Natureza morta: isso
não é uma alegoria
Consideraçoes sobre a exposição “Deriva – ambiente surreal”
do artista plástico amazonense Cássio José da Silva
Bruno Walter Caporrino
Muito se costuma falar
acerca do termo surreal. Cunhado por André Breton (1896-1966) em 1924, o termo
simboliza o movimento estético e filosófico que transpõe para o campo das artes
plásticas o que de mais aprimorado a psicanálise promovia no campo das reflexões
acerca do inconsciente. O movimento espraiou-se por manifestações na
literatura, fotografia, cinema e, claro, artes plásticas.
O teor de incoerência impingido
às peças de Salvador Dalí (1904 - 1989) e Pablo Picasso (1881-1973), por
exemplo, permitiu o câmbio entre os estatutos de verdade propagados pelos
regimes de exceção e totalitários que tomavam o ocidente à época bem como a promoção
da reflexão humanística a respeito de seu devir face às atrocidades que então se
cometia.
Surreal acabou
virando um conceito difundido e, portanto, acabou perdendo parte de seu poder semântico
e filosófico. Mas não é o caso do emprego que lhe dá o excelente artista plástico
Cássio José da Silva. Nascido em Canutama, interior do estado do Amazonas, o
artista mora em Manaus e se divide entre o árduo ganha-pão de pedreiro, que lhe
toma quase todo o tempo disponível e a pintura.
Tive a honra de
conversar detidamente com este homem esplêndido durante a vernissage de sua contundente exposição, no dia 18 de maio. Sediada
na Casa das Artes (Largo de São Sebastião, Manaus) a exposição foi sabiamente
intitulada Deriva – Ambiente surreal
e apresenta dez (das sonhadas e já planejadas 250) telas do pintor.
Cássio José da Silva
pinta com tinta acrílica (sobre telas que ele mesmo confecciona, assim como
parte das molduras) como quem pensa: e posso afirmar sem adulação alguma que se
trata de um excelente e afiado pensador.
A proposta dessas dez
telas é, estética mas sobretudo epistemologicamente, política. Engana-se quem
pensa que política consiste nos comezinhos e mormente espúrios movimentos de
camarilha que ocorrem no oceano do sistema partidário; engana-se quem pensa que
política é apenas uma seção da vida humana, dissociada de tudo o mais, e
engana-se ainda mais quem pensa que política seria apenas aquele rebuliço que
assola nossa ameaçada democracia de quatro em quatro anos: por política
resgato, aqui, seu sentido primevo e original, qual seja, a arte de viver na polis, a arte de viver em sociedade, equacionando
conflitos, tomando decisões e assumindo responsabilidade civil por elas. Cidadania,
se preferirem.
Em sua exposição,
Cássio José da Silva nos brinda com fragmentos, ou melhor, estilhaços, de um
mundo que se esfacela. Vaticinante, sua arte nos solapa o cômodo apoio
(muleta?) fornecido pelas (meias)verdades tão propagadas sobre meio-ambiente,
sustentabilidade e Amazônia ao mesmo tempo em que retoma, com a fúria e o
fôlego necessários, a boa, velha e infelizmente esquecida discussão acerca da função
social da arte. E isso me fez respeitá-lo e admirar sua arte de uma maneira
incrível: Cássio José tem uma mensagem, e esta mensagem é muito bem
fundamentada, solapando alegorias. Por isso me decidi a escrever sobre sua
obra: porque essa mensagem tem que ser pontuada, frisada, alardeada.
Se desejam uma resenha
sobre a exposição, feita esta introdução, aqui a temos. Sabemos que Cássio José
da Silva é um amazonense que detém, sobre a Amazônia e sobre o Amazonas, vasto
conhecimento – de causa. Sabemos que é pedreiro de profissão e que se dedica à
arte como se dela não pudesse desguiar-se (tal qual todo artista vocacionado ao
sucesso). Sabemos, ademais, que é autodidata.
Associando todos esses
aspectos, qualquer leitor de fora da Amazônia faz, sozinho, os cálculos
rotulatórios inconscientes, quase que automaticamente: “trata-se de um artista
plástico amazonense e autodidata. Logo, nos apresentará cenas prosaicas e
coloridas da vida ribeirinha, com maior ou menor apelo aos traços indígenas,
mais ou menos estereotipados, juntamente com alguns exercícios de retratação pictórica
de doces paisagens com paranás e bucólicas casinhotas flutuantes. Ou, se não
isso, talvez se arrisque a abstrair um pouco do pictorialismo e produza algumas
alegorias nas quais um grande pirarucu enrola-se (dependendo da habilidade representativa
do artista) nas pernas de um caboclo estereotipado com chapéu de palha enquanto
este o zagaia. Talvez, algum arroubo de abstração, brincadeiras com formas geométricas,
e, bem, isso é tudo”.
