Você
está implicado – e não vai bamburrar
Bruno Walter Caporrino
Bruno Walter Caporrino
Crédito
das fotografias: Bruno Walter Caporrino
Ato I – caem as máscaras
Um
embate – silencioso aos ouvidos dos que se extinguem nos congestionamentos
labirínticos das grandes metrópoles – realiza-se agora, nesse exato momento – e
há muito – nas florestas da Amazônia, nos
cerrados amapaenses e paraenses (porque o mato-grossense já capitulou,
juntamente com nossa dignidade humana). Ele às liga à Avenida Paulista e às
bolsas de valores e mercadorias do mundo inteiro. Não, desligue seu Netflix:
não se trata de um embate entre forças “do mal” e forças “do bem”, a ser
resolvido por alguma solução narrativa mágica – como cuecas por sobre calças
coladas voando sobre arranha-céus e “combatendo o mal”.
Trata-se
de um embate de paradigmas. Modos de pensar o mundo e, portanto, de
posicionar-se nele e diante dele. E isso implica você.
Fumaça
empesteia o ar, a floresta arde para ceder à soja transgênica, cultivada por
latifundiários de terno e gravata que detém verdadeiros feudos cujos hectares
sequer é possível contabilizar. Comprar a garrafinha d’água produzida com menos
PET pode até deixar sua consciência tranquila, mas, como usar cuecas por sobre
as calças, tal “solução mágica” não resolverá os problemas dos quais as pessoas
desviam os olhos, no jantar, quando (raramente) são distorcidamente narrados no
telejornal.
Um
verdadeiro inferno pós-neocolonial se espraia pelos outrora verdes prados do
gigante pela própria natureza que, consumindo-a, devorando-a, entrega-a aos
“gringos”, à expensas de seu próprio povo, e em nome da soberania nacional.
Integrar os índios – esses vagabundos que usam Iphone, e nem são mais índios –
é a única solução para não entregar a nossa riqueza. É uma questão se soberania
nacional! Bandeiras hasteadas, PECs como a 215, flexibilização da legislação
ambiental – o fim do licenciamento ambiental – e a permissão para a venda de
terras – latifúndios – a estrangeiros, são os pratos do dia na cozinha do
gigante. Não, ele não acordou.
Letárgico, digere suas florestas e suas gentes, e regurgita pobreza, falta de
saneamento, prostituição, criminalidade. Tatua uma verdadeira geografia da fome
na pele de sua barriga. Ostenta sobre o peito arqueado os dizeres ordem, e progresso.
In english, please.
Muita
terra para pouquíssimos caciques. E você os apoia. Crê, com isso, que deles
receberá algumas migalhas, e que, aos seus 67 anos de idade, (oxalá! Tomara! Se
deus quiser!) conseguirá financiar um apartamento de 50 metros quadrados,
enquanto esses índios preguiçosos e vagabundos, e esses sem-terra marginais,
atentam contra o ícone mais sagrado de seu delírio pós-moderno: a propriedade,
isso mesmo, aquela que você defende, e não tem. Parabéns!
Ato II – a batalha
Uma
árvore tomba. Um homem é torturado, da pior maneira: a simbólica. Seu mundo
rui, lhe é roubado. Sua razão para viver exaure-se. Seus valores são demolidos.
Um povo inteiro é dizimado – veneno é aspergido sobre suas barracas de lona à
beira de alguma estrada, construída pelo Estado, com dinheiro público, e espremida
entre latifúndios doados pelo Estado a indivíduos cujo poder é endossado pela
mídia, pelo povo de verde e amarelo que toma as ruas, ao passo em que o alarido
dos pássaros, insetos, batráquios, é substituído pela zoada de um exército de
motosserras e tratores industriais, manipulados por famélicos soldados sem
soldo, curtidos na miséria como peões, reles e descartáveis peões, que
prontamente serão presos, torturados, caçados, tão logo acabe a empreita.
Mas
você nada tem a ver com isso, certo? Será? Rico e único patrimônio genético,
que demorou bilhões de anos para se constituir, desenvolver-se, esvai-se, some,
e nada disso tem a ver com você, sapiens, sapiens... morando na cidade,
consumindo menos energia no banho: você nada tem que ver com esse discurso
eco-chato de hippies amalucados.
