Você
está implicado, e não vai bamburrar, parte 2
Bruno
Walter Caporrino
(Publicado em Filosofias
Selvagens, coluna do Portal Heráclito: http://www.portalheraclito.com.br/index.php/materias/filosofias-selvagens/779/voce-esta-implicado-e-nao-vai-bamburrar-parte-2.html
em agosto de 2017)
“Toda
vez que der num veio, o garimpeiro vai tirar o ouro, todo, até num dar mais.
Isso é bamburrar: dar no veio de ouro, achar a pepita, dar com muito ouro.
Igualmente mesmo: todas as vezes que pegar o dinheiro, ele vai pr´a currutela
torrar tudo. Rapariga e cachaça, esquenta o cabaré comemorando. Isso também é
bamburrar. Bamburrar não é só achar muito ouro e ficar rico: bamburrar é achar
muito ouro, ficar muito rico, e torrar tudo em rapariga e cachaça. Torra tudo,
até o último real. Freta caminhonete, fecha hotel. De comer, quase que nem se
alembra não. Garimpeiro é bicho engraçado: amarga malária, soterra no barranco,
à cata do ouro, e de noite, na rede, conversa com os companheiro falando assim:
´quando eu bamburro eu me faço! Saio daqui e enrico a família´. Bamburra, e
torra. Dias depois tá curtindo ressaca no barranco de novo. Sonho de garimpeiro
é bamburrar, mas bamburro é gastar. É o que dizem: o que é do garimpo fica pro
garimpo, nem ninguém num leva para casa não senhor. Bamburro é isso: ganhar,
torrar, perder. Acho que tá mais para gastar mesmo”.
Falou
isso, jogou fora a guimba do cigarro importado cuja cinza retirava
meticulosamente com a unha do mindinho (que mantinha sempre comprida) e olhou
para o céu, em silêncio. De repente, levantou-se, deu boa noite e trancou a
porta da baiuca, a última aberta nos arredores desertos. Lembro-me bem dessa
fria noite em que a Vila de Serra do Navio era tomada de assalto por uma densa
neblina, grudenta, misturada à poeira fina e persistente levantada pelos
caminhões que prestavam serviço para a mineradora. Com frio, logo me recolhi ao
hotel deserto, aberto única e exclusivamente para mim (depois de uma série de
telefonemas, idas e vindas) porque decidi que não compensava dirigir 100Km até
Pedra Branca só para dormir e de manhã cedo retornar à Serra para a bateria de
reuniões com a prefeitura e os moradores locais.
Agenor,
velho curtido cujas rugas assemelhavam-se aos meandros dos rios que perscrutou
ao longo da vida, trabalhara no garimpo por muitos anos. Velho, com artrose e
sozinho, agora vendia itens de primeira necessidade na pracinha da rodoviária,
na pequena Vila de Serra do Navio, construída não pela, mas para a mineradora
que por décadas explorou minério ali.
Isso foi
em 2014. Dessa prosa memorável, iniciada por um simples pedido de isqueiro de
minha parte, lembro-me desse trecho que anotei no caderno assim que cheguei ao
deserto e falido hotel. Pouco tempo depois, bem, pouco tempo depois... o
governo federal delira com bamburros.
Quando o lobo ataca as reservas
Durante
a década de 1980, o governo federal criou, por decreto (Decreto 89.404, de 1984)
a Reserva Nacional de Cobre e Associados – Renca. A ideia do então governo
militar era estabelecer uma reserva de recursos minerais e, portanto, autorizar
sua exploração exclusiva por parte do Estado apenas em casos extremos como
guerras ou calamidade econômica. Estávamos na época do “integrar para não
entregar” a Amazônia, e todas as questões relativas à região eram associadas à
“soberania nacional”.
No dia
23 de agosto desse ano, contudo, o presidente Michel Temer (PMDB), chefe do
poder executivo federal, lançou o Decreto 9.142, extinguindo a Renca e
liberando, portanto, a mineração nessa região situada entre os estados do Amapá
e do Pará, que conta com uma área de ... hectares, do tamanho da Dinamarca e
abrange diversas áreas protegidas como a Terra Indígena Wajãpi e o Parque
Nacional Montanhas do Tumucumaque – áreas protegidas onde a atividade minerária
é proibida.
