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terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Pequena autópsia de um povo sem alma



Bruno Walter Caporrino

Escrito em Agosto de 2016
Publicado na Revista Peixe-Elétrico #6[1]
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Ficha Técnica Peixe-Elétrico # 6
ISBN: 9788584741403
Selo: Peixe-elétrico
Data de publicação: 2016
Páginas: 140
TradutoresMauricio Acuña; Pedro Meira Monteiro; 

Heci Regina Candiani; Ricardo Lísias; José Oscar de Almeida;
IlustradorMarcelo Amorim

--- É preciso pintar todo o corpo da criança com urucum, para que os Donos não consigam “cheirar” seu princípio vital. Os Donos gostam muito do “cheiro”: para eles, é como uma flor, que eles podem querer arrancar da plantar. Se isso acontecer, a pessoa pode ficar louca, mudar o jeito como vê as coisas, passando a agir e se ver como cutia, anta; ficar doente, ou morrer, afirma Jawaruwa, enquanto espera, com a mão estendida, que a menina-moça que serviu-lhe a cuia com kasiri – a deliciosa cerveja de mandioca – venha buscá-la, agora que está vazia.
Aceito mais uma cuia. Sorvo, como manda a etiqueta, duma talagada só, enquanto Kasiripinã continua a prosa: “Muito antigamente, quando todos ainda se podiam ver como gente (mira), havia uma Cobra Grande, que devorava as gentes. Certa vez, conseguiram matá-la, e descobriram que seus desejos, coloridos, poderiam ser utilizados para ornar o corpo. Assim, Jacamim percorreu diversas aldeias avisando as gentes: venham pintar-se! Tukã moi morreu. Gente peixe, gente pássaro, gente anta, gente todas, chegaram e começaram a pintar-se. Gente Pacu pintou-se, dizendo ‘vou pintar-me como pacu’, e assim foi feito: pulou no rio, e lá está até hoje. Gente Jacamim, gente Anta, todas as gentes, tudos. Se pintaram enquanto nossos ancestrais, acanhados, apenas assistiam. Assim nossos ancestrais observaram como se pintavam copiaram essas pinturas, transformando-as em padrões de pintura que representam os das outras gentes. Se você pintar seu corpo igual mesmo onça, é muito perigoso! O Dono pode achar que você é onça, e você vira. Por isso fazemos os padrões, e tem regras, jeitos certos de usar”. Levanto-me para acender o cigarro de tabaco da roça enrolado em entrecasca de tawari no tição. Kasiripinã prossegue:
--- Tudo são gentes. Anta, cutia, pacu, veado, tudo. Moju, Dono das águas, lá embaixo tem sua aldeia. Poraquê é o tipiti no qual ele espreme goma de mandioca. Jacaré é seu banco, e pacu, por exemplo, seu beiju.
O recém-nascido tem seu corpo totalmente coberto de urucum, a fim de protegê-los dos Donos, enquanto todos nós nos pintávamos com urucum misturado à gordura de macaco quatá, para proteger nossas peles e preservar por mais tempo os padrões gráficos kusiwa que já tínhamos no corpo: aqueles aprendidos, copiados, pelos Wajãpi ancestrais, na época em que Tukã Moi foi morta.
Os padrões Kusiwa são a ponta do iceberg dos belo e riquíssimos regimes de conhecimentos Wajãpi. Regimes de conhecimentos realizados cotidianamente na prática: nas roças, nos caminhos, nas caçadas e pescarias, nas festas, na dispersão pelo território essencial para a gestão socioambiental, e que, comprovadamente asseguram sua qualidade. Nessa época, 2010, eu ainda trabalhava como assessor para o Programa de Formação de Pesquisadores Wajãpi: desde que os padrões de pintura corporal Wajãpi foram reconhecidos pela Unesco (2002) e pelo Iphan (2003) como patrimônio imaterial da humanidade e do Brasil, os Wajãpi, sempre extremamente organizados, construíram, com ajuda do Instituto Iepé, um Plano de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Wajãpi: um plano de ações voltadas ao fortalecimento das condições essenciais para a realização plena, cotidiana, vivida, de seus regimes de conhecimentos e relações.
Uma das muitas ações que os Wajãpi inseriram no Plano (todas intimamente correlacionadas) foi a formação de 20 pesquisadores Wajãpi. Esses jovens pesquisam os regimes de conhecimento Wajãpi, a fim de tomar consciência daquilo que é, por definição e excelência, inconsciente: a lógica que tudo liga no âmbito desses sistemas de conhecimentos, e as maneiras como essas lógicas são instanciadas na prática, na vida real. Nesse momento eu assessorava os pesquisadores – era a reta final para a conclusão de suas monografias, todas redigidas em língua Wajãpi e feitas com base na sistematização dos saberes coletados em entrevistas com os sábios – processo em execução contínua há mais de dez anos.
A grande tarefa a que nos dedicávamos era sistematizar os saberes, a fim de comparar narrativas e construir clareza a respeito da maneira como todos os saberes se ligam. Paralelamente a isso, esse Programa, que acabou formando jovens lideranças de forte expressão na conformação do Plano de Gestão Socioambiental, por exemplo, visava qualificar traduções: basicamente, destruindo a fácil ideia de que seja possível traduzir palavras, termo por termo, entre regimes de conhecimentos diversos. Todo o esforço dessas formações está em demonstrar que não existe tradução: mas que é possível construir explicações, e que, para que se possa explicar um elemento do conhecimento Wajãpi para um não-índio é necessário conhecer muito bem seu regime de conhecimento, e vice-versa. Construir explicações entre regimes diferentes exige que se os conheça, e que se frise, a todo momento, suas diferenças.
A conversa é interrompida por forte vendaval. Nos idos de 2010, o clima na terra indígena ainda não sofria as mudanças que, sensíveis, os Wajãpi já percebem hoje, e estávamos em pleno verão. Forte chuva era anunciada pelas densas e negras nuvens que se avizinhavam. “Estranho”, falei. “O tawari apagou-se. Será que alguém matou sucuriju, para chover assim, do nada?”. Todos rimos.
Saímos dessa aldeia e, no dia seguinte, em outra aldeia, ficamos sabendo que Sisiwa, que tem pajé forte, perdera um excelente e precioso cão de caça: engolido por uma sucuriju. Sisiwa tem pajé forte: nutriu-o e, com ele, pode enxergar as criaturas visíveis e invisíveis, dialogar e negociar com elas. Por conta disso, lhe foi dado abater a sucuriju que estava no igarapé no qual banhava as crianças. Matar sucuriju, criatura do Dono da água, é muito perigoso...
Por essa época, fiz uma mais um bloco de viagens à diversas aldeias, umas seguidas das outras. Como meu regime de trabalho preconizava a permanência em terra indígena por no mínimo 45 dias, e me facultava em média 15 dias de permanência em Macapá, mal saí da terra indígena embarquei para Belém, a fim de passear um pouco na cosmopolita capital. Atei minha rede no convés superior do Barco a Motor Ana Beatriz, e relaxei, disposto a curtir as próximas 24 horas à bordo.
Estranha febre, contudo, apoderou-se de mim. Em menos de quatro horas de viagem, ardia em febre: eram 17:00 hs. “Hora da malária”, pensei. Tranquilizei-me, imaginando que se tratava de mais uma malária vivax, e sabendo que os calafrios que causam tremores incontroláveis, e a febre forte, poderiam ser sanados em Belém. “Mano, tu tás suando tanto que tua rede tá pingando”, fui acordado por uma senhora, preocupada. Disse-lhe que poderia ser só mais uma malária, e quedei-me tranquilo: das cinco malárias que já tivera, quatro vivax e uma falciparum, só me preocupava sofrer novamente outra falciparum – essa sim extremamente perigosa, com considerável risco de óbito.
Quando aportamos em Breves, no meio do caminho, a febre estava tão forte, e meu corpo tão debilitado, que achei conveniente solicitar à essa senhora que já zelava por mim, preocupada, alguma atenção. “Tomara que não seja falciparum, mas até saber, não, obrigado, acho melhor não medicar”, disse ao comandante, que viera me ver enquanto embarcavam carga na embarcação, provavelmente acionado pela desconhecida senhora.
“Quem mandou comer peixe reimoso, olha aí, agora buiou”, ainda gracejei, visando tranquilizá-lo para que não decidisse me desembarcar em Breves. Viajando sozinho, calculei não ser bom negócio, já que íamos a Belém mesmo. Quando avistamos Belém, eu já não sabia se delirava ou de fato contemplava a linha de arranha-céus que se apodera da capital. Não sei como desembarquei. Sei somente que meu check-in no hotel onde tivera feito reserva era para meio-dia e que ainda eram 09:00hs quando um guarda repreendeu-me por deitar-me no banco da praça do Gasômetro, sem forças sequer para abrir os olhos, e sofrendo terríveis dores de cabeça. Frio!