Enquanto
considerável parcela da população milita pelo enrijecimento das leis, para
salvaguardar o mais sagrado direito (o Deus Propriedade), vende sua força de
trabalho por migalhas. E acredita que, por seu próprio mérito, trabalhará
honestamente (diferentemente desses índios vagabundos!) e conseguirá comprar a
mansão e o carro que os seus heróis ostentam. Mal sabes tu, ó sacerdote comum
da meritocracia, o quão risível é teu devaneio!
Mal
sabes tu, arauto do trabalho, do mérito, pequeno-burguês cego, o quanto teus
heróis se beneficiaram do Estado e do bem público espoliado indevidamente, sem
gastar uma gota sequer de seu suor, para enriquecerem, predando, justamente, a
propriedade alheia, e, sobretudo, o bem público. Mal sabes tu o quanto a
riqueza de seus heróis foi obtida pelo avesso da meritocracia, da democracia,
do empreendedorismo. O quanto ela é roubada de ti mesmo. E o quanto seu modo de
pensar endossa, legitima, justifica isso.
Ato III – estupro e pilhagem
Correntes.
Antes grilhões, marcando o pulso de contingentes de homens e mulheres negros,
que geraram riqueza para uma minúscula elite branca à custa de seu empobrecimento, à custa da
extração indiscriminada dos recursos naturais. Correntes, atadas entre dois tratores,
devastam florestas inteiras, tabula rasa, corte raso, hectares e mais hectares,
todos os dias. Correntes: ciclos de exploração comercial se estendem sobre o
tapete verde das florestas brasileiras, calando o cantar dos pássaros e o urrar
de seus moradores, desde que, Colônia, o Brasil se constituiu.
Brasil.
Nome de madeira. Brasileiro: uma profissão, precarizada, escrava – madeireiros.
Padeiro: aquele que faz pão. Brasileiro: aquele que extrai pau-brasil. No DNA
do Estado brasileiro, o sangue de sua gente burbulha, negro, venoso. No DNA do
Estado e da sociedade brasileira, o estupro, a rapinagem, a pilhagem, a
escravização – o DNA do Brasil é predar. Todo brasileiro tem sangue indígena e
negro. Ou em suas mãos, ou em suas veias. E isso determinará o local que ocupa
na estrutura de classes. Isso determinará o grau de sua riqueza pecuniária.
Correntes
atam as mentes do “cidadão comum”. Esse, que acredita ser sustentável e
consciente, por separar o lixo reciclável do não reciclável, durante
manifestações financiadas pela FIESP em prol do fim das unidades de conservação
da natureza, em prol da extinção do licenciamento ambiental, em prol da
mineração para o progresso, em prol da redução da carga tributária para os
produtos da mineração e do agronegócio exportados sem deixar um centavo de ICMS
nos locais onde sua produção devasta recursos que são públicos.
E
cuja exploração gera lucros particulares. E cujas consequências são públicas.
Esse, que acredita que usando a ciclovia uma vez por semana, salvará espécies
em extinção. Você. Seu vizinho. Esses, que militam pelo fim das demarcações de
terras indígenas, a bem do progresso. Vocês estão implicados nessa batalha
cosmológica cujos resultados práticos afetarão a todos, e farão com que todos
sejam perdedores.
O embate
prossegue, sobre campos devastados, calcinados. Ribeirinhos são tirados de suas
terras à força. Povos indígenas, acossados, são caçados, veem sua caça sumir,
veem seus rios serem represados, envenenados com mercúrio e agrotóxico, veem os
lugares sagrados para sua história e cosmologia serem profanados por máquinas
que escavam a terra e a estripam, a estupram.
Veem o Estado agir para expulsá-los de suas terras, torná-los
mão-de-obra barata, dependente de dinheiro, anulando seus mais sagrados
direitos, como a autodeterminação, por meio mesmo de políticas públicas. A
biodiversidade, salvaguardada por esses povos, graças à sua cosmologia, à seus
paradigmas de relações, e essencial para a vida no planeta, e para a
continuidade do próprio capitalismo, é agredida, ameaçada. Pelo próprio Estado,
muitas vezes.
Ato IV – plantando miséria para colher madeira
Assentados
de reforma agrária são instalados pelas mãos do Estado, do Incra, em áreas
precárias, distantes dos centros urbanos, e coincidentemente no meio da
floresta, exatamente em cima dos recursos minerais e madeireiros.
