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sábado, 27 de outubro de 2018

Você está implicado – e não vai bamburrar


Você está implicado – e não vai bamburrar
                                                                                                                      Bruno Walter Caporrino



Crédito das fotografias: Bruno Walter Caporrino

Ato I – caem as máscaras
Um embate – silencioso aos ouvidos dos que se extinguem nos congestionamentos labirínticos das grandes metrópoles – realiza-se agora, nesse exato momento – e há muito –  nas florestas da Amazônia, nos cerrados amapaenses e paraenses (porque o mato-grossense já capitulou, juntamente com nossa dignidade humana). Ele às liga à Avenida Paulista e às bolsas de valores e mercadorias do mundo inteiro. Não, desligue seu Netflix: não se trata de um embate entre forças “do mal” e forças “do bem”, a ser resolvido por alguma solução narrativa mágica – como cuecas por sobre calças coladas voando sobre arranha-céus e “combatendo o mal”.
Trata-se de um embate de paradigmas. Modos de pensar o mundo e, portanto, de posicionar-se nele e diante dele. E isso implica você.
Fumaça empesteia o ar, a floresta arde para ceder à soja transgênica, cultivada por latifundiários de terno e gravata que detém verdadeiros feudos cujos hectares sequer é possível contabilizar. Comprar a garrafinha d’água produzida com menos PET pode até deixar sua consciência tranquila, mas, como usar cuecas por sobre as calças, tal “solução mágica” não resolverá os problemas dos quais as pessoas desviam os olhos, no jantar, quando (raramente) são distorcidamente narrados no telejornal.
Um verdadeiro inferno pós-neocolonial se espraia pelos outrora verdes prados do gigante pela própria natureza que, consumindo-a, devorando-a, entrega-a aos “gringos”, à expensas de seu próprio povo, e em nome da soberania nacional. Integrar os índios – esses vagabundos que usam Iphone, e nem são mais índios – é a única solução para não entregar a nossa riqueza. É uma questão se soberania nacional! Bandeiras hasteadas, PECs como a 215, flexibilização da legislação ambiental – o fim do licenciamento ambiental – e a permissão para a venda de terras – latifúndios – a estrangeiros, são os pratos do dia na cozinha do gigante.  Não, ele não acordou. Letárgico, digere suas florestas e suas gentes, e regurgita pobreza, falta de saneamento, prostituição, criminalidade. Tatua uma verdadeira geografia da fome na pele de sua barriga. Ostenta sobre o peito arqueado os dizeres ordem, e progresso. In english, please.
Muita terra para pouquíssimos caciques. E você os apoia. Crê, com isso, que deles receberá algumas migalhas, e que, aos seus 67 anos de idade, (oxalá! Tomara! Se deus quiser!) conseguirá financiar um apartamento de 50 metros quadrados, enquanto esses índios preguiçosos e vagabundos, e esses sem-terra marginais, atentam contra o ícone mais sagrado de seu delírio pós-moderno: a propriedade, isso mesmo, aquela que você defende, e não tem. Parabéns!
Ato II – a batalha
Uma árvore tomba. Um homem é torturado, da pior maneira: a simbólica. Seu mundo rui, lhe é roubado. Sua razão para viver exaure-se. Seus valores são demolidos. Um povo inteiro é dizimado – veneno é aspergido sobre suas barracas de lona à beira de alguma estrada, construída pelo Estado, com dinheiro público, e espremida entre latifúndios doados pelo Estado a indivíduos cujo poder é endossado pela mídia, pelo povo de verde e amarelo que toma as ruas, ao passo em que o alarido dos pássaros, insetos, batráquios, é substituído pela zoada de um exército de motosserras e tratores industriais, manipulados por famélicos soldados sem soldo, curtidos na miséria como peões, reles e descartáveis peões, que prontamente serão presos, torturados, caçados, tão logo acabe a empreita.
Mas você nada tem a ver com isso, certo? Será? Rico e único patrimônio genético, que demorou bilhões de anos para se constituir, desenvolver-se, esvai-se, some, e nada disso tem a ver com você, sapiens, sapiens... morando na cidade, consumindo menos energia no banho: você nada tem que ver com esse discurso eco-chato de hippies amalucados.