Estranhando a força da febre e dos tremores, optei por dar entrada no hotel e descansar, pois os sintomas diferiam daquilo que sentira durante os outros episódios. Delirando na praça, coberto com a página principal d´O Liberal por morrer de frio sob os 35 graus Celsius típicos de Belém, comecei a lembrar de Viviane, sim, Viviane, a moça que morrera entre os Katukina do Rio Biá, povo com quem vivi e trabalhei no Amazonas antes – eu havia pego sua vaga, em 2009, alguns anos depois de sua morte.
Dei entrada no hotel, pedi mais três cobertores, e, sob o intenso calor da capital paraense, passei três dias trancado, delirando, até começar a urinar um líquido negro. Imediatamente me lembrei dos trágicos episódios que vira entre os Katukina, no Amazonas: “hemogoblinúria. Estou mijando hemoglobina. Em pouco tempo não poderei mais oxigenar tecidos. Falciparum é um plasmódio que se instala no cérebro – por isso a insuportável dor de cabeça”. Juntei forças, tomei um taxi, e peregrinei por todos os postos de saúde que me indicavam, juntando, com muito custo, minhas poucas forças.
“Ah, isso é dengue”. Foi o que ouvi nos três primeiros. No superlotado posto do Guamá, a ira, associada à cefaleia, devolveu-me a têmpera: “doutor, como podes afirmar, como fizeram os demais, que se trata de dengue, se sequer colheram meu sangue? Eu venho de uma terra indígena, zona endêmica de malária. Meus sintomas denotam falciparum, pois tenho insuportável cefaleia e hemoglobinúria, além da febre terrível. O senhor vai fazer só isso: pedir um exame da gota espessa, fazer pesquisa por plasmodium, e, confirmando, vai me dar primaquina e cloroquina”. O displicente sacerdote de branco do Saber Ocidental olhou-me com desprezo, levantou o bolso do jaleco, onde constavam seu nome e o número do CRM, e me mandou embora perguntando: “quem é o médico aqui?”.
Revoltado, cambaleei até a saída, onde a assistente social que me dera informações perguntou: resolveu?. “É dengue, disse ele, e me expulsou do consultório”. Fizestes o exame de sangue –  ela me perguntou?
--- Não, a bola de cristal do Saber Ocidental pós-moderno do médico, esse ser racional que opera segundo os ditames do Novum Organum contra os médiuns charlatães, por meio de método científico, permitiu-lhe diagnosticar-me em exames laboratoriais, e mesmo clínicos – sequer contaram minhas plaquetas! Ao dizer isso, uma bela médica que caminhava a passos largos deu meia-volta: “qual seu problema?”, perguntou. Narrei-lhe os sintomas ao que ela só fez preencher um pedido de hemograma. Colhido o sangue, aguardei sobre um banco no corredor, a delirar com sucurijus que viravam arco-íris – sua representação, pelo conhecimento Wajãpi – e com as podak, finas, esbeltas, e elegantes canoas Katukina, feitas unicamente com a casca do jatobá – tão finas e leves que o vento as leva. Assim eu quase havia perdido a minha, em 2009.
--- Sua hemoglobina está muito baixa, muito mesmo! Disse assustada a complacente Sacerdote de Jaleco Branco do Pós-Moderno Conhecimento Ocidental. Analisando parâmetros, dados colhidos sob o mais rigoroso método científico, ela contemplava uma análise laboratorial, científica, de meu sangue, consagrando o triunfo da Razão sobre as trevas da ignorância na qual, para o Ocidente pós-moderno, os “primitivos índios, esses seres da idade da pedra” ainda viviam. “Agora consigo um diagnóstico, minha primaquina, minha cloroquina, e me jogo na cama do hotel sob todos os cobertores do mundo”, pensei.
Frio!
--- Deve ser dengue, tome analgésicos. Essa foi a sentença produzida pela médica, as mãos no bolso do jaleco, o iPhone (uma riqueza, em 2010) a brilhar entre os finos dedos da mão direita. Numa cadeira de rodas, rumei até um taxi, cujo taxista me carregou até a cama do hotel. A partir desse ponto, não sei contar o que vivi ali, e o que era verdade e o que era delírio. Até que, no terceiro dia depois dessa tentativa de busca por auxílio do Sistema Único de Saúde, no qual, como todo bom cidadão ocidental civilizado eu depositara minha vida, o gerente do hotel viera me ver, perguntando se eu poderia deixar o hotel até as 17:00hs. “Precisamos desse quarto, pois as reservas são feitas pela internet, pagamento com cartão de crédito, não há como mudar o sistema”, sorriu amarelado.
A indefectível lógica cartesiana do Ocidente pós-moderno reside em mim: meu corpo, minha pessoa, meu Eu, são frutos dela. Como é frustrante ser feito à imagem e semelhança de um sistema simbólico, de um regime de conhecimentos, onde não há espaço para sua própria manutenção orgânica.
Sistemas! Sistemas racionais, lógicas sistemáticas: urinando um denso líquido negro, que manchou o chão do box, perguntei-me como faziam para manter a água na caixa d´água, a 16 andares de altura. Delírios. A viagem de 24 horas embarcado, de volta a Macapá é uma incógnita que se encerra com minha chegada em casa e, no dia seguinte, no escritório, o assombro dos colegas. “Você está cadavérico! Você está verde, muito verde”. Hepatite, pensei. Suspeitando não ser malária – ah, como somos crentes, crentes na lógica pragmática pós-moderna! – por crer nos médicos, fui trabalhar.
Nesse mesmo dia, fui acordado por colegas de trabalho que me banhavam – com roupa e tudo. Fortíssima febre e indescritível cefaleia me abatiam, e nesse momento eu só conseguia me concentrar em respirar – o que já era muito. Fui levado ao hospital de emergência de Macapá, onde fiquei internado por três dias e três noites: a pesquisa por plasmodium revelou malária mista – vivax e falciparum ao mesmo tempo, com 4 cruzes cada. Sozinha, a falciparum leva a óbito em oito a dez dias. Era meu nono.
Quedei-me internado num banco do corredor. Feliz da vida, entre momentos de extremo delírio e períodos de consciência, por ter conseguido o resultado (e os medicamentos) e por estar internado – ao menos. No segundo dia consegui uma maca de aço inox, que se usa para autópsias. Amigos que me visitaram dizem que eu tremia tanto que o ruído sobre a maca de metal parecia uma bateria de escola de samba. Há que rir. E o fiz.
Cacique Seremete foi me visitar. Passava pelo Hospital de Emergência em sua peregrinação por atenção à saúde: “médico mentiroso! Não acredita! Quem tem pajé pode ver os Donos, quem tem pajé pode conversar com criaturas, ogros, da floresta: pode oferecer tabaco, tirar doença. Essa minha doença mesmo: cânci. Não tinha isso antes! Nenhum Wajãpi tinha isso antes! Tudos doença a gente sabe tratar! Essas não. Médico diz que vai dar remédio, química, para tratar. É mentira. Espírito não-índio que me deixa doente é o mesmo que te deixa doente! Não existia malária para nós antes de começarem a chegar os não-índios na nossa região. Quem tem pajé tem que aprender a conhecer esses espíritos – saber o que eles querem, e poder tirar doença, negociar”, falou-me, consternado.
Como muitos Wajãpi, Seremete pegou malária logo depois de mim, juntamente com muitos outros Wajãpi. Isso não esqueço: em 2011 a Terra Indígena Wajãpi viveu um surto de malária. “Igual quando karai kõ, não-índios, chegaram, em 1970: Funai juntou nós tudo para aldeias centrais. Não é assim que moramos, você sabe. Fazemos nossas aldeias espalhadas. Moramos um pouco num lugar, depois fazemos roça em outro lugar, onde tem muito cocô de minhoca, terra plana, preta, e com areia, aí mudamos para lá. Quando karai kõ chegaram, juntaram nós: para proteger da malária e do sarampo que eles mesmos traziam!”, diz o grande cacique Waiwai Wajãpi, na aldeia Mariry, algum tempo depois que, curado da malária, retornei às aldeias, para ficar por mais cinco anos assessorando o Conselho das Aldeias Wajãpi Apina, a associação, a fazer seu Plano de Gestão Socioambiental, intitulado “Como estamos organizados para continuar vivendo dos jeitos Wajãpi”.
Por quê será que há tanta malária agora? Era essa a pergunta sobre a qual refletíamos, os pesquisadores e eu, antes de irmos às aldeias reunir as comunidades para reuniões onde eles, os pesquisadores Wajãpi, lhes faziam essas perguntas. O boom de malária surgiu quando a Secretaria de Estado da Educação começou a oferecer aulas de 5ª a 8ª série, centralizando todos os Wajãpi em apenas três escolas e promovendo a centralização da ocupação do território, algo totalmente contrário a seus jeitos de estar e percorrer as florestas.
Superpopulosas, as aldeias centrais passaram a sofrer junto com os Wajãpi, pois não é esse seu regime de ocupação do espaço, não é assim que caçam e partilham a caça; plantam, colhem, e partilham os produtos da roça; moram, caminham, vivem. O surto de malária caminhou de mãos dadas a outros problemas socioambientais e, portanto, de saúde, ao mesmo tempo, nossa reflexão caminhou para desvendar isso: com o tempo passou a ser preciso caminhar cada vez mais para caçar, pescar; os lugares bons para fazer roça passaram a ficar cada vez mais distantes das aldeias – sendo que o correto é fazer as aldeias em função das roças, e não o contrário...