Incentivados
a cultivar solos diferentes daqueles que conhecem, a usar técnicas diversas das
que tradicionalmente dominam, a plantar produtos cujas cadeias produtivas não
são consolidadas, produtos que não serão
vendidos a preço justo, amargam fome. Planta-se miséria para colher-se pobreza.
Planta-se assentado na Amazônia para colher terra nua, calcinada, madeira
ilegal. Planta-se miseráveis para amargar malária e vender Angelim a R$50,00 o
metro cúbico, sem licenciamento, sem regulamentação. Madeira exportada. É
necessário vendê-la para criar condições para o progresso e o desenvolvimento.
Em nome da soberania nacional, é necessário tirar o povo da terra que ocupa, e
da qual seus regimes de conhecimento e relações tanto zelam.
O
Estado brasileiro se reitera, em ciclos predatórios. Correntes. Círculos se
espraiam, reverberando a lógica predatória do assassínio e do estupro, que gera
acumulação de renda e latifúndio. Uma projeção geográfica dos ciclos exploratórios/colonizadores
que assolam a história dessas terras e gentes mostra como a progressão é
física, a partir do sudeste e do nordeste. Uma mancha de deserto e queimadas
caminha pari passu com a concentração
fundiária. “Progresso” significa, unicamente, devastação, seca, desertificação.
Hoje.
Agora. Aqui, no meu Amapá. Aqui, na Perimetral Norte, onde moro e trabalho:
assentados de reforma agrária abandonados, sem infra-estrutura, não conseguem
escoar sua módica produção orgânica e, desesperados, cedem às pressões dos
próprios agentes do Estado para vender madeira. A agricultura familiar,
sustentável e orgânica, à expensas de todos os desafios que enfrenta, alimenta
a população brasileira, enquanto o agronegócio, dominado pelos caciques, tão
fortalecidos no Congresso Nacional, instaura impérios latifundiários cuja
devastação é o lema; o uso de sementes e insumos estrangeiros, híbridos, é o
tom; e cujos lucros concentrados são enviados ao exterior. Devastar tudo para
gerar riqueza? Não! Produzir miséria, em escala industrial, devastação,
esgotamento dos recursos naturais, para encher dois ou três bolsos, de dois ou
três caciques.
Como
em 1500, o Brasil está estruturado sobre um pilar: pilhar. Devastar, explorar
mão-de-obra escrava para devastar e gerar riqueza, riqueza essa a ser
expatriada. Divisas evadidas. Dívidas contraídas, em nome da sociedade pilhada.
Eis o progresso. O enredo do Brasil é um estupro. Calca-se sobre a exploração
predatória dos recursos naturais, a fim do enriquecimento de uma minúscula
elite, que, por sua vez, envia os recursos dessa exploração ao exterior. Em
nome da soberania nacional. Em nome, e pelas mãos, do Estado.
O
Estado brasileiro surge do látego, do chicote. A sociedade brasileira surge do
estupro, da curra. O judiciário é o pelourinho. O juiz, o proprietário. A
polícia, o capitão do mato. O criminoso? A vítima. Índios, escravos. Florestas.
Sociobiodiversidade. Toda sociobiodiversidade é crime, no Brasil: eis a
pedra-fundamental, a única cláusula pétrea de que o país se constitui: o que
não for propriedade privada, será crime. Gentes, terras, bichos.
Ato V – bamburro!
Meu
projeto é pensar o Amapá a partir da aldeia. O Brasil, a partir do Amapá. O
mundo, a partir do Brasil. Círculos, cujo epicentro é o local em toda sua
universalidade. Por isso, perdoem, mas falo da minha terra. Falo dela: a partir
dela. Nela.
Em
plena Amazônia, no estado do Amapá, ainda território federal, instalou-se,
ainda durante a década de 1950, uma grande mineradora trans-nacional, chamada
Icomi. Consolidando em seu derredor uma company
town, a cidade (agora tombada como patrimônio histórico) de Serra do Navio,
a mineradora foi anunciada aos amapaenses, ao povo brasileiro, como a grande
“salvadora da pátria”. Considerada a responsável pela vinda do progresso, do
desenvolvimento, e, portanto, da civilização, para as bandas “selvagens e
incultas” do Amapá, a mineração seria responsável por fazer um X no estado
brasileiro, em cima do Amapá, colocando-o no mapa, e transformando-o em Brasil.