Enquanto considerável parcela da população milita pelo enrijecimento das leis, para salvaguardar o mais sagrado direito (o Deus Propriedade), vende sua força de trabalho por migalhas. E acredita que, por seu próprio mérito, trabalhará honestamente (diferentemente desses índios vagabundos!) e conseguirá comprar a mansão e o carro que os seus heróis ostentam. Mal sabes tu, ó sacerdote comum da meritocracia, o quão risível é teu devaneio!
Mal sabes tu, arauto do trabalho, do mérito, pequeno-burguês cego, o quanto teus heróis se beneficiaram do Estado e do bem público espoliado indevidamente, sem gastar uma gota sequer de seu suor, para enriquecerem, predando, justamente, a propriedade alheia, e, sobretudo, o bem público. Mal sabes tu o quanto a riqueza de seus heróis foi obtida pelo avesso da meritocracia, da democracia, do empreendedorismo. O quanto ela é roubada de ti mesmo. E o quanto seu modo de pensar endossa, legitima, justifica isso.
Ato III – estupro e pilhagem
Correntes. Antes grilhões, marcando o pulso de contingentes de homens e mulheres negros, que geraram riqueza para uma minúscula elite branca  à custa de seu empobrecimento, à custa da extração indiscriminada dos recursos naturais. Correntes, atadas entre dois tratores, devastam florestas inteiras, tabula rasa, corte raso, hectares e mais hectares, todos os dias. Correntes: ciclos de exploração comercial se estendem sobre o tapete verde das florestas brasileiras, calando o cantar dos pássaros e o urrar de seus moradores, desde que, Colônia, o Brasil se constituiu.
Brasil. Nome de madeira. Brasileiro: uma profissão, precarizada, escrava – madeireiros. Padeiro: aquele que faz pão. Brasileiro: aquele que extrai pau-brasil. No DNA do Estado brasileiro, o sangue de sua gente burbulha, negro, venoso. No DNA do Estado e da sociedade brasileira, o estupro, a rapinagem, a pilhagem, a escravização – o DNA do Brasil é predar. Todo brasileiro tem sangue indígena e negro. Ou em suas mãos, ou em suas veias. E isso determinará o local que ocupa na estrutura de classes. Isso determinará o grau de sua riqueza pecuniária.
Correntes atam as mentes do “cidadão comum”. Esse, que acredita ser sustentável e consciente, por separar o lixo reciclável do não reciclável, durante manifestações financiadas pela FIESP em prol do fim das unidades de conservação da natureza, em prol da extinção do licenciamento ambiental, em prol da mineração para o progresso, em prol da redução da carga tributária para os produtos da mineração e do agronegócio exportados sem deixar um centavo de ICMS nos locais onde sua produção devasta recursos que são públicos.
E cuja exploração gera lucros particulares. E cujas consequências são públicas. Esse, que acredita que usando a ciclovia uma vez por semana, salvará espécies em extinção. Você. Seu vizinho. Esses, que militam pelo fim das demarcações de terras indígenas, a bem do progresso. Vocês estão implicados nessa batalha cosmológica cujos resultados práticos afetarão a todos, e farão com que todos sejam perdedores.
O embate prossegue, sobre campos devastados, calcinados. Ribeirinhos são tirados de suas terras à força. Povos indígenas, acossados, são caçados, veem sua caça sumir, veem seus rios serem represados, envenenados com mercúrio e agrotóxico, veem os lugares sagrados para sua história e cosmologia serem profanados por máquinas que escavam a terra e a estripam, a estupram.  Veem o Estado agir para expulsá-los de suas terras, torná-los mão-de-obra barata, dependente de dinheiro, anulando seus mais sagrados direitos, como a autodeterminação, por meio mesmo de políticas públicas. A biodiversidade, salvaguardada por esses povos, graças à sua cosmologia, à seus paradigmas de relações, e essencial para a vida no planeta, e para a continuidade do próprio capitalismo, é agredida, ameaçada. Pelo próprio Estado, muitas vezes.

Ato IV – plantando miséria para colher madeira
Assentados de reforma agrária são instalados pelas mãos do Estado, do Incra, em áreas precárias, distantes dos centros urbanos, e coincidentemente no meio da floresta, exatamente em cima dos recursos minerais e madeireiros.
