismo ameríndio: predar o Outro implica em transmutar de perspectiva ao mesmo tempo em que, todo aquele que preda está sujeito a deixar-se predar (ou seja, mudar de perspectiva). Ou seja, no universo ameríndio, Eu sempre é um Outro – todos os outros.
Isso é um problema quando falamos de artes plásticas e de literatura porque são práticas cuja função é produzir reflexão e crítica, pois em muitos casos essas peças como os infinitos contos “a lenda do boto”: escrever sobre o boto com seriedade, só Engrácio e Márcio Souza lograram, este último levando muito a sério o teor mitológico do material que lhe serve de matéria prima para a sua arte e, por isso mesmo, Arte.  
Os gigantes Márcio Souza, com seu surrealismo panfletário que se equilibra tão criticamente entre a crítica e o realismo fantástico, e Miltom Hatoum, chegaram à literatura amazonense para romper com este paradigma que intitulo “da obrigatoriedade” e da alegoria. A obra de Márcio Souza é um grande manifesto acerca da função social da arte e perfaz um repertório de ensaios sobre a história, a economia e, sobretudo, a sociologia amazônida como nenhuma outra, tratando a mitologia como ela deve realmente ser tratada por um artista: boto é bom para pensar, não para comer, já diria Lévi-Strauss.
Dito isso, Deriva – ambiente surreal de Cássio José da Silva consiste numa dessas belas e tão preciosas rasteiras epistemológicas nas alegorias “para inglês ver” que tanto esperamos: rompendo os cânones estéticos impostos historicamente à produção amazônida, Cássio José da Silva dá um nó nos meandros semânticos que os signos insistem em dar na mente de qualquer expectador de fora. Qualquer um que imagine telas com bucólicas casinhas e mulheres sensualizadas (Amazônia = natureza = fêmea = domável/violável/inoculável) quebra a cara diante de dez telas que contam com beleza brutal a saga da beleza amazônida em meio à brutalidade que a história da colonização lhe impõe desde o primeiro minuto.
Cássio nos mostra uma única alegoria: a do Progresso. Essa a alegoria-pesadelo que emana do fundo de toda sua narrativa. E é por isso que sua mensagem é tão preciosa e poderosa.
As telas de Cássio José da Silva versam sobre devastação, rapacidade. E resgatam o que de mais puro existia no movimento surrealista, dialogando com os termos por ele propostos por Breton: mais do que recorrer ao onírico, o movimento se detém em produzir narrativa sobre o trauma.
É de traumas, pois, que se ocupam os pincéis do artista. Hábil em seu manejo, dispensa apreciações sobre sua aptidão técnica: da escolha da palheta de cada peça à construção de texturas, luzes e sombras, da perspectiva sempre distorcida que sacode o olhar como se estivéssemos a bordo e à deriva.
No que tange à composição, essa liquidez da perspectiva é o que mais chama a atenção. Suas telas parecem ser construídas por alguém que enxerga o mundo com uma objetiva olho de peixe, o que tem a imensa vantagem de conferir às telas a preciosa inter-relação entre forma e função, pois tudo está em evidência ao mesmo tempo sempre nas suas telas. Em para quem leu Um peixe olhou para mim, de Stolze de Lima, essa metáfora se torna ainda mais pertinente. Um banzeiro semântico sacode o olhar que fica inquieto até que o mal estar se dispersa ao notarmos que a perspectiva está, na verdade, em vários lugares da tela ao mesmo tempo. Como bem deve ser na Amazônia ameríndia.
A palheta de cores flerta com um exercício de pictorialismo, não se sabe se por um apego ao concreto, da parte do pintor, ou pela necessidade de conferir ao discurso de cada tela o lastro com a realidade brutal e concreta (de cimento, pedras e pedregulhos que, com suas próprias mãos e com seu próprio suor, tão bem conhece por seu ofício de pedreiro).
Há sempre um lastro na realidade concreta, como na tela Sonhos e desilusões, em que um caboclo singra o Encontro das Águas, defrontando-se com a heterogeneidade dos dois mundos (branco, dos brancos, representado pelo Solimões; negro, dos índios e caboclos, representado pelo Negro), vestido com o signo-esteriótipo máximo do nacionalismo (a camisa da seleção brasileira de futebol masculino adulto), provavelmente deixando as beiras e comunidades rumo à cidade onde se propaga que a vida é tão melhor...

