De
como sem respeitar os índios, o Brasil não respeita a si mesmo
Bruno
Walter Caporrino
Crédito
da fotografia: Bruno Walter Caporrino
(Zeiss
Ikon Contaflex, película Ilford Delta 100)
Diferença e cidadania
No
Brasil há diversos povos e comunidades tradicionais. Povos indígenas,
quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, ciganos e outras comunidades que
possuem regimes de pensamento e de organização política muito diversos. Esses
grupos são muito diferentes: não é possível dizer que os povos indígenas, por
exemplo, sejam “diferentes dos outros brasileiros mas todos iguais entre si” e
nem que “só são diferentes porque suas casas, vestimentas, línguas e cultura
material são diferentes dos demais brasileiros”. Atualmente há cerca de
252 grupos indígenas no Brasil, falantes
de praticamente 250 línguas. Esses grupos não são apenas diferentes dos
não-índios por falarem línguas e usarem vestimentas diferentes, como dito:
detentores de sistemas de pensamento e
visões de mundo particulares, são muito diferentes, também, em seus modos
de se organizar politicamente, e é neste ponto que precisamos nos ater a fim de
compreender como esta diferença é fundamental para a igualdade e, portanto, para toda a
sociedade, e não somente para os diferentes.
Durante
muito tempo, o Estado tratou esses povos e comunidades como tipos de pessoas
que deveriam ser “civilizados”, ou seja, como grupos que deveriam ter seus
costumes e sistemas sociais modificados para ficarem “iguais à maioria dos
não-índios”. Mais do que isso: desde o início do processo de colonização, estes
povos foram tratados como grupos de pessoas sem alma, sem Razão, inumanos, a
quem se poderia escravizar. É bastante conhecido o debate travado entre os
jesuítas a respeito de sua humanidade: seriam eles humanos? Entendidos ora como
animais, ora como sobreviventes de um estado natural semelhante ao Éden, sempre
foram associados à natureza, entendida como oposta à cultura e, portanto, à
humanidade.
Essa polaridade
natureza/cultura é acionada até hoje, infelizmente, quando as pessoas pensam
sobre estes povos: para o bem ou para o mal são sempre associados ao “estado de
natureza” que a mitologia ocidental coloca como anterior ao surgimento da “civilização”
e mesmo do Estado, como vemos nos debates entre contratualistas como Thomas
Hobbes e Jean-Jacques Rousseau.
O fato
é que essa absoluta incompreensão a respeito destes povos perdurou por toda a
história do Brasil e, infelizmente, nos dias atuais se fortifica: índios seriam
associados ao polo natureza da cisão natureza versus cultura e até bem pouco tempo eram considerados inimputáveis
pela legislação brasileira: associados à crianças e, portanto, tomados como
incapazes de decidir seu futuro e sua condição por si mesmos, foram tomados
pelo Estado como inimputáveis assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente
considera as crianças: incapazes, não podem decidir por si mesmos sem a
intervenção dos não índios. Tutelados pela legislação até 1988, os povos
indígenas foram libertos desse paradigma somente neste ano, quando, em 05 de
outubro, foi promulgada a atual Constituição Federal (Souza Filho, 2009).
Todavia,
ainda há muitos resquícios desse paradigma nas relações propostas pelos não índios:
a Lei 6.001/1973, que os toma como tuteláveis ainda os considera incapazes de
participar não apenas da vida política da nação mas, também, de suas próprias vidas.
O Estatuto do Índio, como é conhecida esta lei, entrou em completa discrepância
com a Constituição Federal mas, infelizmente, muito pouco avançamos no sentido
de fazer uma nova legislação específica que constitua marco legal para a lide
do Estado e, portanto, de todos os brasileiros, com eles. Para que se tenha uma
ideia, um dos projetos de lei que visava rever o Estatuto do Índio e adequá-lo
ao novo ordenamento jurídico brasileiro foi dolosamente minado e barrado ao
mesmo tempo que desta discussão saiu-se com um tenebroso projeto de lei, o PL
1.610/1996, que visa regulamentar a exploração de minérios em terras indígenas.