Ledo engano, caras
leitores e caros leitores. O que Cássio José da Silva nos traz é arte e,
portanto, questionamento. Não o questionamento vazio e raso das gritas
diuturnas que ecoam por galerias mundo afora, mas sim um questionamento muito
embasado acerca do que são Amazônia, sustentabilidade e, por isso mesmo, política,
atualmente. Cássio José apresenta questões. E essa é a função social da arte.
As telas de Deriva – ambiente surreal coadunam-se. Dialogam
de maneira harmônica entre si, perfazendo um conjunto coeso de narrativas ou
criptogramas: todas as telas conversam entre si de modo que, percorrendo a
sala, pode-se construir um conto ou crônica ao interpretar cada uma e ir
re-fazendo a ordem, como no ousado romance O
jogo da amarelinha do argentino Julio Cortázar (1914-1984).
As telas perfazem um
conjunto coeso entre forma e função, mostrando que o artista leu Le Corbusier
com a mente, não com os olhos, pois em sua arte a forma segue a função: em Deriva a mensagem motiva a perspectiva,
o arranjo dos elementos em cena está submetido ao roteiro e este é submetido à
moral que o artista deseja impingir às telas. Como deve ser.
A poética de Cássio
José da Silva impressiona porque não é vã como as rememorações para-inglês-ver
que, infelizmente, solapam a produção artística da, na, pela, sobre e para a
Amazônia, e cuido que esse foi o aspecto de sua obra que mais me apaixonou.
Silva rompe os paradigmas alegóricos sobre a Amazônia, que agrilhoam tantos e
tantos artistas que a ela se dedicam (e aí me incluo, por um bom tempo).
Me recordo,
respeitosamente, de trechos da respeitável obra de Astrid Cabral (1936), Herculano
Marcos Inglez de Souza (1853-1918) e de João Nogueira da Mata (1909-1991) sempre
que reflito a esse respeito: são bons exemplos desta tendência, que cuido racional
e afetiva, em produzir uma literatura sobre a Amazônia só porque é produzida na
Amazônia, mas de maneira quase que obrigatória. Nascestes na Amazônia? Deves escrever
ou pintar sobre ela, pois.
Recordo de conhecidos
que se mostraram decepcionados quando Miltom Hatoum lançou o primeiro livro de
sua trilogia, o Noite de espera. “Então
a história se passa no sudeste e em Brasília?”, ouvi muitas pessoas lamentarem,
com visível esgar de decepção que traía o enunciado oculto: “se ele é de Manaus,
como que escreve sobre algo que se passa em Brasília e não na Amazônia?”.
Essa “obrigatoriedade”
pode advir da confluência de dois fatores: de um lado, a percepção de que a
Amazônia representa, de seu mais concreto cauxi nas roupas brancas ao mais
abstrato tropos epistêmico da alteridade em sua manifestação máxima, em uma
grande e perturbadora incógnita, um universo desconhecido e prenhe de
significados, significância: uma floresta de signos.
Por outro lado, há
ainda o fato de que estando em províncias tão afastadas dos centros produtores e
consumidores de arte, como Rio de Janeiro e, obviamente, a Europa, tais
artistas se viram, historicamente, obrigados a lançar mão do trunfo que é ser
amazônida, estar na Amazônia, gozar de experiencias e material únicos,
inéditos, que certamente encontram no público boa clientela e nas editoras
interesse.
Compreensível, este
movimento (pelo qual eu mesmo passei, tão logo pude realizar o sonho tão
ansiado de cá perder-me para só então me achar) acaba, contudo, traindo a Amazônia
e interpondo uma contradição em termos, porque mormente se produz sobre a Amazônia
uma arte que toma a Amazônia de verdade, real, concreta, pelo estereótipo que
dela fazem justamente aqueles que nada dela conhecem. Gato por lebre ou, pior,
gato por maracajá, nos deixamos todos enlear com menor ou maior grau pelo assédio
alegórico, como se, por sermos brasileiros, nos sentíssemos obrigados a só compor
sambas e só cozinhar feijoadas, já que é isso que os não-brasileiros intuem que
façamos o tempo todo.
