Dos
benefícios da realização da consulta prévia: da segurança jurídica ao
aperfeiçoamento dos projetos e medidas
Bruno Walter Caporrino
Fotografia: Bruno Walter Caporrino. Comunidade de Padaria, RDS do Iratapuru, Amapá, 2013. Zeiss Ikon Contaflex e película Ilford Delta 100, 35mm.
Em meio aos debates que permeiam o Fórum, acho importante lembrar que o Brasil, como signatário (em 1989) da Convenção no. 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT, (da qual é membro) incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto 5.051/2004 (revisado pelo 10.088/2019) e ocupando, por seu estatuto de tratado de direito humano, posição supra-legal (acima de todas as outras leis, e no nível da Constituição Federal), se obriga, portanto, a proceder a consulta prévia, livre, informada, de boa-fé e culturalmente adequada (Art. 6o da Convenção). Esse artigo do tratado ratificado pelo Brasil e que tem peso constitucional determina que:
1. Ao aplicar as
disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos
interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de
suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas
legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
b) estabelecer os meios
através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo
menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na
adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de
outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam
concernentes;
c) estabelecer os meios
para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos
casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.
2. As consultas
realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de
maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e
conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. (OIT, 1989).
A
fim de salvaguardar o direito das populações indígenas e tradicionais à
participação cidadã diferenciada e reforçando o direito à autodeterminação e ao
autogoverno que a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, da
qual o Brasil também é signatário, o processo de consulta prévia, livre,
informada, de boa-fé e culturalmente adequada deve ser realizado antes que
qualquer empreendimento os afete e durante todo o processo de licenciamento
ambiental. Achei importante lembrar isso aqui no fórum pois se trata de algo que
o Ministério Público Federal tem recomendado insistentemente e que é
reivindicado pelas populações indígenas e tradicionais.
O
teor da Convenção se coaduna ao que prescreve o diploma constitucional e, por
isso, foi ratificada. O direito à participação se estende a todo cidadão
brasileiro, sendo portanto necessário averiguar a legitimidade dos
procedimentos de consulta à população não-indígena. Um aprendizado muito
importante que a consulta prévia aos povos indígenas e tradicionais nos traz
são seus protocolos de consulta, instrumentos próprios, como previsto pela OIT
169, por meio do qual determinam os critérios de legitimidade do processo de
negociação com o Estado, definindo quem os representa, qual o quórum para uma
decisão ser efetiva, quantas reuniões deve haver, quem deve estar presente e
quem não deve em qual reunião.
Desenvolveram
esses mecanismos porque, ao longo da história, os colonizadores foram hábeis em
escolher "quem fala e representa esses índios", ferindo gravemente o
princípio da autodeterminação dos povos e o fundamento do autogoverno,
amparados, respectivamente, pela Convenção 169 da OIT e pela Declaração da ONU
de 2007. Era comum que o poder colonial escolhesse quem eram os
"chefes" e assim fez o próprio SPI.
O
aprendizado que os povos indígenas e tradicionais nos trazem com os protocolos
é que se apropriaram melhor que nós mesmos, ocidentais, da democracia
representativa. Assim, como o direito à participação das decisões do Estado se
estende a todos os cidadãos, todos têm que ser consultados e, no nosso caso,
não-índios, os critérios de legitimidade das decisões e da representatividade
deve ser pactuado.
Cumpre
salientar que a BR 319 não matará as filhas dos manauaras com leishmaniose e
estupro, não as afetará tanto quanto às indígenas e tradicionais, então é
razoável que todos consideremos isso quando pensarmos no empreendimento. Ele
cortará os mundos deles, não os de quem está nas grandes cidades.
Dito
isso, é importante pontuar que para que o Estado democrático de direito seja
realmente efetivado todos têm de ser consultados e, repito, a questão é
definirmos quem, entre os 2.5 milhões de mauaras e etc fala pelo
"Amazonense". É dizer: se um brasileiro vai à Washington, por
exemplo, e diz ao governo estadunidense que os brasileiros desejam que todo o
lixo nuclear dos Estados Unidos sejam despejados no Brasil, esse cidadão fala
em nome do coletivo que diz representar?