Como veremos,
os povos indígenas não são mais considerados ininputáveis, incapazes e,
portanto, tuteláveis pelo ordenamento jurídico brasileiro que é muito avançado
no que se refere à promoção de direitos de primeira geração aos povos indígenas
mas, por outro lado, as modalidades de relacionamento dos não índios com esses
povos ainda se baseiam nesse mesmo arcabouço simbólico: “índios e
ancestralidade”, “índios e natureza” são os mais leves dos equívocos que
contumazmente se comete quando se pensa em povos indígenas ao passo em que “índios
= natureza e, portanto, sem cultura” ou “índios = natureza e, portanto,
análogos a animais, bichos, primitivos” ainda perduram. Para que não se duvide
da força desses axiomas, basta que se estabeleça conversações com os cidadãos
para que se o perceba.
Mas, do
ponto de vista legal, ao longo da história essa visão foi mudando e os povos e
comunidades tradicionais passaram a ser reconhecidos pelo Estado como cidadãos
brasileiros – mudando, também, a própria visão de cidadão e cidadania que o
Estado adota.
Assim,
acompanhando um movimento que ocorreu em vários países da América Latina
durante a década de 1980, o Brasil promulgou, em 1988, a Constituição Federal
atualmente vigente. Ela é considerada a “Constituição cidadã” por assegurar à
população brasileira o direito à participação
ativa na vida política do país, de maneira democrática, e, por isso, com
respeito à diversidade sociocultural tão vasta de que é composta a sociedade
brasileira. Cidadania, ou seja, a
participação engajada e qualificada, representativa e pró-ativa dos cidadãos
nas tomadas de decisão do Estado, como veremos, é o pilar fundamental do Estado
democrático de direito programado pela Constituição.
Nessa
Constituição são assegurados direitos essenciais a todos os cidadãos
brasileiros de uma maneira inédita na história do país. Ela garante, em seus
primeiros cinco artigos, direitos e garantias fundamentais muito próximos aos
direitos humanos respaldados por convenções internacionais até então sistematicamente
desrespeitados pelo Estado brasileiro. Um desses direitos, o direito à autodeterminação dos povos,
aparece em seu Artigo 4˚, Inciso III. O direito à autodeterminação – nesse artigo
ainda atrelado às relações internacionais do Brasil – consiste, em linhas
gerais, no direito que todos os povos têm de usufruir de seus próprios
costumes, línguas, crenças, tradições, e sistemas políticos, ou seja, de seus
próprios jeitos de se organizar e tomar decisões.
É
importante lembrar que esse direito vai ainda mais além, pois a
autodeterminação consiste no direito que um grupo, comunidade, ou povo tem ao autogoverno: o direito de dizer por si
mesmo como se organizam politicamente, segundo seus próprios regimes de
relações, para a tomada de decisões soberanas sem que outros povos ou grupos
interfiram nesse processo de decisão. O direito à autodeterminação associa-se,
no seio de um Estado democrático de direito, ao direito de autogoverno: José
Murilo de Carvalho (Murilo de Carvalho, 2002) define-o como aquele direito
assegurado pela cidadania, pela participação, e que está para muito além da
mera participação pontual e passiva nos pleitos eleitorais como eleitores.
Basicamente, um sistema democrático, quando olhamos para um país, é um sistema
de autogoverno: um sistema onde um povo se governa a si mesmo de acordo com
seus próprios regimes de relações e vontades, sem interferência externa.