Faria isso convertendo floresta – mato, malária, doença, sujeira – em progresso:
lucro, desenvolvimento, civilização.
O
Amapá garimpeiro, historicamente consolidado a partir das frentes de exploração
garimpeira e gateira, acostumadas e enquadrar os povos indígenas como
“selvagens” e, portanto, ícones da involução, do atraso, da primitividade, da
falta de humanidade e civilização, recebeu com efusividade a notícia. Em plena
década de 1950, o território do Amapá esperava bamburrar!
Bamburrar!
Achar o veio! Dar com a picareta, com a bateia, exatamente no curso aurífero.
Encontrar e extirpar das entranhas virgens da terra a riqueza, o metal a ser
trocado por grande soma de dinheiro a gastar com cachaça e prostitutas.
Bamburrar é ganhar. Mas é também gastar. O garimpeiro sonha sua vida inteira,
de sol a sol, de chuva em chuva, de malária em malária, em “dar com o veio”,
achar o ouro em abundância. Assim que bamburra, dedica-se com êxtase a consumir
o produto do bamburro; bamburrar é um ciclo, e não uma via de mão única, como
se acredita. Acredita-se que bamburrar é a via pela qual se sai do garimpo.
Bamburrar é enriquecer rapidamente. Enriquecer rapidamente significa gastar
tudo rapidamente, exercendo poder, prestígio, na sociedade do garimpo. Auri sacra famis! A febre do ouro, que
se inscreve na gênese do capitalismo, tem no bamburro seu mito fundador:
ganhar, e gastar – fazer circular e, assim, permitir a uma elite acumular.
No
garimpo, o jogo é mais aberto. Mais público. Ganhar e gastar são faces da
mesma... moeda. Acumulação primitiva de capital. Sangue, sêmem, lama.
Primitiva.
O
garimpo, assim, não é uma metáfora, uma caricatura, do capitalismo. Ele é o
capitalismo em sua primitividade. Ele é a gênese do capitalismo: o capitalismo
se instaura mediante a exploração dos “recursos naturais”. Calcado na extração
dos “recursos” naturais por força de mão-de-obra precarizada e explorada, o
garimpo consagra o modo de produção capitalista e fundamenta seu sistema de
valores: o recurso natural – natureza - é civilizado – convertido em cultura – mediante
sua conversão em valor. Nesse estágio do capitalismo, bamburrar é visto como
uma via para sair do garimpo. Mas é, na verdade, um círculo vicioso. A primeira
lei do garimpo é: o que vem do garimpo, volta para o garimpo. O que vem do
garimpo fica no/com o garimpo.
Bamburrar
significa, portanto, enriquecer do nada, achar ouro, e, imediatamente,
comemorar isso, gastando tudo, tudo, tudinho, em uma única e mesma noite, se
possível. O dinheiro do garimpo volta ao garimpo. As prostitutas “são” do dono
do garimpo. A cachaça também. As roupas e a quina, usada para combater a fatal
malária, são vendidas... na baiuca do dono do garimpo. O dinheiro do garimpo
fica no, e com, o garimpo. Bamburrar é ganhar muito dinheiro, e gastar muito
dinheiro, a fim de gerar riqueza – acumulação primitiva – ao dono do garimpo.
Que, por sua vez, não mora no garimpo. Estando fora, ele o domina, sem se sujar
de lama. Enriquece com as mortes à facadas, enriquece com a prostituição.
Enriquece
com o estupro, com a extirpação, com a estripação da terra: abrindo suas
entranhas com suas ferramentas fálicas, os homens sucumbem, malária após
malária, para enriquecer o patrão. O garimpo é a gênese do capitalismo. Um feto
abortado. O capitalismo à brasileira consiste em uma voraz acumulação primitiva
de capital. Geni Geni Geni! O Zepelim sobrevoa a floresta: é hora de abrir-lhe
as entranhas para extrair delas a riqueza para o homem do terno branco, alheio,
exótico, estrangeiro. Em nome da soberania nacional.
Bamburrar
é a mola propulsora do capitalismo. E o Amapá, por exemplo, ansiava-se,
entraria no capitalismo, com a chegada da Icomi. Bamburrando, claro. As ricas
jazidas de ouro, tantalita, manganês e ferro foram exploradas em Serra do
Navio, inicialmente pela Icomi. Os executivos do setor conseguiram mudar muito
a legislação ao longo dos anos – manipulando o Estado que, teoricamente,
representa os interesses do povo, do coletivo, da sociedade como um todo, pois
é esse seu mito fundador – e, quando a mina e a estrutura foram passadas à
recém criada MMX de Eike Batista, não era mais necessário pagar compensações
pela atividade mineraria, o licenciamento ambiental flexibilizou-se, e não era
mais necessário construir uma cidade com hospitais e escolas em torno da planta.