A
segunda questão que o processo de consulta prévia, livre, informada e de boa-fé
nos ensina é que quanto mais prévio, livre de chantagens, coerção, coação,
pressão e ameaça; quanto mais informado forem todos os cidadãos, subsidiados
com informações idôneas e neutras, e quanto mais organizados forem os cidadãos
acerca de como desejam se reunir para pactuar decisões, mais apurado e bom para
todas as partes é qualquer projeto.
Quanto
mais informações de qualidade toda a sociedade brasileira obtiver acerca dos
impactos que qualquer obra traz e quanto mais fóruns deliberativos tiver, e
quanto mais legítimos forem esses fóruns, melhor para todos. Resumidamente,
portanto, cuido que todos deveríamos parar de "nivelar por baixo",
libertando-nos da lógica da escassez segundo a qual para um grupo se dar bem
outro tem, necessariamente, que ser prejudicado. Essa lógica faz com que a
população aceite mineradoras construindo barragens precárias, aceite a total
fragilização da legislação ambiental e do licenciamento, disputando a tapas as
migalhas de empreendimentos bilionários que instituem precariedade para causar
disputas e, assim, instalar-se com o menor custo e maior lucro.
Assim,
se todos são devidamente consultados, previamente, sem pressões ou ameaças, e
com base em informações aprofundadas, o que é um processo longo, ao fim dele é
possível chegar a alternativas inclusive muito mais eficientes e melhores.
A
experiência mostra que nos contextos
onde houve consulta prévia aos indígenas e tradicionais e o processo de
consulta aos cidadãos não-indígenas foi longo, amplo, superando as audiências
públicas que são perigosas por serem sumárias e sem representantes de todos os
segmentos; nesses contextos os projetos foram debatidos por toda a sociedade,
os prós e contras foram esmiuçados e outras propostas, inclusive muito
melhores, foram desenhadas. Ou seja, todos os cidadãos têm de ser consultados, aos
indígenas e tradicionais a OIT 169 assegura que esse processo seja diferenciado
para compensar desigualdades nas condições de compreensão e ofertar os direitos
em igualdade (CF art.5o) e a decisão deles têm que ter peso 2, primeiramente
porque serão seus mundos os mais afetados e em segundo lugar por serem os donos
originais da terra.
Quando
o mercado consegue colocar os atores uns contra os outros, alegando que a
proposta pronta deve ser aceita, ele.nega a possibilidade de se construir
outras propostas. Isso é lucrativo. Para as empresas. A Vale é um exemplo e
Mariana e Brumadinho demonstram que, se a sociedade civil tivesse conhecimento
prévio do empreendimento e pudesse alterar a proposta, exigindo como condição
para sua instalação, portanto, outros tipos de barragem, outros lugares para
elas, etc, todos teriam lucrado e o fim do Rio Doce e das vidas de 200.000
pessoas teria sido evitado.
Todos
têm que ser consultados, aos indígenas e tradicionais o peso da decisão deve
ser maior e as consultas aos não-índios devem ser mais qualificadas: definir
quem fala em nome de quem, quem toma as decisões em nome de quem, possibilitar
que toda a sociedade tenha acesso a informações verdadeiras e sérias e possa
debater sem ameaças ("ou você aceita o projeto ou demito os professores da
escola do seu bairro", como diversas vezes se verifica que ocorre, por
exemplo). Com consulta ampla e qualificada todos ganham.
Adianto
o tema do próximo texto dessa série: licenciamento não é consulta prévia.
Convenção 169 da OIT, em consonância à Constituição, não determina
quilometragem para a Consulta Prévia, o que feriria o direito de
autodeterminação. Destarte, é importante colocar a questão da consulta prévia
como pauta qualificada maro-zero, sob o risco de cometer etnocídio e mesmo
genocídio, o que ninguém quer. Quanto à essa discussão sobre quilometragem, me
recordo de uma frase que os Wajãpi, primeiro povo indígena a ter um Protocolo
de Consulta e que tive a honra de ajudar a construir dizem: "placa não
fala".
Carapanã
com malária, peão molestador de criança, mercúrio, grileiro, pistoleiro, não
obedecem quilometragem ou respeitam limites de áreas protegidas, de modo que os
impactos da conexão instaurada pelo asfaltamento transcendem em muito, e
brutalmente, quilometragem. Cumpre lembrar o posicionamento do MPF, expresso
pelo doutor Felício Pontes quanto à fragilidade da legislação ambiental ao
determinar quilometragem restrita e aspectos diminutos na avaliação dos
impactos.