Políticas públicas: atuação do Estado. A atenção à saúde indígena, que deve ser diferenciada, segundo comina ampla legislação, centraliza e sedentariza, em vez de acompanhar a dinâmica de ocupação espacial essencial à manutenção dos ambientes que é, por sua vez, essencial para a manutenção desses jeitos de conhecer, transmitir conhecimento, se organizar e viver. Uma das maiores reivindicações dos povos indígenas do Brasil é essa: que o Estado respeite o direito à sua autodeterminação, assegurado pela Constituição, e secundado pela legislação infra-constitucional, e os reconheça como cidadãos de direitos, como são. Mas trata-se de direitos diferenciados, a fim de que se preserve as condições para que continuem usufruindo de seus direitos à autodeterminação, a ser o que são por si mesmos.
Parece, contudo, que o Estado, em seu pensamento estatístico, os atropela. Parece, contudo, que o Estado, esse Totem da lógica racional e pragmática ocidental moderna, não é lá tão racional e moderno assim... de jaleco branco, o Estado ignora o indivíduo, não lhe estende o direito à ter alma. De Jaleco Branco e luvas, o laboratorista analisa meu sangue: usufrui de um sistema de conhecimentos calcado na cisão natureza/cultura, cisão na qual cultura se faz, justamente, mediante a superação e o domínio da natureza, sua manipulação – já que a natureza é, para esse sistema, entendida como inerte, inanimada, incapaz de inteligir, de ter agência, e de reagir.
Surtos de doenças como diabetes e hipertensão assolam populações tradicionais no Brasil: a merenda escolar, que poderia ser regionalizada (há lei para isso) consiste em carne em conserva, suco em pó, e assim vai. A educação que deveria ser diferenciada consiste em um uma brutal máquina pós-colonial de conversão das almas das gentes, soberanas sobre seus próprios sistemas de conhecimento, políticos, e de produção da vida em... consumidores treinados na periferia da periferia da periferia do sistema dos outros.
Em Belém, de folga novamente, em 2013, sofri um brutal assalto. Fotografava o Ver-o-Peso, enquanto minha bagagem e rede já se encontravam a bordo da embarcação na qual esperava retornar à minha casa – Macapá. Três sujeitos armados com facas tentaram furar-me, pelas costas. Reagindo mecanicamente, sem pensar, derrubei o primeiro ao chão, tomei-lhe a faca, e tentei defender-me do segundo, que derrubei com uma rasteira enquanto o terceiro mordia-me a mão. Ao girar com o corpo, rompi o ligamento do joelho direito – e capitulei. Eles roubaram minha carteira com identidade, dinheiro, cartão de banco... e a passagem do barco. “Blefado”, como se diz, voltei ao pequeno hotel onde estava hospedado, que me hospedou por confiança, até conseguir voltar a ter nome, pois sem RG e cartão de banco, sem dinheiro e sem poder andar, fui totalmente destituído de minha pessoa, de meu estatuto humano.
Os policiais que me atenderam disseram que eu fiz bem em reagir, embora eu me desculpasse por fazê-lo, sabendo que não se deve reagir a assaltos. “Égua macho, fizestes foi bem! A moda aqui é furar primeiro, roubar depois”. Na manhã daquele mesmo dia, os usuários de crack do centro de Belém haviam furado uma moça que, no chão, teve os brincos arrancados das orelhas. Não fui ao hospital e sem poder andar, voltei a Macapá dias depois – passando, novamente, por Breves, depois de provar, perante um juiz, que eu era eu, e poder sacar algum dinheiro no banco.
“Eles tentaram furar você? Por que?”, perguntou-me indignado meu amigo Jatuta, enquanto comíamos carne de veado moqueado com bem tucupi e pimenta. Roubar, respondi. “Vocês, povo da mercadoria, não têm alma: o corpo de vocês é igual casca, vazia”, respondeu-me o professor Aikyry Wajãpi, que contou, em seguida, como a Secretaria Especial de Saúde Indígena tratara sua filha e sua esposa quando essas, sofrendo com diarreias (que não existiam até bem pouco tempo atrás), buscaram atendimento no posto: “a culpa é do jeito que vocês vivem – igual bicho, no mato”, teria lhes dito o técnico de saúde.
Sisiwa me pedira uma saca de pacotes de tabaco Maratá e um isqueiro. Dei. Rezou meu joelho, que desinchou. “Mas não vai funcionar muito. Esse tipo de doença é difícil: não conheço os Donos de vocês”, disse, em Wajãpi. Descobri a cura faz pouco tempo: acometido por lancinante crise de apendicite aguda, que de chofre supurara, passei mais de 10 horas no mesmo Hospital de Emergência onde ficara curtindo as últimas malárias, urrando de dor, vomitando entre pessoas com deficiência mental que os parentes abandonam porque o Estado do Amapá não oferece mais atenção a essas almas.
 “Aqui a gente cura o corpo. Doença de alma é na igreja, esses endemoninhados têm que ser trancafiados e exorcizados”, resmungou o pastor evangélico que visitava uma senhora enferma que jazia sobre um colchão no chão. Com um esgar de nojo, ele cuspiu na lixeira ao sentir o odor de um desses tresloucados. Ah, a pós-modernidade! Manipulando seu smartphone, o pastor exigia a senha do Wi-Fi: queria conectar-se wireless para poder fazer um culto em livre stream para que, orando, na igreja, os fiéis lhe curassem com palavras. Feitiço – a palavra que age. Jamais fomos modernos.
Uma moça grávida de três meses sofria horríveis dores ao meu lado: toda sintomatologia de uma apendicite aguda também. Vomitávamos juntos na mesma lixeira, companheiros de desdita. Depois de dez horas sem ser medicado ou atendido, decidimos, minha amada Cabocla e eu, ir ao hospital particular, onde, mediante pagamento em espécie, e à vista – e somente assim! – fui operado. Dois dias depois, já em casa, fui informado pelo jornal local de que essa moça – e seu bebê – faleceram no Hospital de Emergência onde eu teria ficado se não tivesse conseguido dinheiro emprestado para custear minha cirurgia.
Pelos conhecimentos Wajãpi tudo está ligado. E tudo tem dono. Segundo esses regimes de conhecimentos, não existe “o pajé”, a pessoa pajé. Todos temos pajé. Você pode cultivar seu pajé, alimentando seus opiwarã com muito tabaco. Você cria, segundo essa epistemologia, fios invisíveis que te conectam aos donos, aos princípios vitais das criaturas – todas elas humanas, em essência, mas variadas segundo a manifestação de seus corpos.
Hoje, Sisiwa, eu sei. Cada vez que passamos por um processo de cura xamanística, nosso pajé se fortalece. Você pode cultivá-lo. Talvez por ter passado por algumas experiências de cura, hoje, Sisiwa, eu vejo: nossa doença está em nossa alma. Achamos que não estamos conectados. Achamos que somente humanos possuem agência – capacidade de agir, inteligir. Não atribuímos humanidade aos demais seres. Mas, o que é pior, colocando o corpo cartesiano, esse mecanismo separável em partes, manipulável, autopsiável, passivo, no centro de um sistema de conhecimentos calcado na cisão entre natureza e cultura e pressupondo, como fazia Descartes, que os animais não têm alma, que seriam mecanismos autômatos, fatiamos as esferas de nossas vidas: corpo é diferente de alma; só humanos têm alma, rim é rim, bois e homens os têm, mas, como os bois não têm alma... Assim como fatiamos as esferas de nosso conhecimento: matemática, química, física, história, geografia... alocamos o mundo em caixinhas, como Procustos ensandecidos que, não contentes em estripar a terra para extrair-lhe “recursos naturais”, cortamos e separamos a golpes de cutelo epistemológico.
O que é saúde? O Brasil vive, hoje, uma terrível epidemia de câncer: no filme “O veneno está na mesa”, Silvio Tendler alerta: o agronegócio, que devasta a Amazônia, promove o etnocídio indígena, está intimamente associado ao uso de pesticidas que causam essa epidemia. O que é doença? Vivendo e trabalhando com os povos indígenas, aprendi a fazer explicações sobre nossos próprios regimes de saberes. E, talvez, a fazer algumas perguntas: o que é qualidade de vida? O que seria cura? Vivemos a derrocada do Estado democrático de direito. O SUS capitula, juntamente com os demais direitos que constituem e base de nossa própria teoria do corpo e da pessoa.
“Dominamos a natureza”. Do alto do pedestal de nosso Totem Estado Pós-Moderno, pior, meu amigo Sisiwa, classificamos os próprios homens: sob o jugo de números, alocamo-los em um sistema de status que varia segundo as cifras que possuem os indivíduos em suas contas bancárias – variando, assim, seu grau de humanidade. Estamos todos doentes, e assim ficaremos, infelizmente, cada vez mais, ingerindo pesticidas, alimentando-nos mal, hipertensos, desnutridos, obesos, exaustos. Com a diferença de que não haverá sequer um sistema público de saúde para curar as feridas aparentes que decorrem da doença generalizada de nossa alma.