Incentivados a cultivar solos diferentes daqueles que conhecem, a usar técnicas diversas das que tradicionalmente dominam, a plantar produtos cujas cadeias produtivas não são consolidadas,  produtos que não serão vendidos a preço justo, amargam fome. Planta-se miséria para colher-se pobreza. Planta-se assentado na Amazônia para colher terra nua, calcinada, madeira ilegal. Planta-se miseráveis para amargar malária e vender Angelim a R$50,00 o metro cúbico, sem licenciamento, sem regulamentação. Madeira exportada. É necessário vendê-la para criar condições para o progresso e o desenvolvimento. Em nome da soberania nacional, é necessário tirar o povo da terra que ocupa, e da qual seus regimes de conhecimento e relações tanto zelam.
O Estado brasileiro se reitera, em ciclos predatórios. Correntes. Círculos se espraiam, reverberando a lógica predatória do assassínio e do estupro, que gera acumulação de renda e latifúndio. Uma projeção geográfica dos ciclos exploratórios/colonizadores que assolam a história dessas terras e gentes mostra como a progressão é física, a partir do sudeste e do nordeste. Uma mancha de deserto e queimadas caminha pari passu com a concentração fundiária. “Progresso” significa, unicamente, devastação, seca, desertificação.
Hoje. Agora. Aqui, no meu Amapá. Aqui, na Perimetral Norte, onde moro e trabalho: assentados de reforma agrária abandonados, sem infra-estrutura, não conseguem escoar sua módica produção orgânica e, desesperados, cedem às pressões dos próprios agentes do Estado para vender madeira. A agricultura familiar, sustentável e orgânica, à expensas de todos os desafios que enfrenta, alimenta a população brasileira, enquanto o agronegócio, dominado pelos caciques, tão fortalecidos no Congresso Nacional, instaura impérios latifundiários cuja devastação é o lema; o uso de sementes e insumos estrangeiros, híbridos, é o tom; e cujos lucros concentrados são enviados ao exterior. Devastar tudo para gerar riqueza? Não! Produzir miséria, em escala industrial, devastação, esgotamento dos recursos naturais, para encher dois ou três bolsos, de dois ou três caciques.
Como em 1500, o Brasil está estruturado sobre um pilar: pilhar. Devastar, explorar mão-de-obra escrava para devastar e gerar riqueza, riqueza essa a ser expatriada. Divisas evadidas. Dívidas contraídas, em nome da sociedade pilhada. Eis o progresso. O enredo do Brasil é um estupro. Calca-se sobre a exploração predatória dos recursos naturais, a fim do enriquecimento de uma minúscula elite, que, por sua vez, envia os recursos dessa exploração ao exterior. Em nome da soberania nacional. Em nome, e pelas mãos, do Estado.
O Estado brasileiro surge do látego, do chicote. A sociedade brasileira surge do estupro, da curra. O judiciário é o pelourinho. O juiz, o proprietário. A polícia, o capitão do mato. O criminoso? A vítima. Índios, escravos. Florestas. Sociobiodiversidade. Toda sociobiodiversidade é crime, no Brasil: eis a pedra-fundamental, a única cláusula pétrea de que o país se constitui: o que não for propriedade privada, será crime. Gentes, terras, bichos.

Ato V – bamburro!
Meu projeto é pensar o Amapá a partir da aldeia. O Brasil, a partir do Amapá. O mundo, a partir do Brasil. Círculos, cujo epicentro é o local em toda sua universalidade. Por isso, perdoem, mas falo da minha terra. Falo dela: a partir dela. Nela.
Em plena Amazônia, no estado do Amapá, ainda território federal, instalou-se, ainda durante a década de 1950, uma grande mineradora trans-nacional, chamada Icomi. Consolidando em seu derredor uma company town, a cidade (agora tombada como patrimônio histórico) de Serra do Navio, a mineradora foi anunciada aos amapaenses, ao povo brasileiro, como a grande “salvadora da pátria”. Considerada a responsável pela vinda do progresso, do desenvolvimento, e, portanto, da civilização, para as bandas “selvagens e incultas” do Amapá, a mineração seria responsável por fazer um X no estado brasileiro, em cima do Amapá, colocando-o no mapa, e transformando-o em Brasil. Faria isso convertendo floresta – mato, malária, doença, sujeira – em progresso: lucro, desenvolvimento, civilização.
