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terça-feira, 21 de maio de 2019

Nos olhos dos outros - Bruno Walter Caporrino


Nos olhos dos outros
Bruno Walter Caporrino


As ruas estavam tomadas por toda sorte de dejetos multicoloridos quando Hans desceu do taxi. A aurora se anunciava timidamente pelas frestas deixadas pelos arranha-céus, coriscando, lá e cá, nas janelas. Varando a densa e azulada névoa que fedia a pólvora queimada de rojões, os raios de sol incidiam sobre o fractal vítreo dos prédios e iluminavam pontos específicos do panorama que Hans passou a contemplar entre extasiado e aflito: montanhas de latinhas de cerveja, garrafas de cachaça, adereços feitos na China, cada qual mais berrante, imiscuíam-se aos ébrios largados nas sarjetas enquanto zumbis vagavam à cata de metal.

Hans fora informado de que esta não era a melhor época para visitar a Taliãolândia: o carvanal, a apoteótica e gigantesca festa popular que parava o país, acontecia bem naquela semana. Formalmente, pois Hans averiguara que em Taliãolândia todos os dias era carvanal, mas que apenas naquela época, especificamente, o Governo dava autorização para que ocorresse plenamente e a bandeiras e bragas desbragadas.

Um morador de rua ou talvez engenheiro ou cirurgião – àquela altura da quinta feira cinzenta era difícil saber a diferença – esgueirou-se sorrateiramente por entre suas pernas, revolvendo uma miríade de dejetos a gritar por seu celular. “Fui roubado, não acredito!” sentou-se, atônito, as mãos à cabeça e o olhar desnorteado de tão embriagado. Tampando o sobrolho com as mãos, Hans achou por bem carregar sua valise para o hotel.

---- Primeira vez na Taliãolândia, senhor? Perguntou, bocejando, o recepcionista.

Quando Hans ia responder, deu-se conta de que sua mala já não mais estava a seus pés, onde havia deixado: “sim, e talvez a última”, ainda pensou em responder, contendo-se diante da hipótese de que quem a carregada pudesse ter sido o encarregado do hotel. Quando o recepcionista jogou as chaves no balcão, gritando “234, segundo andar” enquanto subia as calças pelo cinto, acomodando a barriga exatamente por cima dele, Hans se deu conta de que teria que passar a semana no país sem nenhuma roupa além daquela com que chegara: a valise já havia sido furtada.

A viagem de Hans à Taliãolândia mal pôde ser planejada: jornalista renomado, especializado em cobrir com perfeição grandes furos políticos, Hans comprou as passagens assim que soube que o candidato Ricardo Walter havia ganho o pleito. Walter era um outsider puro sangue: praticamente desconhecido, mesmo na Taliãolândia, pelos melhores e mais informados lobistas, jornalistas, juristas, etc, fez uma campanha rápida e simples, derrotando de maneira inacreditável o candidato que há meses seguidos estava melhor cotado para ganhar o pleito. 

Seu adversário, Jairo Fecalsaro era um parlapatão de extrema-direita, ex-oficial do exército expulso da corporação depois de inúmeros atentados que, depois de comprovou, visavam aumentar seus rendimentos, passara 27 anos no Congresso como Deputado sem propor ou aprovar projeto algum. Facalsaro era um brucutu que poder-se-ia tomar por um estereótipo do senhor de engenho rural que chicoteia e estupra por hobby ao amanhecer: usava botinas de elástico e representava o que de mais abjeto se poderia extrair de um verdadeiro senhor rural ignorante: violento, cruel, ganancioso e, por isso mesmo, extremamente popular.


Hans sabia, bem formado que era, que os habitantes de Taliãolândia amavam tiranos: todos os cientistas políticos da Taliãolândia eram unânimes em concordar que, gentil e cordial, o habitante da Taliãolândia não negava o passado brutal que inaugurou aquela colônia de presidiários e escravos onde se praticava estupro e mutilações para divertimento da elite colonial até muito pouco tempo atrás. Olho por olho, dente por dente, o taliãolandês era apaixonado pela vendeta: lançando mão de um repertório tribal que infelizmente fora deturpado pelo neopentecostalismo, o taliãolandês só entendia uma língua: a da vingança.

Hans sabia disso, e havia inclusive esboçado alguns ensaios sobre o rico mas ao mesmo tempo miserável país que, despontando entre os 6 países mais ricos do mundo, montava no dinheiro que obtinha explorando de maneira voraz e assassina seus recursos naturais enquanto 90% da população vivia com menos de cem monarcos (a moeda local) por mês.

Seis homens eram proprietários de mais da metade das terras e dos recursos da Taliãolândia, e Hans os havia entrevistado diversas vezes. Desta feita, contudo, preferia focar sua atenção nos taliãolandeses: ouvir o clamor das ruas e compreender os efeitos da inusitada e inédita eleição de Ricardo Walter.