Esses
direitos basilares, que são o pilar do Estado democrático de direito e pedra
fundamental da Constituição de 1988 encontram eco em praticamente todos os
outros artigos da Constituição, como, por exemplo, o Artigo 231, que assegura
direitos específicos aos povos indígenas, e onde lemos: “São reconhecidos aos
índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à
União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Com a
promulgação dessa Constituição, foi a primeira vez na história do Brasil que o
Estado reconheceu legal e, portanto, oficialmente aos povos indígenas no Brasil
o direito a serem como são, viverem da maneira como vivem, segundo seus
próprios sistemas de conhecimentos e relações. Mais do que isso, a Constituição
ainda assegura o direito à terra por eles tradicionalmente ocupada. Essa
conquista do movimento das populações tradicionais é um grande presente para a
nação brasileira, e não somente para esses grupos, como se poderia pensar.
Pois não
é correto pensar que a Constituição e, portanto, nosso ordenamento jurídico,
estendem aos povos indígenas “direitos especiais” ou “privilégios”. Ao abordar
esse assunto espero mostrar como o respeito à diversidade, à pluralidade, à diferença é um princípio fundamental de
qualquer democracia, e de como esse princípio – que se estende à todos os
grupos de cidadãos brasileiros, tão variados e diferentes – beneficia ao país
inteiro: de sua variegada e diversificada população à suas próprias instituições
políticas e estatais.
Autodeterminação, autogoverno e,
portanto, participação cidadã
Como a
Constituição de 1988 resguarda os direitos civis, políticos e sociais dos
brasileiros e dos povos (povos, em geral, e não somente indígenas) à sua
autodeterminação, e, em seu Artigo 231 assegura aos povos indígenas,
especificamente, o direito ao exercício pleno de seus regimes de conhecimentos,
línguas, costumes, crenças e, portanto, organização social, o Brasil ratificou,
em 2004 (Decreto Presidencial 5.061/2004), a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho – OIT. Membro da Organização, o Estado brasileiro
demorou, contudo, mais de 13 anos para assiná-la, pois foi lançada pela OIT em
1989 na esteira do processo de mudança na visão dos Estados Nação com relação
aos povos e comunidades tradicionais (Verdum, 2009).
O
Brasil assinou a Convenção porque segundo o que dispõe a Constituição nos
princípios e objetivos fundamentais da nação brasileira (estabelecidos em seus
cinco primeiros artigos ou seja, em suas cláusulas
pétreas, aquelas que não se pode mudar de maneira alguma), o direito à
autodeterminação é uma das condições essenciais para a realização do projeto de
país nela inscrito, projeto esse calcado no respeito à diversidade e na
democracia – princípios inseparáveis, diga-se de passagem. Essas garantias,
associadas a todos os outros direitos salvaguardados pela Constituição,
especificamente aqueles que constam no referido Artigo 231, permitiram a
ratificação da Convenção, que assegura (logo em seu Artigo 1º) aos povos e
comunidades tradicionais, o direito à autoidentificação enquanto povos
indígenas e tribais.
Em linhas gerais, a Convenção
169 e a Constituição Federal asseguram aos povos indígenas e tribais o direito
à sua existência da maneira como são, livremente e, mais do que isso, o direito
a serem cidadãos livres e plenos sem que, para que usufruam de seus direitos de
cidadãos-membro de uma comunidade nacional, tenham que abandonar seus regimes
de conhecimentos e políticos. Por isso, a Convenção garante que o Estado não pode
decidir quem é e quem não é indígena ou tradicional, o que reforça o princípio
constitucional da autodeterminação.
Esse princípio é, mais tarde, respaldado pela Declaração da Organização das
Nações Unidas (ONU) Sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, também
endossada pelo Brasil. A Declaração constrói uma ponte entre o que propõem a
Constituição Federal de 1988 e a Convenção 169 da OIT, ao assegurar, em seus
Artigos 3º e 4º:
Artigo 3º
Os povos indígenas têm direito
à livre determinação. Em virtude desse direito, determinam livremente a sua
condição política e perseguem livremente seu desenvolvimento econômico, social
e cultural.
Artigo 4º
Os povos indígenas no exercício
do seu direito a livre determinação, têm direito à autonomia ou ao auto-governo
nas questões relacionadas com seus assuntos internos e locais, assim como os
meios para financiar suas funções autônomas.