O resultado é uma
literatura prenhe de contos e crônicas eivados de “lendas e mitos”, infinitas
versões sobre mitos indígenas deturpados (porque desatrelados da matriz epistemológica
que os engendra e que seu sentido, como todo mito, é instanciar) e uma arte
plástica pictórica e epistemologicamente comprometida em reproduzir a alegoria
que os que não estão na Amazônia desejam ver sobre ela produzida. Botos estando
para feijoadas assim como... caipirinha demais.
Daí os quadros com
mulheres indígenas sensualizadas, com seios e redondas coxas à mostra, em poses
sensuais, banhando-se ao luar, que assolam as peixarias para turistas. Essa produção
pode ter muito valor se tomada não como narrativa, mas como objeto. E é a isso
que tenho me dedicado: em investigar como a produção artística sobre a Amazônia
reitera pressupostos muito comodamente assentados no imaginário popular sobre a
Amazônia e acaba refém, por conseguinte, de uma reprodução de artefatos que
realizem, personifiquem, a cada obra, essa suíte de signos pela epistemologia
ocidental imposta à Amazônia.
Há aqui, em meu
percurso, alguns pressupostos. O primeiro deles é que “a Amazônia” consiste em
uma abstração, ela mesma artefato, produzida no plano do discurso pelos agentes
que operam o idioma epistemológico ocidental. Grosso modo, é como se o pensamento ocidental, ordenado como é,
fornecesse aos indivíduos algoritmos pré-formatados com os quais pensar a Amazônia.
Algo como: “Amazônia =
exótico, natureza, índios, rios, peixes, floresta, água, caboclo”. “Natureza =
lenda, mito, índio, floresta, recursos, riqueza, fragilidade, inferior, proteção,
preservação, involuído, primitivo, inculto, simples, domesticável, cru”. “Cultura
= ciência, conhecimento, arte, evolução, evoluído, superior, religião, pensamento,
reflexão, tecnologia, progresso, avanço, desenvolvimento, sabedoria”. Esses
conjuntos de signos e valores, orquestrados como são pelas feições do regime de
conhecimento ocidental, gravitam em torno da clássica e, infelizmente ainda não
superada, polaridade que é o mito fundador da episteme moderna: natureza versus cultura ou, hierarquicamente,
cultura versus natureza (e a ordem
dos fatores é, aqui, fundamental).
Assim como uma língua,
estes signos e valores se inter-relacionam de maneira sistêmica, de modo que o
discurso consiste em manifestações peculiares destas possibilidades todas. Portanto,
muito da arte que se produz na ou sobre a Amazônia fica refém deste campo simbólico
e, infelizmente, até certo tempo, desta polaridade cultura versus natureza. Pensemos a arte como discurso, narrativa, e as
peças como manifestações dos cálculos que os artífices fazem com os termos
fornecidos pelo sistema.
Observando a grande
narrativa acerca dos povos ameríndios, por exemplo, percebe-se que eram ora vistos
como puros descendentes de Deus vivendo em convívio harmônico num Éden tardio
e, portanto, tidos como puros e sábios habitantes da floresta dotados de
sabedoria e espiritualidades ancestrais; ora vistos como aberrações, fósseis
vivos, primitivos incultos e selvagens a quem se deve ou civilizar, levando o
progresso, ou exterminar, os habitantes amazônidas são, até hoje, jogados para
lá e para cá entre estes tropos. À sua total revelia.
E não foi diferente no
campo (privilegiado para tal análise) das artes plásticas e da literatura. Como
mencionei, a obrigatoriedade em produzir uma arte sobre a Amazônia ainda foi
associada ao tributo adicional de realizar peças artísticas que funcionassem como
discursos que reiteravam mitos sobre a Amazônia.
A produção artística
que se ocupou da Amazônia esteve e ainda está, infelizmente, muito presa à alegoria.
James Clifford, em seu sublime A autoridade etnográfica (Clifford, 2008) nos
brinda com a percepção de que alegoria provém do grego allos (“outro”) + agoreuein (falar). A alegoria seria uma espécie de representação
que interpreta a si mesma em função da interpretação que se faz do Outro ou,
melhor, de como os outros nos interpretam. Estando em um nível acima da
interpretação, alegorias consistiriam num manejo quase inconsciente dos signos
que o sistema fornece a uma sociedade, espaço privilegiado para observarmos
como cada grupo se observa a si mesmo sob a ótica que faz dos outros.