Macapá, setembro de 2016





[1] CAPORRINO, B. W.. Pequena autópsia de um povo sem alma - Um relato da experiência com o Programa de Formação de Pesquisadores Wajãpi e de quase morte nas redes do SUS do Pará. Revista Peixe-Elétrico, São Paulo, p. 01 - 22, 14 set. 2016. (http://www.e-galaxia.com.br/produto/peixe-eletrico-06/ )


terça-feira, 17 de setembro de 2019

Eu sou a selva em que transformastes minha floresta



Crédito da fotografia: Bruno Walter Caporrino

texto publicado originalmente em maio de 2014

As rajadas de chuva levantavam a palha de ubim, aspergindo o interior da casa com gotículas frias, quando João pegou o guarda-corpo de encerado, amarelo, e soprou o pavio do lampião à querosene. De súbito, o ambiente escurecido da casa, até então lambido sofregamente pelas sombras móveis projetadas de maneira lisérgica pela labareda, tornou-se taciturno, comunicando-se com sua alma.

--- Na volta tu traz mais querosene, pai?
A voz fina e anasalada de Maria era terna, e penetrou o coração de João. O vagido de Rita, pedindo o seio exausto da mãe, despertou-o do torpor.

--- Trago, filha. Bora ver se hoje me pagam a jorna.
Ao pisar o primeiro degrau da escada que levava do jirau de paxiúba da casa ao chão enlameado, lavado pela chuva que caía em bátegas, sentiu um estremecimento. O degrau, sempre solto, quase deitou-o ao chão, e só então realmente acordou. “Égua, que não vai parar de chover, não?”. Mas tranquilizou-se ao deparar-se com a mudança na luminosidade, que anunciava o afinamento da camada de nuvens. Estranho mesmo chover assim em agosto. Mais tarde, certamente, estiaria, e, então, o mormaço tornaria a lida no eito quase insuportável.

Lembrou-se de quando, ainda em Gurupá, remava sob forte chuva, dias seguidos, na apanha de açaí, e de quando voltava, jovem, portentoso, com dois matapis cheios de camarão, dois paneiros de açaí, apresentava à Maria o filhote que ainda agonizava, movendo as guelras, no fundo da canoa. Não era ruim tomar aquela chuva, afinal. Recém-casados, pouco tinham, mas eram donos de tudo. “Mas tomém, lá não tinha energia, hospital... foi melhor ter vindo”, pensou.
O percurso até a doca, tomado de lama, ainda não contava com o mundaréu de pontes que hoje lá encontramos. Estamos em Santana, e João da Mata Furtado de Araújo segue para a doca onde descarregará trilhos de ferro do navio de bandeira estadunidense Mormacelm. 

Exausto, por ter dormido apenas três horas entre um turno e outro, João da Mata percorreu o caminho até a Vila Toco, passando pelo alojamento da Icomi, a grande mineradora estadunidense que iniciava a exploração brutal do mais puro manganês amapaense, mediante mais violenta ainda injeção de capital público. O ano é 1955: a estrada de ferro que corta, lanha, a selva, até Serra do Navio, estava em início de construção, o que atraía cada vez mais refugiados para o Amapá “selvagem e inculto”, prontos para sorver, mediante escravagista labuta, algumas migalhas do rico manganês a ser extirpado do seio da terra dos índios Wajãpi. Pelas mãos amazônidas – para lucro estadunidense.

A chuva cessara quando Maria saiu da rede, engatando a alça do vestido no mosquiteiro, enquanto Rita dormitava em seu colo, com os cueiros alvos a refletir a pouca luz que adentrava a casa. Abrindo as janelas, Maria aspirou o ar lavado da costumeira poeira seca, e contemplou a paisagem gotejante. Para as bandas da muralha verde que rodeava o pátio de sua casa, ouvia-se o canto delator do uirapuru.

Anoiteceu, e Maria abandonou-se, exausta, em sua rede, feliz por saber que João traria o querosene, tão logo descarregassem o navio e, passando pelo escritório do capataz, receberia a féria. “A valença é que hoje os carapanãs deram trégua”, pensou, de olhos fechados, enquanto lânguido torpor se apoderava de seu corpo e sua mente cansados. Altercações. Uma porta que bate. Não sabia se estava sonhando, mas vozes grossas bradavam palavras incompreensíveis quando, sobressaltando-se, Maria saiu da rede, por impulso, e pôs-se a espiar pela fresta da porta.

À porta da casa de dona Raimunda, esta gritava com dois homens porrudos, que retrucavam, rindo, em idioma desconhecido e incompreensível. Os dois homens puxavam Dona Raimunda, levantavam seu vestido de chita, e chegaram a expor-lhe um dos seios, assediando a pobre comadre, que se debatia. Quando o mais alto lambeu-lhe o mamilo esquerdo, Raimunda conseguiu chutar-lhe o ventre, tombando-o de costas na lama do pátio. 

O companheiro, entre assustado e pândego, ameaçou-a com o indicador em riste, enquanto levantava o companheiro pela gola da grossa casaca de marinheiro.
Esta era a quinta casa da vila à porta da qual os dois batiam, a bradar palavras incompreensíveis para os moradores. Embriagados, afirmavam “procurar putas”.

Maria, assustada, mal teve tempo de passar a tramela por trás da porta, pois que os dois batiam violentamente, gritando palavras incompreensíveis. Em pânico, Maria pegou Rita no colo e, do jirau da cozinha gritou para sua filha, Marilene, que habitava casa vizinha:

--- Pega as criança, corre pro mato, tem gente invadindo!

Mal teve tempo de terminar o alerta quando a porta de tábuas cedeu, e os dois homens, que prontamente Maria percebeu serem dois marujos estrangeiros, postaram-se ao redor de si em atitude ameaçadora. Rindo muito, os dois empurraram-na para o canto da casa... derrubaram-na à força sobre a máquina de costurar, na qual cozia capachos de retalhos – sempre escorregadios sobre os assoalhos de madeira meticulosamente encerados e reluzentes das casas. Agarrando-se ao tipiti que dependurava a um prego, relutou, debalde.

O choro de Rita despertou-a, como que puxando-a de um abismo. Não sabia que horas eram, e nem por quê João se demorava tanto. Como que despertando de um choque, Maria só pôde ver os homens fechando o fechecler de suas calças, e, imediatamente, a consciência recobrada assaltou-lhe o cérebro e a alma como um punhal: estava fadada à infâmia, à calúnia, à morte lenta e agonizante, fadada ao ostracismo o mais brutal, em poucos minutos. 

O calor que escorria por seu sexo, que não pôde saber, de imediato, se era sangue, lembrou sua consciência da dor que ali sentia sem notar. Chorando, buscou recompor-se enquanto os homens, saciados em sua bestial luxúria, acendiam cigarros notadamente gringos – sabia-o pelo cheiro – ainda no pátio.

Tentava levantar-se para gritar-lhes quando ouviu gritos. Era João.

Tomado por fúria incomensurável, João tudo compreendera quando, aproximando-se do pátio da casa de Dona Raimunda, vira a porta ainda aberta, e sua comadre a chorar. Notando os homens parados em frente à sua casa, rindo, trocando tapas amistosos, João ouviu os gritos de Maria, e o chorar plangente de Rita.

Como um raio, João muniu-se de sua faca, a qual trazia sempre às costas, e gritou para os homens, tomado por tamanha ira que seus músculos mal respondiam à seus objetivos.

Ernest Lowery, 28 anos, cozinheiro do Mormacelm e natural de Baltimore correu primeiro, mas Alexander Pelock Jones, também cozinheiro no mesmo navio, natural do estado de Nova Iorque, demasiadamente embriagado, demorou mais a reagir, permitindo que João penetrasse a faca em suas rijas carnes – não obstante fosse corpulento, rosáceo e aparentasse ser obeso. Matando-o com uma só facada certeira no coração, assistiu o corpo cambaleante deitar ao chão, que tremeu ante a capitulação.

--- Ceis tão acostumado a bulir com mulher de família, desgraçados?, gritava-lhes, iracundo, João.

Agarrado pelos vizinhos, vociferava. Apesar de diversas testemunhas afirmarem que os dois marujos invadiram diversas casas antes de abusar de Maria, afirmando, no inquérito, procurar meretrizes, balançando o punho da rede das mulheres das casas vizinhas depois de as terem invadido, uma a uma, João foi condenado à prisão, onde foi espancado, pois o júri entendera se tratar de “cidadão perigoso”, já que portava uma faca, e considerou que assassinar um cidadão estrangeiro, contratado pela Foley Brothers, em plena ascensão da mineradora, era crime a se punir severa e, portanto, exemplarmente.

Maria, mais Rita, desaparecem da História, a fim de que tal episódio não maculasse a gloriosa imagem da Icomi, da empreiteira Foley Brothers, e dos bons cidadãos estrangeiros que não poderiam sentir-se acuados pela selvageria dos locais em sua empreitada civilizatória.

A construção da estrada de ferro prosseguiu. Hectares de floresta capitulavam sob golpes de machado, e, mesmo, explosões de bananas de dinamite, atraindo mais e mais refugiados do Pará e das ilhas de Marajó, como Afuá, Curuçá, Gurupá, Breves, a fim de que as terras nessas regiões passassem aos arautos do progresso e do desenvolvimento higienista, contra os índios, contra a floresta, contra tudo e todos. Sempre comandados por feitores, capatazes, engenheiros estrangeiros, esses “braçais” – como constam em suas fichas cadastrais de empregados da mineradora – eram descartáveis, uma vez que não se civilizavam, não aprendiam novas técnicas, não se desenvolviam. E, uma vez obsoletos, eram prontamente substituídos.

Em favor do progresso e da civilização.

                                                           ***
--- Mamãe, quando é que papai volta?, perguntou, indeciso, Edielson, tão logo a porta de casa abriu-se e, por trás da silueta de sua mãe, se pôde divisar o emaranhado de palafitas da Baixada do Ambrósio.