Ao
ratificar a Convenção 169 da OIT, o Estado brasileiro assegura que, para que
possam exercer seus direitos políticos, participando plenamente da vida
política democrática e, portanto, exerçam sua cidadania, os povos em questão
não poderão ser obrigados a mudar seus jeitos de se organizar e tomar decisões.
Mais do que isso, a Convenção 169 garante que os Estados que a assinarem serão
obrigados a consultar esses povos de maneira prévia, livre, e informada, antes
de realizar qualquer projeto ou medida legislativa que possa afetá-los. O
objetivo do direito à consulta prévia, livre, e informada, é garantir duas
coisas:
a) que
os sistemas políticos dos povos indígenas e tribais sejam respeitados pelo
Estado, de modo que eles não sejam obrigados a mudar sua organização social e
política, ou seja, seus jeitos de tomar decisões políticas, para que possam
participar da vida política democrática do país. Na prática, isso significa que
o Estado não pode, por exemplo, escolher quem é o “cacique” de um povo ou
escolher dialogar e negociar com um chefe ou liderança que ele escolher:
significa que, se um grupo indígena não tem chefes ou caciques, que suas decisões
são tomadas de outra maneira, consultando os espíritos por exemplo, o Estado
tem que respeitar e, mais do que isso, obedecer a essa determinação do próprio grupo;
b) que,
ao fazer isso, os Estados que assinam a Convenção garantam não apenas direitos
aos povos em questão, mas se comprometam a realizar na prática, e de maneira
integral, os princípios da democracia participativa, ao estender a todos os
cidadãos do país o direito à participação política no sistema democrático de
tomada de decisões sem que, para isso, tenham de mudar suas estruturas sociais
– o que seria por si só
anti-democrático, uma vez que uma democracia deve se calcar no respeito às
pessoas e grupos da maneira como são, em sua plenitude e diversidade. Em outras
palavras: garantir que a diferença
seja respeitada ao assegurar que as populações social e politicamente
diferentes tenham pleno direito a ser como são sem que precisem abdicar dessa
diferença para participar da tomada de decisões, ou seja, exercer sua
cidadania.
Um programa de País
Como
vimos, o grande objetivo da Constituição de 1988 é garantir que o Brasil seja
um país democrático. Para que um país seja democrático, é fundamental que seu
povo participe ativamente das
decisões tomadas pelo Estado. Por conta
disso, lemos logo no primeiro artigo
do diploma constitucional, parágrafo único, que “todo poder emana do povo, que
o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos”.
Uma
digressão se faz, aqui, pertinente para que se compreenda o peso desses
direitos. A Constituição Federal de 1988 organiza-se com base no modelo da
pirâmide de Kelsen: em linhas gerais, os 5 primeiros artigos, que são as
cláusulas pétreas, ou seja, de pedra, são a base de todos os demais. Como em
uma pirâmide, eles estão na base e, ao mesmo tempo, podemos enxergá-los como o vértice
de um triângulo pois todos os demais artigos da Constituição respeitam e
refletem o que está garantido e proposto nestes cinco primeiros artigos. Assim,
todos os artigos da Constituição são um detalhamento de como fazer com que os princípios
e objetivos fundamentais do Brasil (inscritos nestes 5 primeiros artigos) devem
ser realizados, efetivados e, da mesma maneira, toda a legislação que está
abaixo da Constituição, e cuja função e detalhar como realizar na prática cada
artigo dela, devem respeitar a estes artigos.