Altamira,
caso pelo Procurador citado, teve um aumento de 500% no número de latrocínios e
de quase 200% no caso de estupro assim que a Licença para Instalação de Belo
Monte saiu. Por isso, quanto mais aprofundado e qualificado for um processo de
consulta e, portanto, debate, com mais informações de qualidade apropriadas e
discutidas por toda a população, ressalvando os direitos diferenciados dos
povos indígenas, melhor será o processo de decisão relativo ao empreendimento.
Como
saliento a tese de que "uns poucos
índios não podem parar a obra" é nula e, como tenho dito em diversos textos,
quanto mais legítimo, representativo, qualificado for o processo de consulta
prévia, mais qualificada fica a decisão da sociedade civil. Um exemplo é
Mariana: a população local aceitou as barragens em uma única audiência pública
de 5 horas na qual as 1500 paginas do Estudo de Impacto foram apresentadas num
Power Point e os impactos foram traduzidos apenas como "pequenos detalhes
técnicos".
O
restante da audiência pública foi destinado a versar sobre os empregos e
benefícios que a instalação da barragem prometia. A população de Mariana não
estava legitimamente representada nessa audiência, havendo moradores que sequer
conheciam as pessoas que diziam representá-los e, além disso, as comunidades
não tiveram tempo e meios para se apropriar do Estudo e discutir nas bases.
Investigações científicas demonstram que a população de Mariana, assim como de
Brumadinho, desconheciam como eram as barragens de rejeitos e os riscos que
aquela modalidade representava.
Mais
de 90% dos moradores afirmou jamais ter visto o corte transversal dela e
discutido os impactos, arrependendo-se da decisão. A grande conclusão é que
quanto mais consulta prévia, livre, informada, culturalmente adequada e de
boa-fé houver, mais aprofundada e qualificada será a discussão e a decisão e
quanto mais a sociedade civil conhecer em detalhes os impactos de qualquer
empreendimento e mais ela puder debater qualificadamente, melhor será sua
decisão e melhores as contrapropostas porque mais qualificada a pauta.
No
caso da BR 319 observa-se que as comunidades diretamente afetadas não estão
sendo consultadas conforme determinam a OIT 169 e a Constituição, o que é grave
infração a tratado de direito humano de peso constitucional e, ao mesmo tempo,
o debate conduzido pela sociedade envolvente ignora as verdadeiras pautas, como
o ordenamento fundiário, por exemplo. Ferrante e Fearnside já mostraram
cientificamente, provando o aumento nos índices de desmatamento na linha do
tempo e na série histórica.
O
ordenamento fundiário da região é frágil e, com a MP da grilagem, mais perigosa
ainda se torna a conectividade discutida. Uma das pautas que a sociedade civil
teria que conhecer e discutir é a do ordenamento fundiário, o que demanda uma
análise do Cadastro Ambiental Rural, CAR
no Sigef, que mostraria a corrida por terras que o simples debate sobre o
asfaltamento já causou.
Qualificar
a pauta e fortalecer processos e instâncias de debate para a sociedade civil só
traz ganhos a todos e possibilita a indução de políticas públicas mais
qualificadas para a região. Então, havendo consulta prévia, como provo em minha
dissertação de mestrado, políticas públicas que não eram eficientes ou
existentes no território passam a ser reivindicadas como condição sine qua
non para a instalação do empreendimento e as pressões oriundas do
deslocamento populacional induzido por ele serão melhor mitigadas.
Lanço
mão de um exemplo: qual é a situação do sistema de atenção à saúde nos
municípios da região cortada pela estrada? O Idesam fez um belo e aprofundado
estudo sobre esses 13 municípios e sabemos que, diante de seu IDH baixo, o
sistema de saúde não terá condições de atender a todos os inúmeros grupos que
se deslocarão para as margens da rodovia, por exemplo. Sem ordenamento
fundiário esses grupos se digladiarão por terras e a violência se instala.
Ninguém quer isso, a não ser uma minoria que visa promover especulação
imobiliária usando a BR como indutor de valor às terras do entorno e isso é
prejudicial à toda a sociedade.