--- Vai tomar teu banho, senão tu pega é taca, gritou, irritada, Dona Jamaira.

Deixando sobre o jirau a cebolinha e o coentro murchos que catara no chão da feira, conteve as lágrimas enquanto descamava os dois miúdos acaris que conseguira comprar com o resto das moedas que guardava numa fresta da parede carcomida de madeira. Saiu para pegar água, encontrando Edielson a banhar-se com a única panela que lhes restava. “Te sai daí, seu moleque! Hoje tu não escapa, cachorro. Dá essa panela. Olha a água que tu gasta nesse banho”.

Edielson voltou-lhe um olhar feroz. Enrolou-se na toalha, contendo as lágrimas, e calçou os chinelos gastos, cada qual duma cor. De toalha mesmo, saiu para a ponte, errando pelas palafitas até encontrar-se com os filhos da vizinha, Dona Diva, que corriam em tropel em sua direção, fazendo a estreita ponte de madeira tremer e oscilar, como que a ameaçar cair sobre o lago sobre o qual flutuava todo tipo de dejetos. Assustado, Edielson estacou, provacando gritos de ódio dos rapazes que corriam com terçados em suas mãos: “sai da frente!”. 

De chofre, Edielson percebera o que ocorria: o grupo, composto por dois de seus próprios irmãos, Joel e Patrício, estava sendo perseguido por um grupo ainda maior de rapazes furibundos.

Afastando-se para permitir que seus amigos passassem, tomou uma resolução: tão logo seus aliados cruzaram a ponte, postou-se de maneira a bloqueá-la, as mãos à cintura, encarando o grupo de sicários que os perseguia, munidos de facas copiosamente afiadas à lima, a ponta do fio descrevendo uma elipse, e grandes terçados. 

“Eu sou é homem, eu!”, inda pensou, enquanto os golpes dos terçados fendiam seu rosto, decepavam suas orelhas, fendiam seus braços, e as facas penetravam seu tronco. Preocupados, os jovens agressores deram meia volta, a fim de atingir o grupo fugitivo na ponte paralela, interceptando-o.

Joel e Patrício não viram o que ocorrera com Edielson. Temendo por sua própria vida, enveredaram pela última ponte da Baixada, e, notando que o grupo que os perseguia afastou-se, adentraram na primeira casa que encontraram aberta, dentro da qual Mazinho os escondera, para pânico de suas irmã, esposa, e cunhada, já que os dois adentraram a sala, e rumaram para o quarto, fazendo o soalho e as paredes tremerem, os olhos esgazeados – e facas em riste. 

O grupo de perseguidores errou pelas pontes até varar a madrugada, quando, afrouxando-se a perseguição, Joel e Patrício retornaram à sua casa.

Tão logo chegaram à varanda, pressentiram a tragédia. Sua mãe urrava sobre a rede, amparada por Dona Neó mais algumas vizinhas, pranteando a morte de Edielson que jazia inerme e exangue sobre o soalho irregular, o rosto desfigurado, olho pendente, corpo cravejado que deixava seu sangue gotejar por entre as frestas do soalho maculado.

--- Não!!! Não! O que fizeram com ele? Quem fez isso? Gritava Patrício. Joel, enfurecido, nada disse: assomou à janela aberta pela qual entrava chusma de carapanãs, ofegante.

--- Nós vamos vingá ele, mãe.

                                                      ***
O sangue de Dona Jamaira escorria pelo rosto inchado, machucado a murros. Por não conseguir abrir os olhos, tateava os poucos móveis da casa a fim de orientar-se. Na rede, Alaor, seu marido, ressonava pesadamente. “Curte teu porre, fi de rapariga, que um dia tu pega o teu!”, resmungou. O estrondo causado pelas panelas que derrubara acordou Joel e Patrício, que saíram da rede que dividiam, falando alto. “Mãe, to com fome! Eu tô com fome, eu”.

--- Quietos, desgraça! Tão vendo que vão acordar teu irmão não?

Joel, o mais velho, sentia a têmpora latejar. Tomado por ódio, desguiou os olhos para seu pai que roncava na rede, embriagado. “Porre, porre, porre. Só vive porre esse cão! Para trazer comida para nós, não tem força, essa desgraça. Nem dinheiro. Mas para beber, esse filho duma égua...”. Lágrimas assomaram-lhe aos olhos moídos e inchados, aos borbotões, enquanto Joel abria a porta com força, ganhando as pontes.

Patrício encostou-se à parede, e deixou-se sentar ao lado do carrinho de picolé que tantas alegrias lhes trouxera quando o pai, ainda ativo, saía pelas pontes e beiradas a vender o tão cobiçado produto.

---- Papai não dá um não? Pedia Patrício, prontamente repreendido pela mãe, todas as vezes que, enchendo o carrinho de laranjinhas, chopps e picolés, o pai se preparava para caçar alguns vinténs debaixo do ímpio sol equatorial. Sorrindo, o pai sempre lhe presenteava com um chopp de manga, para desgosto de Jamaira. Bons tempos aqueles em que doces regalos eram acompanhados por brincadeiras inocentes nas casas de madeira em construção, e pelas intrépidas aventuras à procura de seu pai, picolezeiro, nas pontes e rampas em que atracavam os catraios e as lanchas...

---- Juro que eu mato esse velho! Eu juro! O ar quente e seco, pesado, que abatia a Baixada do Ambrósio, trazia o pútredo odor do esgoto e do lixo que tomavam o lago. Assomado ao odor nauseabundo do matadouro que fica próximo à Doca, o ar penetrava os pulmões viscoso, pesado.

Joel vagou pelas pontes, a esmo, até que, ao amanhecer, na feira, encontrou Seu Agenor, açougueiro. Hesitou... apertou as mãos, cerrando os punhos, passejou pela banca do homem, observando-lhe cada movimento, até que o esturrar de seu estômago faminto motivou-o:

---- Tio, arruma um pouco de carne para eu mais meus irmãos comer?, suplicou.

---- Sai daí, vagabundo! Toda semana é isso. Tem mais não. Acostuma aquele teu pai a trabalhar. E avisa para ele que ele, Alaor Gemaque, me deve cem cruzeiros! Isso mesmo: tá aqui ó – e mostrou o caderno ensebado, com contas à lápis, maculado por sangue.

                                                        ***
--- Alaoooooorrrr! Cadê você moleque? Mamãe tá te procurando, diz que vai te dar uma taca de cinta!

A estrada de ferro! Ah, como era bom colocar pedras sobre os trilhos quando o trem, carregado de minério, se aproximava, e observar, escondido, as pesadas rodas das locomotivas espocando-as. Chegava o trem, e Alaor partia, descalço, baladeira no bolso da bermuda surrada, para a pequenina estação. Papai viria? Contemplava, curioso, a movimentação dos passageiros que embarcavam e desembarcavam dos dois vagões de passageiros que a Icomi, benevolamente, em sua cruzada civilizatória, disponibilizava.

Tinha muita saudade de papai. Gostava muito de quando saía para apanhar açaí e o levava consigo. Mais feliz ainda ficava quando, caminhando na mata, colhiam maracujás selvagens, apanhavam açaí e pescavam – papai sempre deixava usar a faca. Lembrava-se com ternura dos invernos em que, indo caçar e pescar para as bandas do Amapari, vagavam silenciosamente pela floresta úmida, no rastro de antas, veados, jacamins, mutuns. 

Gostava tanto quando papai saía com ele, levava-o para caçar, apanhar bacaba... comiam murumuru, cozinhavam palmito de açaí, colhiam, pegavam o que quisessem. Gostava de dormir depois de, exausto, contemplar a chama da fogueira onde papai moqueava trairão: gostava de errar por roças antigas, apanhando pupunha, colher abacaxis esquecidos. Uma traquinagem que os unia. “É tudo roça dos índios, meu filho. Espia: veja as variedade de mandioca. Espia esse milho. Abandonaram...”.

Lembrava-se vivamente dos ensinamentos de seu pai quando, a bunda doendo depois de passarem horas sobre o mutá, esperando cutia vir comer tatajuba, ouvia-o perolar, baixinho, sobre como o caçador é um ladrão, mas um ladrão do bem, porque, rápido, ágil, sorrateiro como a onça, abatia a presa, roubava-lhe a vida, tirava-lhe da família, mas era para sustentar a sua. Papai ia deixar matar tucano com a 12.

“Papai virá? Será que vem”. Grossas gotas de suor acumulavam-se sobre seu iminente buço, enquanto deambulava, sorrateiro, por entre as pernas dos passageiros, preocupados em não perder seus pertences – fardos de farinha, bananas, cupuaçus, sacas de açaí, de bacaba, paneiros com galinhas...

Papai não veio. Em Serra do Navio, onde trabalhava como braçal para a Icomi, na mina, Francisco dera para beber, deixando sua mãe e seus onze irmãos à beira da estrada, próximo ao Cupixi onde antes pescavam juntos... Cupixi!

Partindo o trem, deixou-se abater pela decepção. Frustrado, caminhou pela estrada de ferro, na sua cola, sonhando ir até Serra buscar papai. Mamãe, desgrenhada, chorava dia e noite, enquanto os irmãos se viravam no parco roçado: seis tarefas de mandioca, roçado aberto na juquira. Não o levavam para apanhar açaí, nem para moquear peixe, longe... não queriam deixá-lo ir caçar. Moendo as costas, a alça de tucum do jamaxi carregado de macaxeira ainda feria-lhe a testa, dia após dia, mecanicamente. 