Equações
O debate
sobre a Renca foi colocado pela imprensa brasileira – que é financiada por
capitalistas interessados na atividade de mineração, diga-se de passagem – nos
moldes de um Fla Flu (defensores do meio ambiente versus defensores do
desenvolvimento) e a discussão é em grande parte esvaziada de conteúdo e
profundidade. Afora isso, há também algumas equações que estão na raiz desse
debate, e de maneira oculta e inconsciente. A principal delas pode ser assim
resumida:
mineração
= desenvolvimento, logo:
áreas
protegidas ≠ mineração; logo:
áreas
protegidas = atraso (crise econômica, recessão, inflação)
Uma
rápida reflexão informada por alguns dados pode ajudar a compreender melhor o
perigo dessas equações equivocadas, que acabam ficando num plano inconsciente
dos debates, ao serem aceitas sem reflexão como os únicos termos em torno dos
quais ele deve ocorrer.
Resolvendo as equações
Durante
a década de 1950 instalou-se no então território federal do Amapá uma
mineradora estadunidense chamada Icomi. Contando com imenso apoio financeiro do
governo federal, essa mineradora estadunidense recebeu o que hoje seriam
bilhões de reais em subsídios (contabilizando-se o investimento indireto para
sua implementação) do governo para instalar-se em Serra do Navio, município do
Amapá, e explorar e exportar o minério de ferro e manganês pelo porto de
Santana, também no Amapá.
Ao
receber imensas quantias de recurso do governo, a mineradora estadunidense
recebeu, na verdade, dinheiro público: ou seja, dinheiro dos cidadãos brasileiros.
Instalada em Serra do Navio, a Icomi criou uma pequena company town, uma cidade
com alguma infra-estrutura, destinada a acolher o seu staff, seus funcionários
de primeiro a terceiro escalão. A peãozada, ou seja, a mão de obra local, esta
continuou morando como sempre morou.
Em quase
50 anos, a Icomi extraiu de subsolo brasileiro bilhões de toneladas de minério
de ferro e de manganês, que foram levados por trem até Santana e de lá
embarcados em navios para Europa, China, Emirados Árabes, etc. Para facilitar a
atividade de mineração do subsolo brasileiro com recursos do povo brasileiro
por uma mineradora estadunidense, o governo do Brasil decretou Santana como
área de livre comércio, o que significa que todo o minério brasileiro escoado
pela mineradora estadunidense, apoiada com recursos brasileiros, para o
exterior não deixou sequer um centavo em impostos na região.
Décadas
depois, a Icomi retirou-se do Amapá, alegando dificuldades operacionais – seria
por falta de subsídios do governo brasileiro? – e toda a estrutura da mina,
equipamentos e a estrada de ferro foram vendidos, literalmente por R$1,00. Sim,
senhoras e senhores: um real. A estrutura financiada em grande parte com
recurso público foi entregue de graça depois de ter gerado tanto lucro aos investidores
e compradores do minério.
O
minério de ferro e o manganês passaram a ser explorados também por Pedra Branca
do Amapari, e a pequenina vila de Serra do Navio passou ao completo
esquecimento: um pedaço da história incrustado na Amazônia, e hoje patrimônio
tombado pelo Iphan.
Bem,
voltemos à equação que está na raiz oculta do Fla Flu (ambientalistas versus
desenvolvimento): mineração = desenvolvimento. Vamos adicionar outras variáveis
à essa equação? Uma delas é o IDH.
O IDH é
o Índice de Desenvolvimento Humano medido pelo PNUD da ONU, que vai de 0 a 1 e
segundo o qual quanto mais perto de 1 maior é o desenvolvimento humano, e
quanto mais perto de zero, menor ele é.
Segundo
dados de 2010, o IDH de Serra do Navio era de 0,709. Serra ocupava, nesse ano,
o 1638º lugar no ranking dos municípios brasileiros em termos de
desenvolvimento. Em Pedra Branca do Amapari, para o mesmo ano, o IDH era de
0,626, e Pedra era o 3.561º município mais desenvolvido do Brasil, ao passo que
em Santana o IDH era de 0,692, ocupando a 2.134ª posição no ranking das cidades
mais desenvolvidas do país.
Durante
a primeira década dos anos 2000 o Brasil passou a ocupar a posição de 9ª maior
economia do mundo. Entramos para o top 10 dos países mais ricos do mundo. Mas,
infelizmente, o Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil é de 0,754 para 2017.
E eu tenho uma péssima notícia para você, leitor: o Brasil caiu, em 2017, de
73º lugar na lista de IDH do PNUD para 79º. Nosso IDH é muito baixo: significa
que temos péssimos hospitais, péssimas escolas, péssimos ônibus, péssimas
condições de vida. Significa que não somos um país desenvolvido.