---- O que eu acho dessa proposta dele? Sei não, rapaiz. Nós votêmo mais foi porque se não vota o dono da loja ia ponhá nós na rua. Se ele mandou nós votá num candidato? Sim! Passou o ano todo falando que se nós não votasse o Fecalsaro ia cortar nossas mão, igual fizéro com nossos avô tudo - disse um morador da Taliãolândia numa das primeiras entrevistas.

Hans tinha ideia disso tudo. Mas... ver, com os próprios olhos, era diferente. Pessoas brigando por frutas estragadas, aos montes, num país que era o sexto mais rico do mundo, era muito difícil de compreender. Mais difícil ainda estava sendo entender como a população, tão explorada, apoiava Fecalsaro que declarava ódio à negros, pardos, nativos, mulheres, grávidas, idosos, enfim, todos que não se enquadrassem em seu arquétipo nazista de raça pura. Mas quem se assustava com o apoio popular a Fecalsaro precisava conhecer a historia da Taliãolândia: o nome da colônia advinha de Talião, um dos déspotas preferidos pelos pastores que foram encarregados de, jogando fora o Novo Testamento, criar todo o ideário, a simbologia, os valores da “Pátria de Talião”.

A população, como é de se esperar, passara séculos sendo currada e chicoteada em praça pública pelos poucos senhores que eram donos das terras, donos deles, das gentes, donos das águas, e que eram irmãos dos pastores, irmãos dos juízes, primos dos delegados, tios dos jornalistas... quem “cresceu pulando cadáveres calcinados só conhece cadáveres”, pensava Hans enquanto atravessava uma praça entre a multidão que corria para abrigar-se de um tiroteio promovido pela Polícia (que dominava o tráfico de cocaína) e os milicitares, que dominava o tráfico de armas e de maconha. A disputa, Hans apurara, era pelo domínio das linhas de ônibus.

A diferença entre os policiais, agentes do Governo, e os milicitares consistia apenas em que os policiais traficavam mas eram funcionários do governo e do Judiciário, enquanto os milicitares eram os mesmos policiais, unidos aos traficantes não policiais, que traficavam nos horários de folga. Hans conheceu dois policiais que, no meio da entrevista, tiraram a farda, puseram balaclavas e assumiram outro discurso para o gravador. Boquiaberto, perguntou o que acontecia: “nada, é que deu 4 hora, aí acaba nosso turno na corporação, daí nós vira milicitar”.

A brutalidade dos milicitares era combatida pelas forças policiais com... brutalidade. E em meio ao holocausto urbano, Fecalsaro e seu discurso de ódio contra a roubalheira e corrupção que eram o pilar, o marco zero da história da Taliãolândia, fez com que chegasse a mais de 65% e intenções de votos naquela eleição.

Mas foi então que Ricardo Walter apareceu, com sua fala mansa, jeito simples e modos polidos. Articulado, versava sobre a Legislação Federativa com seriedade mas sem afetação, e acabou conquistando as massas ao lançar sua proposta em pleno debate eleitoral ao qual Fecalsaro sequer apareceu: a proposta de Ricardo Walter irritava tanto Fecalsaro quanto Getúlio Cícero da Silva, o candidato que se dizia de esquerda, e que resgatava o caudilhismo latino-americano de tal modo que Evita Perón verteria lágrimas.

A proposta de Ricardo Walter era, em linhas muito gerais, o que ele mesmo denominava “democracia radical”. Ricardo Walter propôs que, se eleito, faria com que todos os moradores da Taliãolândia fossem à Justiça assinar o que chamou de Contrato Social. O Contrato Social era basicamente a Constituição, elaborada de modo a firmar um contrato no qual o governo e os cidadãos se comprometiam mutuamente, contraindo, ambas as partes, direitos e obrigações. Pelo Contrato, os cidadãos eram obrigados a matricular seus filhos na escola pública, que o governo era obrigado a oferecer, e assim por diante.

Mas o que gerou polvorosa entre os habitantes foi o segundo componente da proposta de Ricardo Walter: ele prometia que, assim que eleito, todos os dados das redes sociais dos moradores de Taliãolândia, que estavam absoluta, radical e mesmo violentamente divididos nas eleições entre Getúlio Cícero e Fecalsaro, seriam incorporados a fim de levantar um perfil dos cidadãos e encaixá-los em “planos de cidadania”.

Segundo a proposta, feita diante de um país radicalmente dividido e convulsionado às vésperas da eleição mais disputada e acirrada de sua história, os cidadãos seriam agrupados em função de suas opiniões sobre assuntos fundamentais que operavam essa divisão do país, tais como a tortura, a ditadura (incluindo a censura e a perda de direitos de participação), aborto, prisão sem trânsito em julgado, direito de constituir advogado ou não, direito das forças policiais atirarem contra cidadãos mesmo sem instaurar inquérito, averiguar provas, instruir processo: metade da população de Taliãolândia era a favor, e metade violentamente contra todos os princípios de um Estado democrático de direito.