O calor do forno, o peso da lenha, a lide diária para descascar a mandioca, torrar a farinha... a dor na musculatura, ao manusear por horas a fio o remo sobre a chapa de ferro do forno, transtornavam sua mãe, que se tornara amarga.

--- Dona Rita: quêde o Francisco? A cada conhecido que parava no rancho, Rita, mãe de Alaor, tinha de inventar uma história. Ora estava em Santana, resolvendo a venda da produção, ora em Porto Grande, na doca seca da Icomi, ora na mina... “Ah vizinho, é muito trabalho!”, dizia, esperando que, com esse gancho, pudesse desviar o rumo da prosa.

Contemplou o rio, e banhou-se. “Seria bom um caniço! Mas tomém, nem num tem mais peixe”, resmungou. Sentou-se sobre uma pedra, debaixo da ponte, e entreteve-se com o rugido bovino da ajearatu. Macucauas piavam na mata próxima, enquanto grupos de tucanos, em algaravia, derrubavam caroços de açaí nos igapós vizinhos.

--- Alaor! Mamãe tá para te matar, mano! É para tu voltar para a casa de farinha agora! O irmão, irritado, inda gritou: “égua dum moleque remoso! Me faz vim até aqui e a mãe tá furiosa”.

--- Papai não veio, resmungou, como resposta.

Nunca mais voltaria. Dona Rita os criara sozinhos, até que, crescidos, foram se espalhando: os mais velhos, casando-se, botando roça nas imediações. Os mais novos, nutrindo o desejo de partir para Porto Grande, ou mesmo Macapá.

--- Arruma tuas boroca que a gente vai embora. A ordem, amarga, pegara-o de supetão, enquanto arrumava, em uma sacolinha plástica, os cartuchos calibre 12 que restavam. “Alaor, não me ouviu? Arruma tuas borocas que a gente vamos pegar o trem”.

A viagem, grande aventura, maravilhou-o. Estariam indo Para Serra? Encontrariam papai?

--- Para de ser enxerido, moleque! Teu pai morreu! Levou foi facada por causa de rabo de saia --- os vincos que ornavam a boca, as gretas, as rugas na pele morena, os cabelos desdenhados, emolduravam a dureza das palavras, ejaculadas com ódio, ressentimento.

                                                       ***
--- Égua, não, esse ônibus não vem? Toda vez é isso.

As meninas abrigavam-se como podiam sob o telheiro de amianto de um trailer de metal que servia lanches, “amburg”, na chapa. “Justo hoje, que a lanchonete fecha, chove desse jeito, o ônibus que não vem...”. A intensa chuva cerrava o negror da pesada noite, obscurecendo as vistas.

Os carros, desguiando dos inúmeros buracos no asfalto fino e irregular, que não chegava até onde convencionava-se que seriam as calçadas, que, sem guia, simplesmente não existiam, aspergiam-nas com a lama que se acumulava, impiedosa. Mais um vão deixado pelo Estado.

Um assobio despertou-a do torpor. Mensagem no whats. Pode ser mamãe, preocupada. Sacou o celular para conferir a mensagem...
--- Anda anda anda! Passa o celular! Já! Agora, se não te furo, filha da puta!

Apavorada, Darliene entregou a Patrício o celular, mas, por um átimo, Michele hesitou... “Naão, por favor! Eu não tenho o celular!”, gritou. Irritado, Patrício desmontou da Caloi Barra Forte, e sacudiu a moça, que gritava por socorro. “Tu vai dar o celular agora, ou morre!”, ameaçava, esforçando-se para não gritar. Mas Michele, desesperada, rogava a plenos pulmões por socorro. “Acode, acode! Pega ladrão!”. Temendo ser flagrado, Patrício esfaqueou-a no ventre, pegou a bicicleta, e pedalou o mais que pôde, sob forte chuva. Rápido, sorrateiro, ágil como uma onça.

Ganhando a ponte, enveredou para a parte dos fundos do Ambrósio, a fim de vender o celular na biqueira mais próxima.

_____
  • Nota do autor: a primeira história incorporada a esse conto é absolutamente verídica, e nos é apresentada pelo historiador Adalberto Paz, professor da Universidade Federal do Amapá, em seu livro “Os mineiros da floresta: modernização, sociabilidade e a formação do caboclo-operário no início da mineração industrial amazônica” (Belém: Editora Paka-Tatu, 2014). Paz realizou uma aprofundada e meticulosa pesquisa em inquéritos e arquivos nunca dantes vasculhados, e nos traz uma historiografia analítica, rica, precisa, apresentada por uma rica prosa. Alguns pequenos detalhes foram por mim modificados. As outras histórias trazidas por mim neste conto me foram contadas por seus próprios personagens, pessoas muito próximas de mim – algumas, inclusive, sendo vivenciadas e presenciadas, como a história de Edielson. Tive a infelicidade de vivenciar esse episódio em Santana, na Baixada do Ambrósio quando, em 2012, deixava o Estaleiro do Seu China. Não é preciso dizer que misturei as narrativas e episódios por mim vivenciados, e que, obviamente, alterei os nomes dos personagens.




domingo, 30 de junho de 2019

A golpes de machado: crônica do Golpe anunciado, vista da Floresta

Texto publicado originalmente em 05 de setembro de 2016 na coluna Filosofias Selvagens que eu possuía no Portal Heráclito.


A golpes de machado: crônica do Golpe anunciado, vista da Floresta

Crédito da fotografia: Bruno Walter Caporrino

--- Ele, o Lula, vem do povo, igual que nem nós. Nós vinhemos de Roraima para cá, é a mesma Perimetral. Alguns dizem que a Perimetral Norte surgiu em Roraima e outros dizem que começou aqui, no Amapá. E eu gostei da sua solução, Bruno: eu acho que começou foi nos dois lugares ao mesmo tempo. Lá, a gente torcemos muito: vai ter Constituição. Lutemo mesmo. Eu mais os minino viemos fugido, por causa que a gente mexia mesmo. Perguntava. Ajuntava todo mundo, queria saber com juiz por que saiu título de imóvel para um e não para os outros. Perseguiam nós. Intimidavam. Mas eu nunca que tinha sido humilhado assim, que nem agora, que nem aqui. Seu Pedro baixa os olhos, envergonhado. 

Desguia os olhos, como quem busca enxergar para dentro. A polpa de cupuaçu tá toda aí se estragando, retoma o fio do discurso. Faz é duas semanas que a gente tamos sem luz por aqui. Tá se estragando, veja se leva para ti – prossegue, contendo as lágrimas.

Seu Pedro acabara de receber ordem de prisão de um auxiliar do juiz, contratado sem concurso público mediante inúmeros manejos eleitorais. O motivo? Os meninos da vila do assentamento jogam bola na lama que fica em frente à casa alugada por esse servidor. Numa demonstração de poder, o despreparado representante do Estado, na verdade um cabo eleitoral, furou a bola dos meninos. 

Quando foi perguntar o motivo, Seu Pedro ouviu que ele furou a bola... porque podia. E teje preso! Humilhado, Seu Pedro voltou à sua casa, e Maria lhe comunicara: por conta da falta de luz, dois freezers repletos de polpa estavam sendo desocupados. A polpa de cupuaçu se estragara.

Pergunto a Seu Pedro o que vai fazer com o resto da polpa que não conseguir vender. Certamente mais de 400 kg. Faz anos que tenho lutado para fortalecer politicamente os agricultores familiares da Perimetral Norte e converter esse lanho aberto na Floresta Amazônica com o intuito de estripar-lhe as riquezas em um veio de desenvolvimento socioambiental integrado, participativo, de base comunitária. Faz anos que estamos lutando para fortalecer as cadeias produtivas dos produtos da agricultura familiar local. Agregar a tão ticos produtos o valor pecuniário que lhes é devido. Faz anos que em Macapá o povo toma refrigerante Mikos, e que a polpa densa e pura do mais nativo e orgânico cupuaçu de Seu Pedro e dos agricultores da Perimetral se estraga.

Mikos sabor Guaraná. Calabresa. Mortadela. Charque. Sal e açúcar. Um verdadeiro “efeito mortadela” se espraia pela Amazônia. Esse conceito foi criado pela bioantropóloga estadunidense Barbara Piperata, que conduziu pesquisas sobre consumo/gasto energético e calórico em comunidades como os ribeirinhos que habitam a Floresta Nacional de Caxiuanã, na região de minha bela Breves, Pará. Piperata pesquisou, basicamente, os hábitos cotidianos dos ribeirinhos: quanto tempo e energia empenham coletando e amassando açaí? E quanta energia adquirem ao consumir esse açaí? O mesmo para pescado, camarão, produtos da roça. É muito interessante lembrar que esse estudo de Piperata comprova, quase 50 anos depois, a tese de Marshall Sahlins, inscrita em seu magistral A primeira sociedade da afluência.

Sahlins aceita “jogar o jogo” do sistema de valores capitalista: se fossemos aceitar o desafio, e calcular o quanto de energia um povo indígena, ou seja, um “povo primitivo” gasta para conseguir energia e sobreviver, e o quanto de energia um homem ocidental urbano, “desenvolvido” gasta para conseguir a mesma quantidade de energia, pressupondo que esse coeficiente seria suficiente para estabelecer uma hierarquia quanto à técnica, quem ganharia?