Temos
então condições de perguntar: qual é o X da questão? Será que não estamos
debatendo a questão da Renca em termos equivocados ou rasos demais? O Brasil
não deveria ocupar a 9ª posição em desenvolvimento humano, já que ocupa a 9ª
posição em maior PIB? Será que depois de 50 anos de mineração em Serra do
Navio, esse município e Santana, que têm densidade populacional tão baixa, não
deveriam estar pelo menos entre os 100 primeiros mais desenvolvidos? O que está
acontecendo?
Em vez
disso, em Santana e Macapá, por exemplo, apenas 0,01% do esgoto é coletado –
não digo tratado, digo coletado. 0% do esgoto é tratado, e menos de 1% dele é
coletado. Não seria a mineração uma atividade extremamente lucrativa e que
traria o milagroso desenvolvimento para o Amapá e para esses municípios? Não é
essa a equação que está por trás do debate sobre a extinção da Renca e que é
enunciada por exemplo pelo ex deputado Amapaense Antônio da Justa Feijão em
entrevista concedida a um jornal amapaense, na qual declarou que a mineração
traz desenvolvimento e que as áreas protegidas impedem o desenvolvimento?
Olhando
para a equação (mineração = desenvolvimento) vemos que ocupar a 3.561ª posição
(num ranking de 5000 municípios) entre os municípios brasileiros, como é o caso
de Pedra Branca do Amapari, anula totalmente a validade desse pressuposto.
O xis da questão
Bom,
vimos que o PIB brasileiro cresceu em uma média de 3% ao ano nos primeiros 15
anos dos anos 2000. Recapitulando, entramos para o clube dos 10 países mais
ricos do mundo mas continuamos em 79º lugar em termos de desenvolvimento
humano. Escolas ruins, estradas ruins, esgoto a céu aberto, epidemias de
malária, zika, dengue, febre amarela (doenças medievais), sem hospitais e
médicos: somos um país subdesenvolvido e extremamente pobre. Em Pedra Branca do
Amapari, no auge da mineração, ainda não havia aterro sanitário, e jamais houve
um Centro de Tratamento Intensivo no hospital municipal, que não passa de um
postinho de saúde.
Qual é,
portanto, o xis dessa questão? O xis da questão pode ser encontrado quando
colocamos em cena outra variável, chamada Índice de Gini. O Índice de Gini vai
de 0 a 1 e mede o grau de distribuição ou de concentração de renda de um país.
Quanto mais perto de 0, menos concentrada é a renda dos habitantes de um país e
quanto mais perto de 1, mais concentrada é essa renda. O Índice de Gini da
Dinamarca (que é do tamanho da Renca) é, em 2016, 0,247. Já o Índice de Gini
para o Brasil para o mesmo ano é de 0,490.
Isso
significa que a Dinamarca, além de um país rico é um país desenvolvido porque a
renda é distribuída e o IDH é alto. Já o Brasil é um país rico, mas muito
pobre: péssimas escolas, péssimos hospitais, mas, com o PIB que possui, e
ocupando a 9ª posição nos países mais ricos do mundo, um país de gente muito,
muito rica.
Nosso
índice de Gini em 2017 é de 0,490. Um dado alarmante, e que constitui a questão
de fundo sobre a extinção da Renca é o seguinte: 10% mais ricos do país
concentram 75,4% da riqueza. É o que aponta o Ipea (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada) em um detalhado levantamento sobre
as desigualdades no Brasil.
Meio ambiente é patrimônio público
Segundo
dispõe o Artigo 185 da Constituição Federal de 1988, o meio ambiente é
patrimônio de todos os brasileiros, sendo dever do Estado e da sociedade zelar
por ele. Mas, curiosamente, enquanto países ricos e países desenvolvidos
protegem seus recursos socioambientais, o Brasil, por meio dos agentes
políticos eleitos pelo povo, abre suas fronteiras para a exploração
indiscriminada.
Dois
bons exemplos que ilustram bem a gravidade dessa situação podem ajudar a
encerrar essa reflexão. Um deles é o PL 3.729/2004, Projeto de Lei que visa
flexibilizar todo o processo de licenciamento ambiental. Grosso modo, se ele
for aprovado, o licenciamento ambiental sobre a atividade de mineração será
infinitamente menos rígido, e acidentes como o de Mariana serão cotidianos na
vida dos brasileiros.
Outro
exemplo advém do fato de que de Michel Temer em pessoa divulgou, em Toronto, a
extinção da Renca a mineradoras canadenses cinco meses antes de todos nós,
cidadãos brasileiros, sabermos do decreto por meio do qual visou extingui-la.