Por
fim, é importante lembrar que todos os casos onde estradas que cortaram a
Amazônia sem consulta prévia e respeito às leis ambientais engendraram banhos
de sangue, como estão para provar os Waimiri-Atroari sobre a BR 174, os
Yanomami e Wajãpi quanto à BR-210, e todas as populações indígenas e
tradicionais, pequenos agricultores e extrativistas mortos na história da
Transamazônica. Tendo certeza que ninguém quer o genocídio, que estupro,
grilagem, malária, leishmaniose, pistoleiros, se instalem na região, reitero
que o único meio de evitar isso é realizar a consulta prévia nos termos da OIT
169 aos povos indígenas e tradicionais de todos os 13 municípios e realizar um
processo qualificado e aprofundado de
consulta à toda a população, pois conhecendo bem os impactos, discutindo isso
sem ameaça e pressão, pactuando consensos legítimos e estabelecendo
condicionantes, toda a população ganha.
Um
caso interessante é o dos Mura de Autazes e Careiro que tive a honra de ser
designado pelo MPF e pela Justiça Federal como perito para a realização do
Protocolo de Consulta e Consentimento Mura. A mineradora Potássio do Brasil,
que foi ré na ação e teve de parar sua instalação por descumprimento à OIT 169
e à própria legislação do licenciamento afirmou na audiência final do processo,
onde o Protocolo foi entregue, que avaliando o caso concluiu que seria muito
mais interessante para o empreendedor ter realizado a consulta prévia antes de
instalar-se.
Por
não ter realizado, sofreu processo, a planta ficou parada e foi responsabilizada
por uma série de ilícitos que sua instalação induz mas que não são de sua
responsabilidade. Assim, a própria mineradora afirmou que, se tivesse
conhecimento antes ,teria realizado a consulta prévia aos Mura e tradicionais e
debatido de forma clara e transparente com a sociedade civil sobre o
empreendimento. Afirmou inclusive que se tivesse feito isso teria se livrado de
responsabilidades que não são de sua competência, mas sim das prefeituras, do
governo do Estado, do governo federal: teve que arcar com custos de
infra-estrutura (UBS ,por exemplo) que não eram de sua responsabilidade ,e foi
responsabilizada pela grilagem e pelos assassinatos que a disputa por terras
gerada por sua instalação engendrou.
Se
tivesse havido consulta prévia e o ordenamento fundiário resolvido, se a
sociedade civil tivesse se apropriado do projeto e discutido de forma ampla e
legítima, sua instalação teria sido, como estimaram, 50% mais barata. Não tendo
consulta prévia, não puderam induzir uma série de políticas públicas e tiveram
que fazer coisas que não é seu papel fazer, além de serem obrigados a subornar
prefeitos e vereadores, comprar lideranças, etc; pagar um processo judicial
caríssismo. O próprio empreendedor concluiu que sem a consulta prévia
faltou-lhe a segurança jurídica necessária para operar, deixando tudo mais
caro, moroso, e improdutivo.
A conclusão a que se chega, portanto, é que Sendo o objetivo da consulta prévia assegurar a participação das populações indígenas e tradicionais nos processos de tomada de decisão de maneira diferenciada para que, com isso, possam exercer influência cultural e epistemológica nas decisões tomadas de maneira a fortalecer seus modos de vida e regimes de conhecimentos, o resultado final de processos de consulta deve ser considerado vinculante, ou seja, a resposta que esses povos e comunidades derem ao proponente, seja um "sim", um "não" ou um "sim, contanto que", deve ser totalmente considerado, sendo determinante para a realização ou não da proposta.
Caso os afetados neguem a sua implementação, o proponente pode refazer o projeto ou proposta, incorporando as sugestões do povo ou comunidade, e submeter essa nova proposta a outro processo de consulta. Novamente, fica claro que a consulta prévia não apenas salvaguarda direitos desses povos e comunidades e direitos ambientais, como inclusive aperfeiçoa toda e qualquer proposta ou projeto, que vai sendo aperfeiçoado. No fim, os impactos acabam sendo diminuídos e, em muitos casos, poderão até mesmo ser praticamente nulos com esse aperfeiçoamento dos projetos e proposta