Nesse sentido, é com grande
pesar no coração que me sinto obrigado a publicizar um enunciado que sempre me
vem à mente quando vejo algumas coisas que se produz na e a partir da Amazônia:
como num grande festival de Parintins, parece que a produção amazonense assume
para si mesma o papel de versar, sobre si mesma, para os outros, e segundo os
termos, critérios, parâmetros e signos que os outros têm sobre nós.
O Nós, Amazônia, nas
artes, acaba perpassando por um exercício quase antropofágico (e aí é muito
rico) de deglutição do real pela boca sedenta de alteridades pre-formatadas dos
Outros. Amazônia, Amazônia, ecoam as toadas cantadas por belas morenas em sumários
trajes, ornadas por plumas coloridas, numa exaltação de uma semana da mesma
amazoneidade que sua vida fora do evento do Boi consiste em negar: morar na
beira é coisa de índio, índio é tudo primitivo, não é porque sou manauara que
seja primitiva e analfabeta como esses índios...
Discurso e prática se
negam complementarmente no campo desta grande ficção que é produto da narrativa
da identidade: a depender do contexto, os atores manejam positivamente as
alegorias que os outros entalham sobre amazoneidade. Durante o Boi, a alegoria
é engendrada de maneira eufórica: assumir para si a identidade amazônida é
motivo de orgulho, exceto quando um grupo de investidores japoneses que visita
a Zona Franca interessado em investir pergunta a esse mesmo secretário de
infra-estrutura, responsável tanto pelo Boi quanto pela Zona Franca, se seus
antepassados são indígenas: “não não, sou civilizado, rapaz. Está achando que
somos tudo bugre? A gente sabe fazer fábricas aqui, ninguém é índio não”. E a
alegoria solapa e oblitera qualquer reflexão mais profunda. Mas é assim que o
mecanismo identidade funciona mesmo, em todo canto.
O fato é que uma
grande toada, sobre fantasias plumárias espalhafatosas e carros alegóricos,
permeia a nossa produção e, por favor, não ousem suspeitar que para um
antropólogo comparar arte ao festival de Boi Bumbá de Parintins seja um exercício
de crítica à arte (isso pressuporia que o festival não é arte, e não é o caso).
Ser índio, pode: um determinado estereótipo, e apenas em determinadas ocasiões.
Pensar como índio, fazer política como índio, produzir ciência e pensamento
como índio: isso não.
Apenas, minha tese é
que a produção artística da Amazônia é refém, em grande parte, de uma alegoria
que consiste em uma discursividade reflexiva muito rica e, sobretudo, muito
instigante quanto pensada sob a perspectiva da antropofagia ameríndia e do
perspectivismo ameríndio: predar o Outro implica em transmutar de perspectiva
ao mesmo tempo em que, todo aquele que preda está sujeito a deixar-se predar (ou
seja, mudar de perspectiva). Ou seja, no universo ameríndio, Eu sempre é um Outro
– todos os outros.
Isso é um problema
quando falamos de artes plásticas e de literatura porque são práticas cuja função
é produzir reflexão e crítica, pois em muitos casos essas peças como os
infinitos contos “a lenda do boto”: escrever sobre o boto com seriedade, só
Engrácio e Márcio Souza lograram, este último levando muito a sério o teor mitológico
do material que lhe serve de matéria prima para a sua arte e, por isso mesmo,
Arte.
Os gigantes Márcio
Souza, com seu surrealismo panfletário que se equilibra tão criticamente entre
a crítica e o realismo fantástico, e Miltom Hatoum, chegaram à literatura
amazonense para romper com este paradigma que intitulo “da obrigatoriedade” e
da alegoria. A obra de Márcio Souza é um grande manifesto acerca da função social
da arte e perfaz um repertório de ensaios sobre a história, a economia e,
sobretudo, a sociologia amazônida como nenhuma outra, tratando a mitologia como
ela deve realmente ser tratada por um artista: boto é bom para pensar, não para
comer, já diria Lévi-Strauss.