A
liberação da mineração no Amapá e no Pará por mineradoras canadenses sem
controle algum (por conta da flexibilização no financiamento) caminha de mãos
dadas com mais um outro perigoso fator: a crise de instituições que vivemos no
Brasil, e que encontra na Operação Lava Jato apenas um pequeno exemplo de sua
vasta magnitude.
O que a
Lava Jato nos ensina? Ela nos mostra que no sistema pluripartidário brasileiro,
onde o eleitor não vota por ideologia, mas por carisma, pequenos partidos sem
proposta ideológica alguma obrigam a grandes coligações (como foi o caso da
coligação de Dilma com Temer para eleger-se). Nesse fértil cenário
desenvolve-se mais uma ameaça: o financiamento de campanha.
Mineração e corrupção
Todos os
cidadãos brasileiros estão cansados diante das inúmeras mostras de corrupção
que têm vindo à tona ultimamente. Mas, assim como em tantos outros casos, somos
levados pela imprensa a enxergar apenas uma pequena faceta do problema. É comum
ouvirmos as pessoas lamentarem que “políticos são todos corruptos”. Por trás
dessa sentença há uma ideia: a ideia de que os agentes políticos roubam para
si, em benefício próprio, o patrimônio público.
Isso é
verdade, mas como eu venho declarando e demonstrando há anos, infelizmente, “o
buraco é muito mais embaixo”. Muito resumidamente, o que acontece é que, para
eleger-se, os candidatos e partidos precisam de muito dinheiro para comprar os
jornais a fim de que só digam coisas que os elejam, e fazer suas campanhas.
Esse dinheiro vem majoritariamente de empreiteiras, bancos, e de empresas como grandes
mineradoras.
Por que
uma empreiteira como a Odebrecht, que está no olho do furacão da Lava Jato,
doaria dinheiro a um (a todos, na verdade) candidato? O que ela visa com isso?
Ao financiar uma campanha política, uma mineradora faz um acordo com o candidato,
que contrai uma divida com ela. Assim que é eleito e sobe ao poder, esse
candidato vai trabalhar para facilitar os negócios da mineradora. Um bom
exemplo disso são o PL 3.729/2004 e o Decreto 9.142/2017 que extinguiu a Renca.
Ao tomar
tais medidas os agentes políticos não desviam dinheiro público para si. Eles
recebem lautas propinas para mudar a legislação do país em seu nome, cidadão
brasileiro, com o seu aval e, portanto, de maneira democrática e pretensamente
legítima, a fim de beneficiar empreiteiras, bancos, e mineradoras que, esses
sim, lucram muito ao dilapidar o seu patrimônio.
O caso
da Renca é muito ilustrativo desse processo, e, se voltarmos à equação
“mineração = desenvolvimento” e compararmos os dados do IDH e do Índice de Gini
no Brasil, e os correlacionarmos à tudo o que aqui foi exposto, chegamos ao
resultado final da equação: mineração = enriquecimento das mineradoras
internacionais sem que o cidadão brasileiro fique com sequer um centavo.
Entendeu
agora porque alguns agentes políticos e empresariais defendem com tanta
veemência a extinção da Renca? Eles querem entrar para o clube dos 10% mais
ricos do país que está entre os 10% mais ricos do mundo, com o seu apoio, e
pior: explorando indiscriminadamente o seu patrimônio, enquanto países ricos e
desenvolvidos estão cada vez mais abandonando a mineração e outras atividades
do gênero em seus territórios, pois sabem dos impactos fatais desse tipo de
atividade e estão cada vez mais conscientes de que a água e biodiversidade são
o ouro do 3º milênio.
Extinguindo
a Renca. bamburrar, as classes mais altas até vão. Vão lucrar com as migalhas
dos lucros que tal extinção gerarão para o capital internacional. Os 10% mais
ricos do país empanturrar-se-ão, e, como sói fazer desde a Colônia, enriquecerão
mediante exploração de trabalho escravo e de recursos naturais, como um efeito
colateral do lucro, sempre muito maior, que gerarão, uma vez mais, para
Inglaterra, por exemplo.
O que
farão com o dinheiro? Enviarão para Miami (antes, Coimbra), onde seus filhos
engordarão a contemplar milionários Romeros Britos multicoloridos. E o
brasileiro, ah, esse, continuará a sonhar com o bamburro, com o progresso e o
desenvolvimento, cada vez mais atolado em zika, dengue, malária, leishmaniose,
pulando poças d´água em cidades sem esgoto tratado e com lixo a céu aberto.
Bamburrando com salários mínimos ao trabalhar para terceirizadas, gastará o que
puder nas baiucas, feliz da vida, enquanto o que é do garimpo, fica com o
garimpo (ou seja, com seus donos).
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