Construir
uma cidade em torno da mina? Facultar o uso da ferrovia à população para que
escoe sua produção, para que venda sua farinha em Macapá? Isso era coisa do
tempo da Icomi. A empresa, que extraía riqueza das entranhas da terra roubada
dos índios, plantando em torno de si um exército de miseráveis ávidos por
vender sua mão de obra em troca de algumas migalhas, extraiu riqueza a não mais
poder, levou-a à Europa, e deixou uma cidade pequena às moscas. A MMX, nem
cidade construiu.
A
sociedade amapaense, brasileira, não bamburrou... Mas Eike Batista colocou um X
(relativo à operação de multiplicação, “vezes”) no Amapá, convertendo florestas
em buraco, manganês e ferro nos bilhões que repousaram em suas contas no
exterior, e trabalho humano em malária, ocupação urbana desordenada, alcoolismo,
homicídios, prostituição. Eike, vale dizer, também bamburrou: tornou-se um dos
maiores bilionários do mundo e, hoje, encontra-se praticamente falido. Garimpo
sem malária – eis a expressão amapaense para lucro fácil e rápido. Parece que
Eike também feneceu.
“Pedra
Branca do Amapari é uma currutela de garimpo, sempre foi, e sempre será”, diz
seu Pedro, agricultor, vindo à Perimetral Norte à época em que o Estado, pelo
braço forte dos militares, desenhou o lanho, a cicatriz, o rasgo na Amazônia,
para coloniza-la, explorá-la, prostituí-la, e “integrar a Amazônia para não
enttregá-la”. Seu Pedro chegou pelas mãos do Estado, que tinha um projeto bem
claro: colonizar para estuprar. Colonizar para converter a “mata bruta”, a
“selva inculta”, o “inferno verde” em riqueza. E o povo achou que ia bamburrar.
Dos caboclos foram tirados o caniço e a malhadeira – e o peixe, e o rio, e a
roça. Dos cabanos, quilombolas, a foice e o ancinho. Bamburrar! Enriquecer!
Uma
batalha épica, eis do que se trata. E ela ocorre, ocorre, ocorre. Agora. Aqui
no Amapá.
Ato VI – notícias de um etnocídio
Ali,
em Mato Grosso do Sul. Entrincheirados, povos tradicionais gritam – mas o ruído
dos motores se sobrepõe a seu lamento. As trincheiras simbólicas, verdadeiros bastiões
de outras modalidades de existência, alagam-se, submergem, sucumbem, com as
enchentes provocadas pelos lagos de barragens absolutamente obsoletas e inúteis.
Grandes e monstruosas hidrelétricas edificadas com recurso público, pelas mãos
de empreiteiras que financiaram todas as campanhas políticas de todos os
candidatos, independentemente de legenda, alagam campos e mais campos de
futebol de Amazônia por dia.
No
jogo da sustentabilidade, e da humanidade, portanto, o Brasil é goleado por
milhões a zero, todos os dias, em seus campos de futebol devastados e
calcinados. Altamira registrou um aumento de 500% no índice de homicídios
durante o primeiro ano da instalação do canteiro de obras de Belo Monte. Lixo,
esgoto, concentração de renda e fundiária. Corrupção: as empreiteiras da Lava
Jato são as mesmas de Belo Monte.
Violência
policial, expropriação violenta, pela mão do Estado, chacinas.
Etnocídio!
Povos
indígenas são assassinados diariamente. Pelas mãos do Estado. Da sociedade
nacional, portanto. Por suas mãos. Sim, as suas. A mando dos deputados que
elegestes. Sim, você. Em nome dos valores de que você compartilha. Por sua
causa. Em seu benefício. Em seu nome, porque em nome da geração de energia para
sua casa, em nome do fortalecimento da economia para o barateamento do seu
prato no restaurante. Estamos todos implicados. Em defesa do editorial do
jornalista que você aplaude. Povos inteiros, sociedades inteiras, são
dizimados. E você, algumas vezes, levanta bandeiras a favor disso. Defendendo
os pouquíssimos que lucram com isso, esperando, com isso, comprar um Onix 0Km.