É importante
salientar que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT, ao
ser ratificada pelo Brasil, passa a ser incorporada ao ordenamento jurídico
brasileiro e, ainda mais, de uma maneira muito especial: ela encontra-se
praticamente ao lado da Constituição Federal, tendo peso de Constituição e
situa-se, portanto, acima das leis ordinárias do país que, como mencionado,
devem submeter-se à Constituição. A Convenção 169 da OIT é, portanto, lei
brasileira análoga, em peso e valor, à constituição e tem status supra-legal:
estando acima de todas as leis ordinárias, estas devem obedecê-la e,
hierarquicamente superior, deve-se fazer com que elementos destas leis
ordinárias que estejam em desacordo com a OIT 169 sejam reformados a fim de
coadunar-se à ela.
Igualdade e diferença: isonomia
como chave para uma sociedade plural e igualitária
Para
que uma democracia funcione em sua plenitude é fundamental que esta participação
popular nas tomadas de decisão seja qualificada e plural. A pluralidade é condição sine qua non para uma democracia pois,
se apenas um segmento da sociedade se fizer ouvir, aos demais segmentos não
serão ofertados direitos de maneira plena: entra em cena o princípio da isonomia.
Portanto,
para que isso ocorra, é fundamental que todos os cidadãos sejam considerados
iguais perante a lei e, ao mesmo tempo, que as leis respeitem a diversidade
sociocultural dos indivíduos e comunidades de cidadãos. Mas, muito
provavelmente está o leitor a perguntar-se: como promover a igualdade entre
cidadãos tão diferentes? É central o princípio da isonomia.
A
Constituição Federal já assegura em seus primeiros artigos as bases
irrefutáveis para isso. No caput do
Artigo 5º, lemos que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza”, princípio assegurado por 68 incisos deste artigo, dos quais
depreende-se sobretudo que, para que a participação cidadã seja plena é
necessário assegurar o pluralismo inerente à sociedade e que, para que esses
diferentes tenham acesso aos mesmos direitos, o princípio da isonomia deve
prevalecer (Barroso, 1990;2000). Basicamente, a ideia de isonomia consiste em
ofertar condições diferentes para que os diferentes possam ser iguais em
direitos: diferentes em condições (culturais, linguísticas, econômicas,
territoriais) têm direito a condições diferenciadas a fim de igualar-se aos
demais em direitos.
É
fundamental esclarecer que o princípio da isonomia não consiste em direito de
segunda geração, direitos secundários, mas sim em pedra de toque basilar do
programa de país inscrito nos 5 artigos mais importantes da lei mais importante
do país. Não se trata também de ofertar de maneira discriminatória condições
especiais a guisa de “esmola”, pois estamos falando sobre direitos e garantias
fundamentais. Um bom exemplo de como opera o princípio da isonomia é o das leis
que obrigam que os estabelecimentos ofertem serviços diferenciados a idosos,
gestantes, portadores de necessidades especiais que, assim, têm direito a
passar na frente dos demais usuários na fila de espera. Isso se deve ao fato de
que essas pessoas têm condições diferenciadas, necessidades especiais: idosos,
que muito contribuíram com a sociedade brasileira, têm mais dificuldades em
suportar as filas em pé; pessoas com deficiência visual, que também muito
contribuem com nossa sociedade, têm mais dificuldades em permanecer sozinhos na
fila, assim como gestantes e, por isso, é fundamental que eles passem na frente
dos demais cidadãos: oferecer aos
diferentes condições diferenciadas para que acessem direitos de maneira igual
aos demais cidadãos, eis a melhor definição de isonomia.
É
importante pontuar também que, quando se fala em direitos, devemos
obrigatoriamente sair da lógica dos privilégios que permeia, infelizmente, cada
desvão das relações brasileiras devido ao nosso passado, como apontam Jessé
Souza (2003) e Murilo de Carvalho (2018). Não se trata de ofertar aos idosos,
gestantes e portadores de necessidades especiais privilégios, mas sim de igualá-los perante os direitos sem ferir
suas diferenças, estender a eles condições diferenciadas para que, com isso, se
oferte a eles acesso igual aos demais em direitos. Trata-se de evitar,
justamente, os privilégios, pois cidadãos sem necessidades especiais têm o
privilégio de sofrer menos nas filas, para atermo-nos ao exemplo.