O Amapá garimpeiro, historicamente consolidado a partir das frentes de exploração garimpeira e gateira, acostumadas e enquadrar os povos indígenas como “selvagens” e, portanto, ícones da involução, do atraso, da primitividade, da falta de humanidade e civilização, recebeu com efusividade a notícia. Em plena década de 1950, o território do Amapá esperava bamburrar!
Bamburrar! Achar o veio! Dar com a picareta, com a bateia, exatamente no curso aurífero. Encontrar e extirpar das entranhas virgens da terra a riqueza, o metal a ser trocado por grande soma de dinheiro a gastar com cachaça e prostitutas. Bamburrar é ganhar. Mas é também gastar. O garimpeiro sonha sua vida inteira, de sol a sol, de chuva em chuva, de malária em malária, em “dar com o veio”, achar o ouro em abundância. Assim que bamburra, dedica-se com êxtase a consumir o produto do bamburro; bamburrar é um ciclo, e não uma via de mão única, como se acredita. Acredita-se que bamburrar é a via pela qual se sai do garimpo. Bamburrar é enriquecer rapidamente. Enriquecer rapidamente significa gastar tudo rapidamente, exercendo poder, prestígio, na sociedade do garimpo. Auri sacra famis! A febre do ouro, que se inscreve na gênese do capitalismo, tem no bamburro seu mito fundador: ganhar, e gastar – fazer circular e, assim, permitir a uma elite acumular.
No garimpo, o jogo é mais aberto. Mais público. Ganhar e gastar são faces da mesma... moeda. Acumulação primitiva de capital. Sangue, sêmem, lama. Primitiva.
O garimpo, assim, não é uma metáfora, uma caricatura, do capitalismo. Ele é o capitalismo em sua primitividade. Ele é a gênese do capitalismo: o capitalismo se instaura mediante a exploração dos “recursos naturais”. Calcado na extração dos “recursos” naturais por força de mão-de-obra precarizada e explorada, o garimpo consagra o modo de produção capitalista e fundamenta seu sistema de valores: o recurso natural – natureza -  é civilizado – convertido em cultura – mediante sua conversão em valor. Nesse estágio do capitalismo, bamburrar é visto como uma via para sair do garimpo. Mas é, na verdade, um círculo vicioso. A primeira lei do garimpo é: o que vem do garimpo, volta para o garimpo. O que vem do garimpo fica no/com o garimpo.
Bamburrar significa, portanto, enriquecer do nada, achar ouro, e, imediatamente, comemorar isso, gastando tudo, tudo, tudinho, em uma única e mesma noite, se possível. O dinheiro do garimpo volta ao garimpo. As prostitutas “são” do dono do garimpo. A cachaça também. As roupas e a quina, usada para combater a fatal malária, são vendidas... na baiuca do dono do garimpo. O dinheiro do garimpo fica no, e com, o garimpo. Bamburrar é ganhar muito dinheiro, e gastar muito dinheiro, a fim de gerar riqueza – acumulação primitiva – ao dono do garimpo. Que, por sua vez, não mora no garimpo. Estando fora, ele o domina, sem se sujar de lama. Enriquece com as mortes à facadas, enriquece com a prostituição.
Enriquece com o estupro, com a extirpação, com a estripação da terra: abrindo suas entranhas com suas ferramentas fálicas, os homens sucumbem, malária após malária, para enriquecer o patrão. O garimpo é a gênese do capitalismo. Um feto abortado. O capitalismo à brasileira consiste em uma voraz acumulação primitiva de capital. Geni Geni Geni! O Zepelim sobrevoa a floresta: é hora de abrir-lhe as entranhas para extrair delas a riqueza para o homem do terno branco, alheio, exótico, estrangeiro. Em nome da soberania nacional.