Dito isso, Deriva – ambiente surreal de Cássio José
da Silva consiste numa dessas belas e tão preciosas rasteiras epistemológicas nas
alegorias “para inglês ver” que tanto esperamos: rompendo os cânones estéticos
impostos historicamente à produção amazônida, Cássio José da Silva dá um nó nos
meandros semânticos que os signos insistem em dar na mente de qualquer expectador
de fora. Qualquer um que imagine telas com bucólicas casinhas e mulheres
sensualizadas (Amazônia = natureza = fêmea = domável/violável/inoculável)
quebra a cara diante de dez telas que contam com beleza brutal a saga da beleza
amazônida em meio à brutalidade que a história da colonização lhe impõe desde o
primeiro minuto.
Cássio nos mostra uma
única alegoria: a do Progresso. Essa a alegoria-pesadelo que emana do fundo de
toda sua narrativa. E é por isso que sua mensagem é tão preciosa e poderosa.
As telas de Cássio
José da Silva versam sobre devastação, rapacidade. E resgatam o que de mais
puro existia no movimento surrealista, dialogando com os termos por ele
propostos por Breton: mais do que recorrer ao onírico, o movimento se detém em
produzir narrativa sobre o trauma.
É de traumas, pois,
que se ocupam os pincéis do artista. Hábil em seu manejo, dispensa apreciações sobre
sua aptidão técnica: da escolha da palheta de cada peça à construção de texturas,
luzes e sombras, da perspectiva sempre distorcida que sacode o olhar como se estivéssemos
a bordo e à deriva.
No que tange à composição,
essa liquidez da perspectiva é o que mais chama a atenção. Suas telas parecem
ser construídas por alguém que enxerga o mundo com uma objetiva olho de peixe,
o que tem a imensa vantagem de conferir às telas a preciosa inter-relação entre
forma e função, pois tudo está em evidência ao mesmo tempo sempre nas suas
telas. Em para quem leu Um peixe olhou
para mim, de Stolze de Lima, essa metáfora se torna ainda mais pertinente.
Um banzeiro semântico sacode o olhar que fica inquieto até que o mal estar se
dispersa ao notarmos que a perspectiva está, na verdade, em vários lugares da
tela ao mesmo tempo. Como bem deve ser na Amazônia ameríndia.
A palheta de cores
flerta com um exercício de pictorialismo, não se sabe se por um apego ao concreto,
da parte do pintor, ou pela necessidade de conferir ao discurso de cada tela o
lastro com a realidade brutal e concreta (de cimento, pedras e pedregulhos que,
com suas próprias mãos e com seu próprio suor, tão bem conhece por seu ofício
de pedreiro).
Há sempre um lastro na
realidade concreta, como na tela Sonhos e
desilusões, em que um caboclo singra o Encontro das Águas, defrontando-se
com a heterogeneidade dos dois mundos (branco, dos brancos, representado pelo
Solimões; negro, dos índios e caboclos, representado pelo Negro), vestido com o
signo-esteriótipo máximo do nacionalismo (a camisa da seleção brasileira de
futebol masculino adulto), provavelmente deixando as beiras e comunidades rumo
à cidade onde se propaga que a vida é tão melhor...
SONHOS E DESILUSÕES
Em busca de políticas
públicas, este caboclo singra sozinho a tormenta provocada pelo encontro,
desassistido por uma Justiça faminta e desestabilizada por um desequilíbrio das
instituições do Estado democrático de direito: o prumo, ferramenta com que constrói
o mundo de dia com o suor de seu rosto em prol de sua família, enquanto pedreiro,
é colocado na tela a fim de mensurar como e o quão desaprumadas estão as instituições.
Encontrará este pobre caboclo as políticas públicas prometidas e merecidas na
cidade?
Mais do que isso:
saberá ele que ao deixar sua floresta, sua casa e seus roçados, ele abandona
sua soberania simbólica, cultural, espiritual, epistemológica, e ruma para a
periferia da periferia da periferia da periferia do mundo dos outros? Novamente,
as oposições natureza/cultura e desenvolvido/subdesenvolvido entram em cena:
mas é aí que reside a robustez da proposta deste artista.
Mais do que retratar “lendas
de boto” Cássio nos confronta com uma reorganização dos termos em seu discurso:
e isso, senhoras e senhores, isso sim é Arte. Cássio José da Silva não retrata
cenas bucólicas de uma Amazônia de mentirinha: produz discursividade, constrói uma
narrativa no manejo muito consciente de imagens a fim de confrontar, por meio
de sua composição, estas imagens de nosso inconsciente coletivo com o trauma do
real, por ele tão conhecido em sua labuta cotidiana à cata do precioso sustento
na selva de pedra.