Consulta prévia, livre,
informada, e de boa-fé: condição sine qua
non para a democracia
Retomando,
então, vemos que o direito à autodeterminação consiste, em linhas gerais, no
direito que todos os povos têm de usufruir de seus próprios costumes, línguas,
crenças, tradições, e sistemas políticos, ou seja, de seus próprios jeitos de
se organizar e tomar decisões e isso implica no reordenamento das modalidades
de atuação do Estado, que não se encontra especificamente disciplinada pela
legislação justamente porque competirá aos povos interessados pautar isso
(Lasmar, 2016), lançando mão, de maneira organizada e coletiva
(preferencialmente) da isonomia e do autogoverno.
Como
vimos, o direito ao autogoverno e o princípio da isonomia refletem-se em todos
os outros artigos da Constituição, que espelha-se na concepção da pirâmide de
Kelsen (Kelsen, 1987) e é possível afirmar que o princípio da isonomia emana de
cada um destes pontos principais da principal lei do país.
Não é
correto pensar que a Constituição e, portanto, todo o ordenamento jurídico
infra-constitucional, estendem aos povos indígenas “direitos especiais” ou
“privilégios”. Ao abordar esse assunto espero mostrar como o respeito à
diversidade e o correlato princípio da isonomia (Pontes de Miranda, 1979) são
princípios fundamentais de qualquer democracia, e de como esses princípios –
que se estendem à todos os grupos de cidadãos brasileiros, tão variados e
diferentes – beneficiam toda a sociedade: de sua variegada e diversificada
população à suas próprias instituições políticas e estatais (Bonavides, 1996;
1999). Abaixo, elaboro um esquema para a melhor compreensão da hierarquia
destes princípios, objetivos e direitos:
Resumidamente,
então, se por isonomia devemos entender que se todos são iguais perante a lei,
todos devem ter acesso aos mesmos direitos, e a democracia exige o respeito à
diversidade e à pluralidade, então tais diversidade e pluralidade devem ser
protegidas e promovidas. Contudo, como ofertar direitos iguais à segmentos
diferentes da população sem agredir essas diferenças? Como oferecer acesso
igual às políticas públicas sem que isso force os segmentos cultural e
politicamente diferenciados da sociedade sejam forçados a abandonar os traços
distintivos de sua diferença? Em outras palavras, como ofertar aos povos
indígenas o direito à educação escolar sem, com isso, obriga-los a abandonar
seus regimes de conhecimentos e de relações?
A
isonomia, como vimos, visa assegurar que aos diferentes sejam ofertadas
condições diferenciadas a fim de que posam, a partir de sua diferença e à seu
próprio modo portanto, acessar os mesmos direitos que os demais segmentos da
sociedade ao assegurar que condições diferenciadas sejam criadas para que
segmentos diferenciados fortaleçam sua diferença e, por essa via, a da
diferença, sejam iguais em direitos. Longe
de anular a diferença, é fundamental valorizá-la e, para valorizá-la, é
fundamental igualar os segmentos da sociedade em direitos, mas não limar suas
propriedades sociológicas, o que equivaleria a aniquilá-los.
A essa
pergunta, tão antiga (como assegurar aos diferentes direitos iguais sem que,
para acessá-los, tenham que abrir mão de sua diferença?) a Constituição, a Convenção
169 e a Declaração da ONU oferecem uma mesma resposta: respeitando justamente
seu direito a serem diferentes e incluindo-os nos processos decisórios sem
afetar o que os faz diferentes, ou seja, suas maneiras de se organizar
socialmente. É participação cidadã
diferenciada a camada protetiva básica não apenas dos diferentes e da
diferenças mas, por isso mesmo, de todo o Estado democrático de direito.