Sahlins aceita o desafio e prova: modos indígenas de produção, reputados como arcaicos, primitivos, rudimentares, e, portanto, ineficientes... permitem comprovadamente que um homem precise apenas de menos de três horas de trabalho por dia para viver, e muito bem. Trabalhamos 10 horas por dia, em média, mas não por nós, não para nós. Fazemos casas para os outros. Carros para os outros. Obesos, desnutridos, vivemos uma epidemia de câncer. Enriquecemos latifundiários, exportamos água, junto com o filé mignon, e defendemos os que, colocando-se contra o SUS, fazem com que nos prostituamos para conseguir jantar câncer.

Todas as vezes que passo temporadas com meu mestre e amigo Seu Pedro, lembro dessas duas pesquisas. Piperata estudou os ribeirinhos de Caxiaunã bem no momento em que, sendo atendidos pelo Programa Bolsa Família, eles passaram a ter mais acesso a dinheiro, cartão de banco, fomento. Contudo, a pesquisa de Piperata é rica por desvendar justamente o interstício sobre o qual venho dedicando minha vida a refletir e descrever. Recebendo o benefício, os ribeirinhos passam a se empenhar cada vez mais em ir à Breves para recebê-lo. Longas viagens de barco são necessárias para chegar à sede do município, onde é necessário gastar dinheiro para comer. Estando longe de casa, não se pesca. Não se caça. Não se broca roça. As famílias passam a ficar semanas na praça da cidade, ou em hotéis, para conseguir receber os benefício. Ao recebê-lo, pagam as dívidas que contraíram em sua estadia na cidade – combustível, alimentação, hospedagem.

Fazem um rancho, e voltam à comunidade. A pesquisa de Piperata mostra que as famílias beneficiadas passaram a consumir cada vez mais alimentos em conserva – mortadela, especialmente. Trocando o peixe nativo, fresco, obtido de maneira sustentável pelas suas próprias mãos, por mortadela industrializada; trocando o açaí por refrigerante e sucos industrializados, a ingestão de nutrientes caiu vertiginosamente. E o gasto de energia para obter tais alimentos, tão pobres em nutrientes, subiu também vertiginosamente. Décadas depois, é triste ver, não que Sahlins está certo: mas que o raciocínio que ele derruba, aniquila, com sua pesquisa, ainda prevalece. E se impõe.

Agricultor familiar, Seu Pedro é assentado. Cultiva cupuaçu, de maneira praticamente agroflorestal, sem apoio técnico, mas com base em vastos, eficazes, e sólidos conhecimentos tradicionais. Produz a mais densa e pura polpa de cupuaçu que já provei em minha vida. Gosta de falar de política. É um militante do desenvolvimento socioambiental integrado e participativo. Milita pelas áreas protegidas, pelo Parque Nacional, pela Terra Indígena, de que é vizinho. Aliado de rocha, dos índios, dos castanheiros. Formador da Escola da Família Agrícola. Conselheiro.

Seu neto, aluno da Escola da Família Agrícola, amola o terçado e olha distraído o enxame de carapanãs que se forma sobre a cabeça de Tereza. “Deu na TV, eu tava em Pedra Branca: o Lula foi de algemado dar depoimento. Dizque roubou dinheiro da Petrobrás e comprou apartamento. Eu vi isso na TV, eu”.

--- Ele é igual que nem nós: por isso os poderosos se irritam com ele. É analfabeto. Eu sou analfabeto. Eu acreditei nele. A gente sonhava ter um presidente nosso. Já pensou? Presidente, vindo do povo? Nunca falo de política cá Maria, mas nós sabemo o que lutemo por esse homem – por nós. Batalhemos por ele. Fiz campanha aqui. Era a esperança da gente. Depois que tomou o poder, parece que mudou. Virou outra pessoa.

Pergunto o que teria mudado. “Para conseguir caçar queixada, a gente temos que chamar os parentes: vai cunhado, vai irmão, vai sobrinho. Não é assim? Pros índios também. Pra botar umas tarefas de macaxeira na juquira, tem que chamar parente, amigo, cunhado. E depois? Depois você divide a caça. Torra a farinha, e distribuir as sacas. Assim que todo mundo faz. Lula tomou o poder botando tarefa em juquira dos outros, com terçado dos outros. Dilma foi e vendeu a produção. Não dividiu com ninguém. Foi pior ainda: dividiu foi a produção com quem nem foi plantar, porque esses apoiaram ela, que eu sei. Sem o dinheiro deles, ela não se elegia”.

Por qual motivo teria ela feito isso? Todos se perguntam. Sei respostas, mas meus conhecimentos em ciência política são apenas categorias a priori do entendimento. Vasos vazios, cuja vida, em seu fluir, é que deve preencher. E quanto à vida, o mestre é Seu Pedro.

Deixo a casa de Seu Pedro rumo à Terra Indígena. Lá, organizados, os Wajãpi fazem história. Influenciando ativamente a construção e execução de políticas públicas, norteando-as, ensinam o Estado como ele deve ser segundo seus próprios termos. O movimento indígena chora. Sangra. Paralelamente à divulgação dos resultados da Comissão Nacional da Verdade, especialmente os que se referem ao etnocídio praticado contra povos indígenas durante o período da ditadura militar, que comprovam se tratar de um genocídio de Estado, regiões como Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, chacinas são cometidas contra povos inteiros, sendo hoje incontáveis as mortes de indígenas com amparo, aval, e incentivo do Estado: criança indígena é esfaqueada no colo de sua mãe, que, expulsa de sua terra, mendigava na rodoviária, lideranças são perseguidas e baleadas na calada da noite, agrotóxico é aspergido sobre acampamentos às margens das terras que sempre foram dos Guarani... tudo filmado. E nunca divulgado.

Um verdadeiro etnocídio se delineia no Brasil. Projetos da Ditadura Militar para a Amazônia, que nem o mais neoliberal governo FHC ousou retomar, são retirados da gaveta e colocados em prática de maneira brutal. Belo Monte rega com sangue indígena os canteiros de obras onde o índice de homicídios aumentou mais de 500%. Estupro. Latrocínio. Os povos indígenas do Xingu, os ribeirinhos, os agricultores familiares sangram, são assassinados, ameaçados à base de bala, expulsos de suas terras: veem suas casas e roçados serem incendiados. Veem suas lideranças perseguidas, coagidas. São assassinados.

Veias abertas da América Latina: lanhos percorrem a Amazônia. Um estupro, uma pilhagem, sistemática, passa a ser... política pública. Política de Estado. Propostas de Emenda à Constituição, como a PEC 215, agridem dura e direta, dolosa e brutalmente os direitos indígenas mais fundamentais: sem consulta prévia, livre, e informada, assegurada pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (pode-se ler mais sobre isso aqui: http://www.portalheraclito.com.br/index.php/materias/filosofias-selvagens/502/pactuando-um-contrato-social-o-direito-a-autodeterminacao-indigena-e-a-convencao-169-da-oit.html ), Belo Monte, São Luis do Tapajós, mega-hidrelétricas são construídas, pelo Estado, com dinheiro público, à revelia dos povos que essas obras dizimarão. Sob pressão das empreiteiras e bancos que financiam mídia e campanhas.

Etnocídio. Golpes, golpes, e mais golpes. A floresta capitula. Golpes de machado cerceiam nossa humanidade. A sociobiodiversidade é o que nos faz humanos, e não a negação da “natureza”. Quando o pensamento ocidental aprenderá isso? O Brasil era a chance concreta de reverter isso. A vida inteira que poderia ter sido... e não foi.

 Ao contrário do que postula o conhecimento ocidental moderno (pode-se conhecer mais em http://www.portalheraclito.com.br/index.php/materias/filosofias-selvagens/500/abismos-simbolicos-natureza-cultura-como-as-urbanidades-amazonidas-revelam-as-vidas-que-poderiam-continuar-sendo-e-nao-tem-podido.html), fazer-se humano, criar cultura, não consiste em negar a natureza, superando-a, estuprando-a.

Mas não é assim que o Estado é pensado desde seu surgimento. Vimos que o capitalismo se calca justamente no estupro: estuprar, abrir as entranhas da terra, rasgar lanhos nas florestas, e estripar riqueza (mais em: http://www.portalheraclito.com.br/index.php/materias/filosofias-selvagens/575/voce-esta-implicado-e-nao-vai-bamburrar.html).

 O governo do PT subiu ao poder assinando um pacto: propondo-se a “jogar o jogo”, aceitou fazer as coligações que o famigerado presidencialismo de coalizão comina. Num sistema democrático tão novo e inexperiente como o nosso, num país marcado por séculos do mais cruel caciquismo, do mais brutal coronelismo, e do mais pungente paternalismo, eleitores votam por carisma: votam em candidatos, e não em plataformas políticas.

Desde a Constituinte de 1988, cujos esforços em evitar que novo Golpe se consolidasse são, por assim dizer, a gênese do Estado de direito brasileiro contemporâneo que hoje, 01 de setembro de 2016, sofre duro golpe, temos um sistema pluripartidário, cujo objetivo é evitar que apenas uma visão, apenas uma postura, apenas um segmento de tão diversa sociedade fosse representado. Ao assegurar o pluripartidarismo, a Carta Magna visa garantir que os diversos segmentos da sociedade brasileira encontrem representatividade, ao garantir a diversidade de opiniões políticas facultadas por meio da sacrossanta representatividade que é o pilar da democracia. Mas não se muda 500 anos de história em 28 anos.