Você
é um assassino. Leia Eichmann em
Jerusalém de Hannah Arendt e compreenderás. A banalidade do mal pode estar
em cada brado seu na Paulista. A cada passo meritocrático que dás contra os
vagabundos agricultores que lutam por terras – as mesmas terras que sempre
foram suas, e que foram roubadas, expropriadas, pilhadas, espoliadas.
Espoliadas, roubadas. Sim, propriedade sendo roubada. E você apoiando. Reveja
os cânones de sua própria religião. Talvez o deus Propriedade esteja bravo com
você.
Trata-se
de um embate real, periclitantemente real, violento e sangrento, no qual
padecem homens de carne e osso, verdadeiros exércitos de civis absolutamente
inocentes. Uma guerra diária, secular, travestida com paramento sacerdotal, e
operada pelos clérigos que as metrópoles idolatram – ao ponto de fazer com que
as metrópoles, em si mesmas, sejam altares dessa religião.
Mas
não são apenas homens, de carne e osso, que sucumbem. São humanidades. É, portanto,
a Humanidade.
Trago
notícias de um embate que rega o solo com sangue indígena, quilombola, caboclo;
um embate onde se asperge monoculturas com veneno. Uma batalha tão simbólica
quanto política, tão epistemológica, filosófica, quanto real – e suas consequências
se fazem sentir na pele, na carne, nas entranhas, das mentes e almas, de todos,
em maior ou menor grau.
Ato VII – desvendando as bandeiras
Esse
embate brutal, onde homens e mulheres de verdade sangram, regam a terra e sua
comida com sangue e agrotóxico, se vale de um plano simbólico: ele tem uma
estrutura subjacente, uma estrutura inconsciente, um sistema de valores e
signos dos quais você, sim, você aí, compartilha. Quer queira, quer não. Esse
embate, que ocorre nas, aparentemente distantes terras amazônicas, e com o
qual, portanto, você julga nada ter a ver, é legitimado pelos seus valores. O
idioma por meio do qual você intelege o mundo é o mesmo que legitima e realiza
esse etnocídio. Você é parte ativa, atuante, nisso. Está implicado. Dolosamente
ou não.
Trata-se de um confronto antigo entre
modalidades de pensamento. Paradigmas. Um confronto que tem, sob a perspectiva
brasileira, amazônica, dos povos indígenas da Amazônia (os ameríndios), pouco
mais de 500 anos. Não se trata de batalhas em que “os índios feneceram por sua
incapacidade técnica”, e nem de embates em que “bons selvagens cederam ao
colonizador mau”. Virem o disco, senhoras e senhores, antes que ele derreta e
nada tenhamos feito.
Estou
a falar de um embate entre modalidades de pensamento e, portanto, jeitos de
estar no mundo. Um embate sobre cosmologias. Um embate entre sistemas
filosóficos e, portanto, entre jeitos de fazer ciência e agricultura, jeitos de
cultivar plantas, fazer casas, organizar e vida, e cuidar dos animais de que
nos alimentamos. Modalidades de encarar o mundo, de estar nele e relacionar-se
com ele influenciam mais radicalmente o mundo em que vivemos do que podes
imaginar: e há um debate sendo travado tão dolorosa quanto silenciosamente a
cada curva de rio, a cada nervura das folhas das árvores abatidas na Amazônia
pelas mãos – sim, pelas mãos, do Estado, do Incra, e, portanto, de você,
cidadão.
Estou
a versar sobre um embate no qual você, sim, você mesmo, tem tanta
responsabilidade, quanto os que o levam a termo nesse exato momento nas
lamacentas e poeirentas estradas e ramais da Amazônia: aqueles que devastarão
floresta para plantar gado, aquecimento global, miséria, e exportar água, e
carne de primeira, a preço de banana – enquanto você come sebo.
Que
paradigmas são esses? No seio do pensamento ameríndio inscreve-se uma
configuração que poderia ser, para o pensamento ocidental, uma fissura atômica
cujo poder seria semelhante ao de uma bomba nuclear: o que para o pensamento
ocidental moderno é uma dicotomia fundante e fundamental, para o pensamento dos
povos indígenas das terras baixas da Amazônia em especial, não é sequer uma
assertiva válida. Caso o ocidente moderno se predispusesse a ouvir,
compreender, os paradigmas ameríndios de pensamento, a sério, não tenho dúvidas
de que implodiria e entraria em (saudável) colapso.