SONHOS E DESILUSÕES
Em busca de políticas públicas, este caboclo singra sozinho a tormenta provocada pelo encontro, desassistido por uma Justiça faminta e desestabilizada por um desequilíbrio das instituições do Estado democrático de direito: o prumo, ferramenta com que constrói o mundo de dia com o suor de seu rosto em prol de sua família, enquanto pedreiro, é colocado na tela a fim de mensurar como e o quão desaprumadas estão as instituições. Encontrará este pobre caboclo as políticas públicas prometidas e merecidas na cidade?
Mais do que isso: saberá ele que ao deixar sua floresta, sua casa e seus roçados, ele abandona sua soberania simbólica, cultural, espiritual, epistemológica, e ruma para a periferia da periferia da periferia da periferia do mundo dos outros? Novamente, as oposições natureza/cultura e desenvolvido/subdesenvolvido entram em cena: mas é aí que reside a robustez da proposta deste artista.
Mais do que retratar “lendas de boto” Cássio nos confronta com uma reorganização dos termos em seu discurso: e isso, senhoras e senhores, isso sim é Arte. Cássio José da Silva não retrata cenas bucólicas de uma Amazônia de mentirinha: produz discursividade, constrói uma narrativa no manejo muito consciente de imagens a fim de confrontar, por meio de sua composição, estas imagens de nosso inconsciente coletivo com o trauma do real, por ele tão conhecido em sua labuta cotidiana à cata do precioso sustento na selva de pedra.
A Amazônia real, brutal, contemporânea, emerge, então, desnuda e, então sim, fielmente retratada. Como eu disse, àqueles que esperavam cenas bucólicas que retratassem um alegórico “estado de natureza” nas telas deste pintor amazonense, são confrontados com uma narrativa que postula o surrealismo como plataforma e, assim, reverte o processo ao demonstrar que surreal é, na verdade, todo o trauma que é imposto às infinitas formas de vida que compõem a Amazônia.
Trauma. Na tela Indigesto, por exemplo, Cássio nos apresenta, novamente, um horizinte distorcido que confere fluidez e liquidez à narrativa, enquanto no centro da tela, que divide em quatro, representa os peixes que que sufocam com as toneladas de sacolas plásticas que são jogadas nos rios e igarapés pelos amazonenses durante sua sanha urbanizante rumo a um ideal de progresso e desenvolvimento que engendra aglomeração urbana, superpopulação e, por conseguinte, muito lixo. O urbano que emerge das águas, a princípio (primeiro plano) na forma de palafitas (que é como se morava nas beiras de Manaus no início da sanha urbanizadora), converte-se em prédios que, desaprumados, se amontam sobre sacos plásticos, sufocando os peixes.

INDIGESTO
Mas é em O resgate, por exemplo, que o surrealismo de Cássio José se realiza à perfeição. Como mencionei, o artista rompe da obrigatoriedade da alegoria (enquanto discurso sobre si mesmo feito para o Outro e em função de seus termos) e rompe com o paradigma do onírico: Amazônia é associada a pesadelo, trauma, lixo, esgoto, podridão e poluição. Na tela, uma ratazana e um urubu observam o declínio climático e a consequente aniquilação do humano que, só então percebe que converteu o planeta em uma lixeira. Apocalíptica, a cena é de uma distopia assombrosa: florestas calcinadas dividem espaço com chaminés que regurgitam negra fumaça em meio ao rios de esgoto. Em primeiro plano: plástico.

O RESGATE
No que tange à estética, as telas de Cássio José flertam muito com as mais conhecidas telas de Dalí, cujo Girafa em chamas de 1937 tornou-se maior expoente. Mas, reparando bem, percebemos que mesmo em Dalí fica claro como no rebojo do inconsciente o que existe é distopia: tempo, morte, falibilidade. O mesmo se dá, de maneira ainda mais incisiva com as telas de Cássio José.
Mas é com Pablo Picasso, Cândido Portinari e René Magritte que a arte de Cássio José melhor dialoga. A imensa contribuição de Cássio José está em mostrar que a Utopia de uma Amazônia imaculada e bucólica, que subsidia a mais pérfida narrativa, a do progresso e do desenvolvimento e, portanto, sua própria negação é, por isso mesmo, uma grande distopia.
Trazendo à tona a distopia provocada pela falência dos regimes ocidentais de relacionamento com o planeta por meio da utopia de um capitalismo que atrai retirantes aos milhões para os inchados e poluídos centros urbanos, novamente, a forma segue a função: o surreal em Cássio José não é a Amazônia – postulá-la como surreal é o alegórico clichê que se espera, aliás. Ao contrário, a sagacidade deste pensador que se vale de imagens para confrontar signos e produzir uma narrativa disruptiva está no fato de demonstrar que o surreal é, na verdade, o que nós fazemos dela no antropoceno.
Nesse sentido, a correlação mais coerente seria com a série de telas de Portinari de que é expoente Retirantes, de 1944. O flagelo da fome no nordeste, que se agrava com as duas secas, de 1932 e 1942 é provocado por um grande colapso climático. E muito pouco, muito pouco mesmo, se fala a respeito do quanto este colapso da seca foi provocado pela monocultura: exaurindo a terra num exercício contínuo, ininterrupto de estupro e violação, senhores de engenho e coronéis também flagelaram sociedades inteiras na grande e trágica crônica de etnocídio que é a história do Brasil.
As duas secas em questão se deram na vigência de Getúlio Vargas que, de modos diversos, apoiou com todos os recursos a exploração indiscriminada e predatória dos recursos naturais que engendraram tal colapso climático. O Departamento de Informação e Propaganda – DIP –  de Vargas encarregou-se de construir uma alegoria segundo a qual os retirantes seriam pobres coitados e a seca produto da agência divina.
Em Portinari, na série de telas em que a fome protagoniza a saga dos retirantes, é o trauma provocado por esse holocausto que toma a cena. Assim como em Cássio José: suas telas retratam de maneira, então sim extremamente pictórica, a distopia que nos assola. Em Nas profundezas da alma vemos como o solo gretado e a floresta calcinada ao fundo resultam do trauma que consiste em cindir mente e corpo humanos com o machado dourado da cobiça: o esqueleto que se agrilhoa à madeira morta tem o pescoço cindido num cenário de hecatombe provocado pela agência humana – assim como as secas do nordeste brasileiro, que provocaram o flagelo que motivou os migrantes a se retirarem (por isso retirantes) e virarem... soldados da borracha no Amazonas, justamente num período em que a febre extrativista enriqueceu coronéis...