A Amazônia real,
brutal, contemporânea, emerge, então, desnuda e, então sim, fielmente
retratada. Como eu disse, àqueles que esperavam cenas bucólicas que retratassem
um alegórico “estado de natureza” nas telas deste pintor amazonense, são confrontados
com uma narrativa que postula o surrealismo como plataforma e, assim, reverte o
processo ao demonstrar que surreal é, na verdade, todo o trauma que é imposto às
infinitas formas de vida que compõem a Amazônia.
Trauma. Na tela Indigesto, por exemplo, Cássio nos
apresenta, novamente, um horizinte distorcido que confere fluidez e liquidez à narrativa,
enquanto no centro da tela, que divide em quatro, representa os peixes que que
sufocam com as toneladas de sacolas plásticas que são jogadas nos rios e
igarapés pelos amazonenses durante sua sanha urbanizante rumo a um ideal de
progresso e desenvolvimento que engendra aglomeração urbana, superpopulação e,
por conseguinte, muito lixo. O urbano que emerge das águas, a princípio
(primeiro plano) na forma de palafitas (que é como se morava nas beiras de
Manaus no início da sanha urbanizadora), converte-se em prédios que, desaprumados,
se amontam sobre sacos plásticos, sufocando os peixes.
INDIGESTO
Mas é em O resgate, por exemplo, que o
surrealismo de Cássio José se realiza à perfeição. Como mencionei, o artista
rompe da obrigatoriedade da alegoria (enquanto discurso sobre si mesmo feito
para o Outro e em função de seus termos) e rompe com o paradigma do onírico: Amazônia
é associada a pesadelo, trauma, lixo, esgoto, podridão e poluição. Na tela, uma
ratazana e um urubu observam o declínio climático e a consequente aniquilação
do humano que, só então percebe que converteu o planeta em uma lixeira. Apocalíptica,
a cena é de uma distopia assombrosa: florestas calcinadas dividem espaço com
chaminés que regurgitam negra fumaça em meio ao rios de esgoto. Em primeiro
plano: plástico.
O RESGATE
No que tange à
estética, as telas de Cássio José flertam muito com as mais conhecidas telas de
Dalí, cujo Girafa em chamas de 1937
tornou-se maior expoente. Mas, reparando bem, percebemos que mesmo em Dalí fica
claro como no rebojo do inconsciente o que existe é distopia: tempo, morte,
falibilidade. O mesmo se dá, de maneira ainda mais incisiva com as telas de
Cássio José.
Mas é com Pablo
Picasso, Cândido Portinari e René Magritte que a arte de Cássio José melhor
dialoga. A imensa contribuição de Cássio
José está em mostrar que a Utopia de uma Amazônia imaculada e bucólica, que subsidia
a mais pérfida narrativa, a do progresso e do desenvolvimento e, portanto, sua própria
negação é, por isso mesmo, uma grande distopia.
Trazendo à tona a
distopia provocada pela falência dos regimes ocidentais de relacionamento com o
planeta por meio da utopia de um capitalismo que atrai retirantes aos milhões para
os inchados e poluídos centros urbanos, novamente, a forma segue a função: o
surreal em Cássio José não é a Amazônia – postulá-la como surreal é o alegórico
clichê que se espera, aliás. Ao contrário, a sagacidade deste pensador que se
vale de imagens para confrontar signos e produzir uma narrativa disruptiva está
no fato de demonstrar que o surreal é, na verdade, o que nós fazemos dela no
antropoceno.
Nesse sentido, a correlação
mais coerente seria com a série de telas de Portinari de que é expoente Retirantes, de 1944. O flagelo da fome
no nordeste, que se agrava com as duas secas, de 1932 e 1942 é provocado por um
grande colapso climático. E muito pouco, muito pouco mesmo, se fala a respeito
do quanto este colapso da seca foi provocado pela monocultura: exaurindo a
terra num exercício contínuo, ininterrupto de estupro e violação, senhores de
engenho e coronéis também flagelaram sociedades inteiras na grande e trágica
crônica de etnocídio que é a história do Brasil.