Bamburrar é a mola propulsora do capitalismo. E o Amapá, por exemplo, ansiava-se, entraria no capitalismo, com a chegada da Icomi. Bamburrando, claro. As ricas jazidas de ouro, tantalita, manganês e ferro foram exploradas em Serra do Navio, inicialmente pela Icomi. Os executivos do setor conseguiram mudar muito a legislação ao longo dos anos – manipulando o Estado que, teoricamente, representa os interesses do povo, do coletivo, da sociedade como um todo, pois é esse seu mito fundador – e, quando a mina e a estrutura foram passadas à recém criada MMX de Eike Batista, não era mais necessário pagar compensações pela atividade mineraria, o licenciamento ambiental flexibilizou-se, e não era mais necessário construir uma cidade com hospitais e escolas em torno da planta.
Construir uma cidade em torno da mina? Facultar o uso da ferrovia à população para que escoe sua produção, para que venda sua farinha em Macapá? Isso era coisa do tempo da Icomi. A empresa, que extraía riqueza das entranhas da terra roubada dos índios, plantando em torno de si um exército de miseráveis ávidos por vender sua mão de obra em troca de algumas migalhas, extraiu riqueza a não mais poder, levou-a à Europa, e deixou uma cidade pequena às moscas. A MMX, nem cidade construiu.
A sociedade amapaense, brasileira, não bamburrou... Mas Eike Batista colocou um X (relativo à operação de multiplicação, “vezes”) no Amapá, convertendo florestas em buraco, manganês e ferro nos bilhões que repousaram em suas contas no exterior, e trabalho humano em malária, ocupação urbana desordenada, alcoolismo, homicídios, prostituição. Eike, vale dizer, também bamburrou: tornou-se um dos maiores bilionários do mundo e, hoje, encontra-se praticamente falido. Garimpo sem malária – eis a expressão amapaense para lucro fácil e rápido. Parece que Eike também feneceu.
“Pedra Branca do Amapari é uma currutela de garimpo, sempre foi, e sempre será”, diz seu Pedro, agricultor, vindo à Perimetral Norte à época em que o Estado, pelo braço forte dos militares, desenhou o lanho, a cicatriz, o rasgo na Amazônia, para coloniza-la, explorá-la, prostituí-la, e “integrar a Amazônia para não enttregá-la”. Seu Pedro chegou pelas mãos do Estado, que tinha um projeto bem claro: colonizar para estuprar. Colonizar para converter a “mata bruta”, a “selva inculta”, o “inferno verde” em riqueza. E o povo achou que ia bamburrar. Dos caboclos foram tirados o caniço e a malhadeira – e o peixe, e o rio, e a roça. Dos cabanos, quilombolas, a foice e o ancinho. Bamburrar! Enriquecer!
Uma batalha épica, eis do que se trata. E ela ocorre, ocorre, ocorre. Agora. Aqui no Amapá.
Ato VI – notícias de um etnocídio
Ali, em Mato Grosso do Sul. Entrincheirados, povos tradicionais gritam – mas o ruído dos motores se sobrepõe a seu lamento. As trincheiras simbólicas, verdadeiros bastiões de outras modalidades de existência, alagam-se, submergem, sucumbem, com as enchentes provocadas pelos lagos de barragens absolutamente obsoletas e inúteis. Grandes e monstruosas hidrelétricas edificadas com recurso público, pelas mãos de empreiteiras que financiaram todas as campanhas políticas de todos os candidatos, independentemente de legenda, alagam campos e mais campos de futebol de Amazônia por dia.
No jogo da sustentabilidade, e da humanidade, portanto, o Brasil é goleado por milhões a zero, todos os dias, em seus campos de futebol devastados e calcinados. Altamira registrou um aumento de 500% no índice de homicídios durante o primeiro ano da instalação do canteiro de obras de Belo Monte. Lixo, esgoto, concentração de renda e fundiária. Corrupção: as empreiteiras da Lava Jato são as mesmas de Belo Monte.
Violência policial, expropriação violenta, pela mão do Estado, chacinas.
Etnocídio!
Povos indígenas são assassinados diariamente. Pelas mãos do Estado. Da sociedade nacional, portanto. Por suas mãos. Sim, as suas. A mando dos deputados que elegestes. Sim, você. Em nome dos valores de que você compartilha. Por sua causa. Em seu benefício. Em seu nome, porque em nome da geração de energia para sua casa, em nome do fortalecimento da economia para o barateamento do seu prato no restaurante. Estamos todos implicados. Em defesa do editorial do jornalista que você aplaude. Povos inteiros, sociedades inteiras, são dizimados. E você, algumas vezes, levanta bandeiras a favor disso. Defendendo os pouquíssimos que lucram com isso, esperando, com isso, comprar um Onix 0Km.