NAS PROFUNDEZAS DA ALMA
À deriva, nos deixamos fascinar pela narrativa dura e polifônica deste grande artista, porque grande pensador. Ao conversar com ele sobre o título tão acertado da exposição, me dei conta de que o ambiente surreal não é o meio ambiente, mas o ambiente humano, político, social em que vivemos. Isso fica claro quando o pedreiro e pintor, amazonense, nos brinda, em Linha vermelha com uma representação tão precisa dos tijolos baianos (retirantes... cidade de pedra naufragando em igarapés sujos) perfurados à bala.

LINHA VERMELHA
Enquanto contemplava sua obra e ouvia Cássio José falar com tanta firmeza e acerto sobre essa sua proposta tão pensada e solidamente embasada, me lembrei da cena clássica, segundo a qual, em 1940, com Paris ocupada pelos nazistas, um oficial alemão, diante de uma fotografia reproduzindo o painel Guernica (1937), perguntou a Picasso se havia sido ele quem tinha feito aquilo. O pintor, então, teria respondido: "Não, foram vocês!". E ao me lembrar disso fiquei muito, muito grato a este Cássio José, pelo poder de sua mensagem, no contexto hecatômbico atual.
Linha vermelha é a tela que mais clama em favor desta tese do autor: usando a estética advinda do surrealismo, o artista a subverte demonstrando que a Amazônia vive um pesadelo: o pesadelo de estar sob o jugo de coronéis que manejam impiedosamente navalhas de Occam e motosserras, calcinando florestas produzindo violência, êxodo das comunidades ribeirinhas para o inchaço caótico da urbanidade periférica que resulta em superpopulação, esgoto nos igarapés e tijolos perfurados à bala.
Mais do que lendas e mitos, a Amazônia de que nos fala o artista é aquela que resulta do pesadelo capitalista que se vale, justamente, das alegorias sobre a Amazônia (que o artista destrói) para subjuga-la.
Mais do que lendas e mitos, a Amazônia de que nos fala o artista é aquela que resulta do pesadelo capitalista que se vale, justamente, das alegorias sobre a Amazônia (que o artista destrói) para subjuga-la.

É este tapa na cara que a reflexão de Cássio José nos oferece. Para quem almeja telas que retratem alegoricamente as alegorias que povoam o carnaval sobre a Amazônia, mais um recado do arcabouço surrealista, desta vez dialogando com a célebre contribuição de René Magritte: Ce n'est pas une allégorie seria o título ideal desta exposição quando ela for a Paris – e eu espero que vá, pois esta mensagem precisa ganhar o mundo, pois este artista plástico nos traz uma aterradora mensagem – se não contivermos nossos coronéis, doravante toda natureza será morta. E não somente no campo das artes.
Bruno Walter Caporrino
Manaus, 20 de maio de 2019


 “Deriva – Ambiente Surreal” fica em cartaz até 21 de julho, com visitações de terça a domingo, das 15h às 21h, na Casa das Artes (Rua José Clemente, 564 - Largo de São Sebastião, Manaus).
  
O artista – Cássio José da Silva é natural de Canutama, município do interior do Amazonas, lugar onde concluiu o ensino fundamental. Em 1988, foi morar em Lábrea e por lá permaneceu por dois anos até mudar-se para Manaus, em 1991. 
Na capital, trabalhou como zelador, letrista, marceneiro, artesão e pedreiro. Em 2014, Cássio retomou os estudos e pretende seguir até o fim e conquistar a tão sonhada graduação.



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