Para
compreender o que digo é necessário saber, sentir, crer, que diferentes
paradigmas norteiam diferentes modalidades de relações com o mundo. No centro
desse abismo simbólico entre diversos mundos – a sustentabilidade de um planeta
inteiro é o que está em questão.
Natureza.
Cultura. Natureza versus Cultura ou,
melhor ainda, Cultura versus Natureza:
eis, como já escrevi aqui (http://www.portalheraclito.com.br/index.php/materias/filosofias-selvagens/501/anima-mundi-perspectivismo-e-animismo-amerindios-ou-de-como-os-indios-filosofam.html
), configura-se a cisão inaugural da epistemologia, do sistema de pensamento,
ocidental. Dessa cisão, da qual o mito da queda de Adão é apenas um poderoso
exemplo, emana toda a narrativa que legitima o pensar ocidental: fazer-se
humano é, no bojo desse sistema, negar a natureza, ou, melhor ainda, superá-la.
Domá-la, moldá-la, estuprá-la.
A
passagem da natureza à cultura implica na criação do Estado, por meio do Contrato
Social (nesse sentido ouso recomendar outro texto meu: http://www.portalheraclito.com.br/index.php/materias/filosofias-selvagens/502/pactuando-um-contrato-social-o-direito-a-autodeterminacao-indigena-e-a-convencao-169-da-oit.html).
Civilizar-se é, para o pensamento ocidental moderno (o seu!) arregimentar a
natureza, negando-lhe agência, capacidade de agir, e torná-la matéria
inanimada, com a qual se pode operar à vontade. Outro mito fundador se realiza:
o deus cristão teria criado a humanidade a partir do barro
(natureza/inanimada/inumana), aplicando-lhe sopro divino e, assim, fazendo-o à
sua imagem e semelhança. O homem, criado por Deus, igualzinho à ele, sente-se
então empoderado para, como Ele, transformar o barro do mundo, nomear as
coisas, controlá-las, dominá-las, subjugá-las.
Concorre
para a corroboração dessa tese o que nos diz o grande Max Weber (1864-1920) em
seu A ética protestante e o espírito do
capitalismo. Publicada em 1904, essa bela obra nos fornece a chave para
compreender o Amapá, e, portanto, a Amazônia, de uma maneira acurada. Povos
indígenas, garimpeiros, mineração, capitalismo e sub-desenvolvimento: quais as
matrizes epistemológicas que subsidiam essas violentas – sangrentas –
interações e qual seu teor?
Pensando
sociologicamente as relações entre a lógica pragmática que subsidia,
historicamente, a consolidação do capitalismo enquanto modo de produção
predominante da vida, Weber empreende uma investigação acerca do modo como o
pensamento religioso cristão ocidental, em especial a ética prescrita pelas
religiões protestantes e o modo de produção capitalista.
Weber
nos mostra o quanto a filosofia cristã, especialmente aquela que nos é
apresentada pela teologia protestante, permite um desencantamento do mundo: o
deus cristão não estaria mais na matéria, e, portanto, no Planeta Terra, para
os protestantes. Isso permitiria aos emergentes capitalistas protestantes negar
humanidade e divindade à matéria do mundo e, acima de tudo, reificá-la: feitos
por deus, o planeta, os animais, os rios, as plantas, as pedras, não seriam,
contudo, expressões dele, manifestações dele. Não seriam sagrados. Deus estaria
fora do mundo, e, assim, manipular os entes do mundo, a natureza, portanto, de
modo a cortá-la, explorá-la, derretê-la, canalizá-la, seria nada mais nada
menos do que a realização do poder divino, aos homens dado por deus quando de
sua criação à sua imagem e semelhança.
Esse
arcabouço filosófico permite ao pensamento ocidental moderno desencantar o
mundo, que deixa de ser sagrado. Deixando de ser sagrado, deixam de ter alma os
animais – que, por muito tempo, foram considerados como seres que sequer
sentiam dor – e deixam de agir e reagir a floresta, os rios, os lagos. De mãos
dadas com o capitalismo, esse sistema de pensamento permite que os sociedades
ocidentais posicionem-se diante de, e no mundo, de maneira soberba: reinando
sozinho no planeta, o “Homem” (ou seja, o burguês branco, ocidental) teria
sobre a matéria inanimada, desencantada, da natureza, poder absoluto: divino.