Você é um assassino. Leia Eichmann em Jerusalém de Hannah Arendt e compreenderás. A banalidade do mal pode estar em cada brado seu na Paulista. A cada passo meritocrático que dás contra os vagabundos agricultores que lutam por terras – as mesmas terras que sempre foram suas, e que foram roubadas, expropriadas, pilhadas, espoliadas. Espoliadas, roubadas. Sim, propriedade sendo roubada. E você apoiando. Reveja os cânones de sua própria religião. Talvez o deus Propriedade esteja bravo com você.
Trata-se de um embate real, periclitantemente real, violento e sangrento, no qual padecem homens de carne e osso, verdadeiros exércitos de civis absolutamente inocentes. Uma guerra diária, secular, travestida com paramento sacerdotal, e operada pelos clérigos que as metrópoles idolatram – ao ponto de fazer com que as metrópoles, em si mesmas, sejam altares dessa religião.
Mas não são apenas homens, de carne e osso, que sucumbem. São humanidades. É, portanto, a Humanidade.
Trago notícias de um embate que rega o solo com sangue indígena, quilombola, caboclo; um embate onde se asperge monoculturas com veneno. Uma batalha tão simbólica quanto política, tão epistemológica, filosófica, quanto real – e suas consequências se fazem sentir na pele, na carne, nas entranhas, das mentes e almas, de todos, em  maior ou menor grau.
Ato VII – desvendando as bandeiras
Esse embate brutal, onde homens e mulheres de verdade sangram, regam a terra e sua comida com sangue e agrotóxico, se vale de um plano simbólico: ele tem uma estrutura subjacente, uma estrutura inconsciente, um sistema de valores e signos dos quais você, sim, você aí, compartilha. Quer queira, quer não. Esse embate, que ocorre nas, aparentemente distantes terras amazônicas, e com o qual, portanto, você julga nada ter a ver, é legitimado pelos seus valores. O idioma por meio do qual você intelege o mundo é o mesmo que legitima e realiza esse etnocídio. Você é parte ativa, atuante, nisso. Está implicado. Dolosamente ou não.
 Trata-se de um confronto antigo entre modalidades de pensamento. Paradigmas. Um confronto que tem, sob a perspectiva brasileira, amazônica, dos povos indígenas da Amazônia (os ameríndios), pouco mais de 500 anos. Não se trata de batalhas em que “os índios feneceram por sua incapacidade técnica”, e nem de embates em que “bons selvagens cederam ao colonizador mau”. Virem o disco, senhoras e senhores, antes que ele derreta e nada tenhamos feito.
Estou a falar de um embate entre modalidades de pensamento e, portanto, jeitos de estar no mundo. Um embate sobre cosmologias. Um embate entre sistemas filosóficos e, portanto, entre jeitos de fazer ciência e agricultura, jeitos de cultivar plantas, fazer casas, organizar e vida, e cuidar dos animais de que nos alimentamos. Modalidades de encarar o mundo, de estar nele e relacionar-se com ele influenciam mais radicalmente o mundo em que vivemos do que podes imaginar: e há um debate sendo travado tão dolorosa quanto silenciosamente a cada curva de rio, a cada nervura das folhas das árvores abatidas na Amazônia pelas mãos – sim, pelas mãos, do Estado, do Incra, e, portanto, de você, cidadão.
Estou a versar sobre um embate no qual você, sim, você mesmo, tem tanta responsabilidade, quanto os que o levam a termo nesse exato momento nas lamacentas e poeirentas estradas e ramais da Amazônia: aqueles que devastarão floresta para plantar gado, aquecimento global, miséria, e exportar água, e carne de primeira, a preço de banana – enquanto você come sebo.
Que paradigmas são esses? No seio do pensamento ameríndio inscreve-se uma configuração que poderia ser, para o pensamento ocidental, uma fissura atômica cujo poder seria semelhante ao de uma bomba nuclear: o que para o pensamento ocidental moderno é uma dicotomia fundante e fundamental, para o pensamento dos povos indígenas das terras baixas da Amazônia em especial, não é sequer uma assertiva válida. Caso o ocidente moderno se predispusesse a ouvir, compreender, os paradigmas ameríndios de pensamento, a sério, não tenho dúvidas de que implodiria e entraria em (saudável) colapso.