As duas secas em questão
se deram na vigência de Getúlio Vargas que, de modos diversos, apoiou com todos
os recursos a exploração indiscriminada e predatória dos recursos naturais que
engendraram tal colapso climático. O Departamento de Informação e Propaganda –
DIP – de Vargas encarregou-se de
construir uma alegoria segundo a qual os retirantes seriam pobres coitados e a
seca produto da agência divina.
Em Portinari, na série
de telas em que a fome protagoniza a saga dos retirantes, é o trauma provocado
por esse holocausto que toma a cena. Assim como em Cássio José: suas telas retratam
de maneira, então sim extremamente pictórica, a distopia que nos assola. Em Nas profundezas da alma vemos como o
solo gretado e a floresta calcinada ao fundo resultam do trauma que consiste em
cindir mente e corpo humanos com o machado dourado da cobiça: o esqueleto que
se agrilhoa à madeira morta tem o pescoço cindido num cenário de hecatombe
provocado pela agência humana – assim como as secas do nordeste brasileiro, que
provocaram o flagelo que motivou os migrantes a se retirarem (por isso
retirantes) e virarem... soldados da borracha no Amazonas, justamente num período
em que a febre extrativista enriqueceu coronéis...
NAS PROFUNDEZAS DA
ALMA
À deriva, nos deixamos
fascinar pela narrativa dura e polifônica deste grande artista, porque grande
pensador. Ao conversar com ele sobre o
título tão acertado da exposição, me dei conta de que o ambiente surreal não é
o meio ambiente, mas o ambiente humano, político, social em que vivemos. Isso
fica claro quando o pedreiro e pintor, amazonense, nos brinda, em Linha vermelha com uma representação tão
precisa dos tijolos baianos (retirantes... cidade de pedra naufragando em igarapés
sujos) perfurados à bala.
LINHA VERMELHA
Enquanto contemplava
sua obra e ouvia Cássio José falar com tanta firmeza e acerto sobre essa sua
proposta tão pensada e solidamente embasada, me lembrei da cena clássica,
segundo a qual, em 1940, com Paris ocupada pelos nazistas, um oficial alemão,
diante de uma fotografia reproduzindo o painel Guernica (1937), perguntou a Picasso se havia sido ele quem tinha
feito aquilo. O pintor, então, teria respondido: "Não, foram vocês!".
E ao me lembrar disso fiquei muito, muito grato a este Cássio José, pelo poder
de sua mensagem, no contexto hecatômbico atual.
Linha vermelha
é a tela que mais clama em favor desta tese do autor: usando a estética advinda
do surrealismo, o artista a subverte demonstrando que a Amazônia vive um
pesadelo: o pesadelo de estar sob o jugo de coronéis que manejam impiedosamente
navalhas de Occam e motosserras, calcinando florestas produzindo violência, êxodo
das comunidades ribeirinhas para o inchaço caótico da urbanidade periférica que
resulta em superpopulação, esgoto nos igarapés e tijolos perfurados à bala.
Mais do que lendas e
mitos, a Amazônia de que nos fala o artista é aquela que resulta do pesadelo capitalista
que se vale, justamente, das alegorias sobre a Amazônia (que o artista destrói)
para subjuga-la.
Mais do que lendas e
mitos, a Amazônia de que nos fala o artista é aquela que resulta do pesadelo
capitalista que se vale, justamente, das alegorias sobre a Amazônia (que o
artista destrói) para subjuga-la.
É este tapa na cara
que a reflexão de Cássio José nos oferece. Para quem almeja telas que retratem
alegoricamente as alegorias que povoam o carnaval sobre a Amazônia, mais um
recado do arcabouço surrealista, desta vez dialogando com a célebre
contribuição de René Magritte: Ce n'est
pas une allégorie seria o título ideal desta exposição quando ela
for a Paris – e eu espero que vá, pois esta mensagem precisa ganhar o mundo,
pois este artista plástico nos traz uma aterradora mensagem – se não
contivermos nossos coronéis, doravante toda natureza será morta. E não somente
no campo das artes.
Bruno Walter Caporrino
Manaus, 20 de maio de 2019
O artista –
Cássio José da Silva é natural de Canutama, município do interior do Amazonas,
lugar onde concluiu o ensino fundamental. Em 1988, foi morar em Lábrea e por lá
permaneceu por dois anos até mudar-se para Manaus, em 1991.
Na capital,
trabalhou como zelador, letrista, marceneiro, artesão e pedreiro. Em 2014,
Cássio retomou os estudos e pretende seguir até o fim e conquistar a tão
sonhada graduação.
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