Daí a poder domá-la, cortá-la, e vendê-la, foi um passo curto.
A
modernidade inaugura-se para o ocidente, portanto, como a sobreposição do homem
– o centro de seu universo e a medida de todas as coisas – sobre a natureza.
Essa, inerte, inanimada, seria passiva. Caberia aos homens, no seio desse
sistema epistemológico, domar, dominar, a natureza, convertendo-a a seu
bel-prazer: e, assim, obtendo lucro com sua exploração. A arte e a indústria,
assim como a ciência ocidentais, calcam-se nesse mito fundador: fazer-se homem
(ou seja, tornar-se Homem, branco, burguês) é passar da natureza à cultura.
Atribuir-se,
assim, aos polos desse eixo, uma hierarquia: natureza = primitivo, inferior,
inanimado, submisso, bruto; cultura = evoluído, superior, dotado de alma
(cristã, ocidental), dominante, culto. A natureza, selvagem, seria uma fêmea
inerte e passiva, prestes a ser estuprada, engravidada, enriquecendo, com sua
estripação, o macho alfa ocidental fecundador.
É
sobre esse sistema de valores que o Brasil se constrói. Servindo à uma classe
dominante branca, masculina, o Brasil, o pau-brasil, nada mais é do que uma
vasta fazenda repleta de riquezas inertes, como madeira, índios, ouro e ferro,
prestes a serem exploradas indiscriminadamente, a bem do enriquecimento dos
verdadeiros homens, dos senhores, dos patrões, a fim de que, uma vez explorada
essa riqueza, ela seja vendida, a fim de que os lucros decorrentes dessa
transação sejam empregados em um retorno à Europa, o berço do ocidente e,
portanto, da civilização, da cultura.
Índios,
negros, ribeirinhos: são apenas primatas, animália. Seres inanimados, selvagens,
primitivos, sem cultura, atrelados ao plano da natureza. Devem ser civilizados,
natureza que são. Para tal, devem ser domados. A terra sobre a qual cultivam
seus verdadeiros sistemas agroflorestais, deve ser espoliada, predada.
Ato VIII – chacina epistemológica
Você
usufrui dos valores em torno do qual esse etnocídio se dá. Quer queira, quer
não. Vivemos esse mundo: domamos animais, cultivamos monoculturas. Somos isso. Isso
te implica tanto quanto quando você recolhe o espólio desse massacre e se
enfeita com ele, bebendo a água que disso advém; comendo a carne por ele
produzida; consumindo o minério assim obtido. Você está implicado. E, se deseja
olhar-se no espelho e considerar-se minimamente humano, deve fazer algo a
respeito. Sua pretensão à isenção e inocência, manifesta sob o argumento de
“nada fiz!” é falaciosa e hedionda.
Você
está implicado, quando usufrui, vive, realiza esse sistema de valores. Quando
vive nesse sistema, e desse jeito. Quando aplaude os arautos desse religião, e brada
em prol da propriedade privada e da acumulação de capital – e grita, portanto,
contra ribeirinhos, quilombolas, indígenas, onças, pacas, tatus, araras... Você
é implicado, justamente, por “nada fazer” a respeito. Ser humano, ser cidadão,
diante de tudo isso, é um processo, que resultará de sua atitude pró-ativa –
que está para além de separar o lixo em orgânico e inorgânico na praça de
alimentação do shopping. O planeta, e seu mundo – sua visão de mundo, seu jeito
de viver o mundo – estão em vias de extinção. E você está implicado. Tanto
quanto (ou menos!) do que os homens que acionam as motosserras e os gatilhos.
A
gênese do Brasil é o bamburro. A predação. O estupro. Esse processo é
legitimado por um sistema de valores – e você usufrui dele, contribui com ele,
partilha dele. Enxergas o mundo sob a ótica dele. Você está implicado. E sabe o
que é pior? Não vai bamburrar.
Fazer
algo a respeito é um dever. Comece sendo cidadão, exercendo sua cidadania. Sua
humanidade, portanto. Mudar o pensamento como um todo talvez seja o único e
primordial caminho nesse sentido.
Bruno Walter Caporrino
Publicado originalmente em minha coluna intitulada Filosofias Selvagens do Portal Heráclito
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