Para compreender o que digo é necessário saber, sentir, crer, que diferentes paradigmas norteiam diferentes modalidades de relações com o mundo. No centro desse abismo simbólico entre diversos mundos – a sustentabilidade de um planeta inteiro é o que está em questão.
Natureza. Cultura. Natureza versus Cultura ou, melhor ainda, Cultura versus Natureza: eis, como já escrevi aqui (http://www.portalheraclito.com.br/index.php/materias/filosofias-selvagens/501/anima-mundi-perspectivismo-e-animismo-amerindios-ou-de-como-os-indios-filosofam.html ), configura-se a cisão inaugural da epistemologia, do sistema de pensamento, ocidental. Dessa cisão, da qual o mito da queda de Adão é apenas um poderoso exemplo, emana toda a narrativa que legitima o pensar ocidental: fazer-se humano é, no bojo desse sistema, negar a natureza, ou, melhor ainda, superá-la. Domá-la, moldá-la, estuprá-la.
A passagem da natureza à cultura implica na criação do Estado, por meio do Contrato Social (nesse sentido ouso recomendar outro texto meu: http://www.portalheraclito.com.br/index.php/materias/filosofias-selvagens/502/pactuando-um-contrato-social-o-direito-a-autodeterminacao-indigena-e-a-convencao-169-da-oit.html). Civilizar-se é, para o pensamento ocidental moderno (o seu!) arregimentar a natureza, negando-lhe agência, capacidade de agir, e torná-la matéria inanimada, com a qual se pode operar à vontade. Outro mito fundador se realiza: o deus cristão teria criado a humanidade a partir do barro (natureza/inanimada/inumana), aplicando-lhe sopro divino e, assim, fazendo-o à sua imagem e semelhança. O homem, criado por Deus, igualzinho à ele, sente-se então empoderado para, como Ele, transformar o barro do mundo, nomear as coisas, controlá-las, dominá-las, subjugá-las.
Concorre para a corroboração dessa tese o que nos diz o grande Max Weber (1864-1920) em seu A ética protestante e o espírito do capitalismo. Publicada em 1904, essa bela obra nos fornece a chave para compreender o Amapá, e, portanto, a Amazônia, de uma maneira acurada. Povos indígenas, garimpeiros, mineração, capitalismo e sub-desenvolvimento: quais as matrizes epistemológicas que subsidiam essas violentas – sangrentas – interações e qual seu teor?
Pensando sociologicamente as relações entre a lógica pragmática que subsidia, historicamente, a consolidação do capitalismo enquanto modo de produção predominante da vida, Weber empreende uma investigação acerca do modo como o pensamento religioso cristão ocidental, em especial a ética prescrita pelas religiões protestantes e o modo de produção capitalista.
Weber nos mostra o quanto a filosofia cristã, especialmente aquela que nos é apresentada pela teologia protestante, permite um desencantamento do mundo: o deus cristão não estaria mais na matéria, e, portanto, no Planeta Terra, para os protestantes. Isso permitiria aos emergentes capitalistas protestantes negar humanidade e divindade à matéria do mundo e, acima de tudo, reificá-la: feitos por deus, o planeta, os animais, os rios, as plantas, as pedras, não seriam, contudo, expressões dele, manifestações dele. Não seriam sagrados. Deus estaria fora do mundo, e, assim, manipular os entes do mundo, a natureza, portanto, de modo a cortá-la, explorá-la, derretê-la, canalizá-la, seria nada mais nada menos do que a realização do poder divino, aos homens dado por deus quando de sua criação à sua imagem e semelhança.
Esse arcabouço filosófico permite ao pensamento ocidental moderno desencantar o mundo, que deixa de ser sagrado. Deixando de ser sagrado, deixam de ter alma os animais – que, por muito tempo, foram considerados como seres que sequer sentiam dor – e deixam de agir e reagir a floresta, os rios, os lagos. De mãos dadas com o capitalismo, esse sistema de pensamento permite que os sociedades ocidentais posicionem-se diante de, e no mundo, de maneira soberba: reinando sozinho no planeta, o “Homem” (ou seja, o burguês branco, ocidental) teria sobre a matéria inanimada, desencantada, da natureza, poder absoluto: divino. Daí a poder domá-la, cortá-la, e vendê-la, foi um passo curto.