Outro pilar da democracia é a cidadania. Teoricamente, um Estado democrático de direito deve realizar-se mediante a participação organizada, consciente, e pró-ativa da sociedade civil. É comum ouvirmos, no Brasil, que “a lei é falha, cheia de brechas”. Que o Estado seria omisso em algumas questões. Isso só vem a comprovar a tese: não temos cultura política cidadã no Brasil. A cultura política no Brasil é a da curra, do pelourinho, do chicote, do estupro e da pilhagem. A sociedade civil brasileira é, até hoje, vítima tão inconteste de agressões a seus direitos e garantias fundamentais, desde sempre, que pressupor que a democracia brasileira se realiza ao colocar-se 180 milhões de ex-escravos para apertar um botão é uma ofensa a qualquer inteligência.

Os resultados disso são desastrosos. Promulgar uma Constituição não foi suficiente para mudarmos o modelo de país – pois o Brasil nunca foi senão um proto-país, uma despensa. Promulgar uma Constituição não modificou nossa estrutura de classes. Racista, conservador, o Brasil patriarcal é uma grande senzala, teleguiada via imprensa da Casa Grande e Branca, cada vez mais pequena. O PIB brasileiro cresceu de maneira constante e progressiva durante a primeira década dos anos 2000. Mas o índice de Gini, que mede a (não)distribuição de renda, manteve-se praticamente o mesmo. O que isso significa? Significa que o PIB cresceu grande e progressivamente, mas a riqueza não foi distribuída. Significa que as mesmas, e poucas, pessoas, lucraram cada vez mais.

Significa que, para que essas mesmas poucas pessoas lucrem cada vez mais, concentrando cada vez mais a riqueza gerada, cada vez mais os “recursos naturais” foram explorados. E com uma brutalidade cada vez maior.

Continuou-se a pilhar, saquear, estuprar. Índios, quilombolas, ribeirinhos, o agricultor que efetivamente põe comida na mesa do brasileiro, são chacinados. Pelo Estado. A mando do agronegócio. O Brasil colônia, que surgiu há 500 anos como uma despensa a ser pilhada sistematicamente, não se libertou nem de sua história, nem de sua estrutura de classes.

Feudal, o Brasil passou a ser controlado por uma miríade de partidos nanicos que, gravitando em redor de partidos maiores – como o PT – fragmentam o eleitorado e, assim, exercem poder sobre toda e qualquer plataforma que se venha a consolidar.

Coligada aos partidos mais conservadores do país, aliada às bancadas ruralista, evangélica, e beligerante, ou seja, aliada ao Congresso BBB, Dilma Rousseff celebra a exacerbação desse pacto. Elege-se para seu primeiro mandato com apoio de PR, DEM,PP, PROS, PAN... e, sobretudo, o plástico, maquiavelicamente plástico e fagocitante PMDB. O PT deveras aceitou jogar o jogo: Duda Mendonça, em 2002, já o dizia. Se visava valer-se da lógica do sistema para subverter a ordem uma vez no poder, o PT falhou horrivelmente.

Dilma Rousseff era ministra de minas e energia no Governo Lula. Foi Dilma que, ainda em 2004, bateu na mesa, enfaticamente, bradando que “Belo Monte vai sair, custe o que custar”. E custou sangue. Mortes. A biodiversidade alagada. Muitos mundos por água abaixo. Para que Belo Monte (monumento do governo Dilma, sob o prisma de quem o observa da Amazônia) fosse construída, muitos mundos foram destruídos. O Planeta, por tabela.

Ao se propor a “jogar o jogo”, o PT aceitou coligar-se a todos os partidos que pudessem dividir o eleitorado: antes tê-los próximos do que vê-los minar o eleitorado. Tal manobra falhou miseravelmente porque tais partidos digladiaram-se pelo poder de maneira tão brutal que qualquer chance de promover governabilidade foi posta sob ameaça direta. O resultado concreto? Marco Feliciano, que, diga-se em alto e bom som, só assumiu a pasta depois de Jair Bolsonaro, o primeiro indicado, ter sido cortado da lista. Qual pasta? Pastor Marco Feliciano, do PSC (aliado do PT) assumiu nada mais nada menos que a Comissão de Direitos Humanos da Câmara.

Ao aceitar “jogar o jogo”, o governo Dilma Rousseff aceitou ter suas campanhas eleitorais financiadas por Odebrecht, OAS, Camargo Correa: empreiteiras. Itaú Unibanco, Bradesco. Para se eleger, Dilma Rousseff, o PT, aceitaram vender o mundo – em troca de subir ao poder. Será que o plano era apenas ceder para subir ao poder e, lá, impetrar um outro modelo de país? Entre a intenção e a prática, houve morticínios.

Em troca de assumir o poder e consolidar um outro projeto de país, programas sociais de transferência de renda, cujo objetivo sempre foi transformar o caboclo, o ribeirinho, o quilombola, o indígena, o agricultor familiar, em mais um refugiado do campo, converter as almas dos silvícolas em consumidores. A concentração fundiária caminhou pari passu com o crescimento do PIB, e a manutenção do alarmante índice de Gini brasileiro, durante o governo PT.

Expulsas do campo, as populações tradicionais foram conduzidas à periferia da periferia da periferia da periferia da periferia do mais selvagem capitalismo terceiromundista. Abandonando sua soberania econômica, simbólica, cultural, política, linguística, material no campo, na floresta, onde latifúndios, verdadeiras capitanias hereditárias regam o solo com agrotóxicos proibidos em mais de 90% dos países do mundo, e sangue humano, as populações do campo e das florestas viram o preço da castanha despencar, e as condições para explorar esse recurso sustentável sumirem. O mesmo se dando com peixe, caça, produtos da roça, comida, vida, cultura.

Dilma Rousseff e o PT são reputados pela mídia golpista como um governo de esquerda. Comunistas. É esse o gran finale trágico desse momento dramático de nossa história. Financiado pelas grandes empreiteiras, o governo PT vendeu a elas o poder popular. Uma vez eleito, foi obrigado a fatiá-lo. Uma vez eleito foi obrigado a fazer Belo Monte, para citar apenas um crasso exemplo. As mesmas empreiteiras que financiaram a campanha de Dilma Rousseff e antes, de Lula, são as que fabricam delírios da ditadura militar que Dilma tira da gaveta. Delírios do regime que ela mesma combateu. Essa a pior, a mais dura, ironia.

A des-governança latente no governo Dilma, inerente às alianças que teve que fazer para subir ao poder, demonstra, desnuda, as fraturas do Brasil. Saque, pilhagem, estupro. A lava Jato não é senão uma grande manobra para destituir do poder uma chapa que se deixou corromper pelas empreiteiras. Lava Jato não pode ser pronunciada sem Odebrecht, OAS, Camargo Correia, Bayer, Monsanto, Syngenta. O mesmo se dando com PMDB, PSDB. São termos que não podem ser pronunciados isoladamente. Lava Jato = Odebrecht. Odebrecht = PSDB. PSDB = PT. Novamente, como há 516 anos atrás, o Brasil é uma despensa a ser explorada, devassada, por poucos coronéis. Novamente, como há 50 anos, um presidente civil assume o lugar como fantoche.

O consórcio com o PMDB, e a manobra, o GOLPE realizado pelo octopus, foi o golpe final. Nas humanidades de que se compõe essa trágica sociedade.

A pergunta que me faço, desde 2013 é: como um governo onde o agronegócio, os bancos, e as empreiteiras mais lucraram na história desagrada aos donos do poder? Não estaria sendo suficiente a política etnocida do Estado Brasileiro por ele levado a cabo? O que querem os verdadeiros donos do poder ao impetrar o Golpe Final? Se estava ruim com Dilma, humanos, sequer conseguiremos imaginar como estará com Temer.

Todas as riquezas do Brasil serão definitivamente entregues aos grandes investidores, empreiteiras, bancos. O solo será regado com sangue e agrotóxico. De novo, Geni, de novo, és estuprada, serves, enriqueces, dás prazer, e és humilhada, estuprada, devassada.

Esse golpe, especificamente, começou em 2002, quando Lula fez as coligações que fez. Mas a surra, o Golpe, esse começou há 500 anos. E nunca parou. Ouçam! Golpes de cassetete se fazem ouvir novamente, nos poucos, pouquíssimos que percebem o que está acontecendo – enquanto, infelizmente, grande parte da sociedade brasileira aplaude a corja que se apropria anti-democraticamente do poder. A mesma que serve aos mesmos financiadores da presidente derrubada.

Ouçam! Os golpes de machado prosseguem. A cada Angelim, a cada jatobá, a caba imburana que cai, é nossa dignidade que recebe os golpes. Guarde suas moedas. Em troca do pirarucu, tambaqui, inajá, açaí, pupunha, da riqueza que nunca provastes, reze para, no fim do mês, comprar mortadela suficiente para alguns dias. Afinal, pupunha não dá lucro a bancos. Madeira e soja sim.

Bruno Walter Caporrino
Setembro de 2016