A discussão em torno de aspectos tão radicalmente fundamentais havia sido obliterada pelo partidarismo típico dos taliãolandeses: há muito que, para esta analfabeta e dançante população, política eleitoral e futebol eram a mesmíssima coisa, de modo que possuir e expor opinião política consistia em mais uma vertente do jogo de futebol, que implica em massacrar a torcida do time adversário não por motivos lógicos e racionais mas... porque torce para o time adversário.

Assim, a proposta de Ricardo Walter sacudiu o cenário: concretamente, a plataforma política dele previa que, assim que eleito, os cidadãos iriam aos cartórios assinar seus contratos. Mas os termos dos contratos estariam dados pelas manifestações pregressas dos cidadãos: aqueles que, antes das eleições, haviam manifestado publicamente, nas redes sociais, que eram a favor da pena de morte, por exemplo, assinariam um contrato no qual aceitavam viver em um país onde poderiam ser sumariamente assassinados por policiais se, de repente, esses policiais achassem a bunda da esposa desse cidadão atraente e estivessem interessados em fuzilá-lo para estupra-la em alguma viela escura e depois inserir papelotes de cocaína no porta-luvas de seu carro.

Já aqueles que manifestaram nas redes sociais serem a favor do Estado democrático de direito, teriam o direito a constituir advogados, à ampla defesa, e a só serem efetivamente condenados se, ao cabo do devido processo legal, ficasse provado seu crime.

Segundo a proposta de Ricardo Wagner, os dados deveriam ser colhidos de maneira retroativa, a fim de assegurar que os cidadãos, que defendiam tão apaixonadamente suas posições antes das eleições, não mudassem de ideia quando o sistema fosse de fato posto a funcionar. A proposta previa ademais, apurara Hans, que ao assinar os contratos os cidadãos receberiam novos documentos: verde para aqueles que eram a favor do Estado democrático de direito, preto para aqueles que eram contra direitos e garantias fundamentais. Estes últimos não teriam direito a um sistema público de saúde e à aposentadoria, por exemplo, mas Hans apurara que a população só se dera conta disso realmente quando do dia da posse.

Hans estava empolgado. Era o dia da posse de Ricardo Walter e ele conseguira um espaço no camarote reservado à imprensa. Todos aguardavam o início da cerimônia quando, de ambos os lados da ampla avenida Galiléia, os dois carros apontaram: de um lado, o atual presidente da Taliãolândia, Miguel Tâmisa, que deveria caminhar até encontrar-se com Ricardo Walter e passar-lhe a faixa presidencial.

Do outro lado, Walter desponta acenando. Extasiados, os jornalistas e observadores internacionais começam a transmitir ao vivo este momento inédito em que um novo regime de governo, tão radical, será empossado, fazendo cada qual suas inúmeras considerações: funcionará? Saberão ceder à ele aqueles que mais sofrerão, ou seja, aqueles que defenderam o fim da Previdência, do sistema de saúde, da democracia?

Tâmisa caminha a passos largos, com as mãos atrás das costas, para no meio da avenida Galiléia e encara Walter, que ainda precisa dar alguns passos para encontra-lo. Mas, súbito, quando Ricardo Walter se prepara para dar os últimos passos ao encontro da Faixa Presidencial, um grupo de militares o cerca, o golpeia, se joga sobre ele e o retira de cena, entre uivos e aplausos da multidão da Taliãolândia, ainda dividida.

----- Nós não assinamos contrato algum, disse Tâmisa à atordoada imprensa, enquanto passava a faixa a Fecalsaro. “A proposta de contrato era do Ricardo Walter, mas, como ele era subversivo pedófilo comunista maconheiro, nós o prendemos, em nome da Pátria e de Deus, e reestabelecemos a ordem”.

---- Mas, o que é a ordem?? Gritou Hans, indignado, sem poder conter-se e assustando-se, inclusive.

---- A ordem, meu filho, é quando quem pode manda e obedece quem tem juízo. Lei é para bater nos outros, não para fazer justiça, declarou Tâmisa, ovacionado pela multidão.

Deprimido, Hans voltava ao aeroporto quando deparou-se com um grupo de manifestantes. Abaixou os vidros do carro, contra a vontade do taxista, que mal teve tempo de gritar que não o fizesse. Arrancado para fora do carro, Hans teve todos seus pertences furtados pela massa que o pisoteou e machucou bastante.

Depois de arrastar-se para o carro novamente, desesperado, num esgar de choro perguntou ao motorista: “quem era aquela gente? Me roubaram tudo o que eu tinha! Me bateram”.

---- Manifestantes contra a corrupção senhor, respondeu, palitando os dentes, o motorista.

Na Taliãolândia, aprendera Hans da pior maneira possível, a única lei é a de Gerson: levar vantagem em tudo, da qual decorre o artigo segundo: aos amigos, tudo! Aos inimigos, a lei.

Bruno Walter Caporrino
Manaus, outubro de 2018
(Revisado em fevereiro de 2019)

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