A modernidade inaugura-se para o ocidente, portanto, como a sobreposição do homem – o centro de seu universo e a medida de todas as coisas – sobre a natureza. Essa, inerte, inanimada, seria passiva. Caberia aos homens, no seio desse sistema epistemológico, domar, dominar, a natureza, convertendo-a a seu bel-prazer: e, assim, obtendo lucro com sua exploração. A arte e a indústria, assim como a ciência ocidentais, calcam-se nesse mito fundador: fazer-se homem (ou seja, tornar-se Homem, branco, burguês) é passar da natureza à cultura.
Atribuir-se, assim, aos polos desse eixo, uma hierarquia: natureza = primitivo, inferior, inanimado, submisso, bruto; cultura = evoluído, superior, dotado de alma (cristã, ocidental), dominante, culto. A natureza, selvagem, seria uma fêmea inerte e passiva, prestes a ser estuprada, engravidada, enriquecendo, com sua estripação, o macho alfa ocidental fecundador.
É sobre esse sistema de valores que o Brasil se constrói. Servindo à uma classe dominante branca, masculina, o Brasil, o pau-brasil, nada mais é do que uma vasta fazenda repleta de riquezas inertes, como madeira, índios, ouro e ferro, prestes a serem exploradas indiscriminadamente, a bem do enriquecimento dos verdadeiros homens, dos senhores, dos patrões, a fim de que, uma vez explorada essa riqueza, ela seja vendida, a fim de que os lucros decorrentes dessa transação sejam empregados em um retorno à Europa, o berço do ocidente e, portanto, da civilização, da cultura.
Índios, negros, ribeirinhos: são apenas primatas, animália. Seres inanimados, selvagens, primitivos, sem cultura, atrelados ao plano da natureza. Devem ser civilizados, natureza que são. Para tal, devem ser domados. A terra sobre a qual cultivam seus verdadeiros sistemas agroflorestais, deve ser espoliada, predada.
Ato VIII – chacina epistemológica
Você usufrui dos valores em torno do qual esse etnocídio se dá. Quer queira, quer não. Vivemos esse mundo: domamos animais, cultivamos monoculturas. Somos isso. Isso te implica tanto quanto quando você recolhe o espólio desse massacre e se enfeita com ele, bebendo a água que disso advém; comendo a carne por ele produzida; consumindo o minério assim obtido. Você está implicado. E, se deseja olhar-se no espelho e considerar-se minimamente humano, deve fazer algo a respeito. Sua pretensão à isenção e inocência, manifesta sob o argumento de “nada fiz!” é falaciosa e hedionda.
Você está implicado, quando usufrui, vive, realiza esse sistema de valores. Quando vive nesse sistema, e desse jeito. Quando aplaude os arautos desse religião, e brada em prol da propriedade privada e da acumulação de capital – e grita, portanto, contra ribeirinhos, quilombolas, indígenas, onças, pacas, tatus, araras... Você é implicado, justamente, por “nada fazer” a respeito. Ser humano, ser cidadão, diante de tudo isso, é um processo, que resultará de sua atitude pró-ativa – que está para além de separar o lixo em orgânico e inorgânico na praça de alimentação do shopping. O planeta, e seu mundo – sua visão de mundo, seu jeito de viver o mundo – estão em vias de extinção. E você está implicado. Tanto quanto (ou menos!) do que os homens que acionam as motosserras e os gatilhos.
A gênese do Brasil é o bamburro. A predação. O estupro. Esse processo é legitimado por um sistema de valores – e você usufrui dele, contribui com ele, partilha dele. Enxergas o mundo sob a ótica dele. Você está implicado. E sabe o que é pior? Não vai bamburrar.
Fazer algo a respeito é um dever. Comece sendo cidadão, exercendo sua cidadania. Sua humanidade, portanto. Mudar o pensamento como um todo talvez seja o único e primordial caminho nesse sentido.

Bruno Walter Caporrino
Publicado originalmente em minha coluna intitulada Filosofias Selvagens do Portal Heráclito