Dessa
pergunta decorre outra: como garantir que um país seja universalmente democrático,
ou seja, que os cidadãos participem das tomadas de decisão que influenciarão a
vida de todos, se há tantos grupos diversos? Para essa pergunta, esse arcabouço
jurídico oferece a mesma resposta: assegurando que o direito à sua diferença
seja paralelo ao direito à autodeterminação, à autoidentificação, e, portanto,
ao autogoverno (uma vez que, se o Estado tomasse para si a tarefa de decidir
quem é e quem não é indígena, quem decide ou não por um grupo indígena em
especial), agrediria sua organização sociopolítica, e ao fazer isso estaria
anulando justamente essa diferença cuja preservação é fundamental para a
própria democracia.
Assim,
a Convenção 169 da OIT, especificamente, determina que os povos indígenas e
tribais devem ser consultados pelo Estado antes que ele proponha ou realize
qualquer medida legislativa ou projeto que possa afetar-lhes, e ainda garante
que somente esses povos poderão dizer, por si mesmos, e de maneira livre, como
e em que grau essas medidas os afetariam.
A fim
de promover a participação cidadã desses grupos sem anular sua diferença e, ao
mesmo tempo, respeitar seus sistemas políticos, a Convenção determina, em seu
Artigo 6º:
ARTIGO 6º
1. Na aplicação das disposições
da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos
interessados, por meio de procedimentos adequados e, em particular, de suas
instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas
ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
b) criar meios pelos quais
esses povos possam participar livremente, ou pelo menos na mesma medida
assegurada aos demais cidadãos, em todos os níveis decisórios de instituições
eletivas ou órgãos administrativos responsáveis por políticas e programas que
lhes afetem;
c) estabelecer meios adequados
para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas próprias desses
povos e, quando necessário, disponibilizar os recursos necessários para esse
fim.
2. As consultas realizadas em
conformidade com o previsto na presente Convenção deverão ser conduzidas de
boa-fé e de uma maneira adequada às circunstâncias, no sentido de que um acordo
ou consentimento em torno das medidas propostas possa ser alcançado.
Vemos,
assim, que ao assinar a Convenção 169 da OIT e endossar a Declaração da ONU
sobre os direitos dos povos indígenas, o Estado brasileiro se obriga a garantir
aos povos indígenas o direito a serem povos indígenas ao salvaguardar todas as
condições para a manutenção de seus modos de vida, de seus sistemas de
pensamento e de organização social e política: seu autogoverno e, portanto, sua
identidade e diferença. Mais do que proibir os Estados que assinaram a Convenção
de afetar os sistemas políticos desses, ela os obriga a tomar iniciativas de
maneira ativa no sentido de fortalecer sua organização social. Segundo a
referida Declaração da ONU:
Artigo 5º
Os povos indígenas têm direito
a conservar e reforçar suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas,
sociais e culturais, mantendo por sua vez, seus direitos em participar
plenamente, se o desejam, na vida política, econômica, social e cultural do
Estado.
Para que isso ocorra com
respeito ao princípio da participação cidadã num processo democrático, e com o
respeito pleno à diferença sociopolítica desses povos, a Convenção proíbe o
Estado de decidir, sozinho, como esses grupos se organizarão para tomar
decisões: somente o próprio povo indígena é que pode dizer como se organiza,
quem toma as decisões, como as decisões são tomadas, e quem os representa. Isso
é assegurado pela Convenção 169 da OIT de maneira muito clara.
Ela proíbe
que o Estado diga quem pode e quem não pode tomar decisões em nome de um determinado
povo indígena, por exemplo e, mais especificamente, proíbe o Estado de dizer
que uma reunião com apenas alguns membros de um povo indígena seja considerada
como um processo de consulta. Esses dispositivos anulam, portanto, decisões
consideradas pelos próprios povos indígenas como decisões ilegítimas segundo
seus próprios jeitos de se organizar politicamente e tomar decisões,
invalidando assim alguns consentimentos indígenas que o Estado se habituou a
construir historicamente, e que sempre foram os maiores empecilhos à manutenção
desses grupos.
Surge, então, outra pergunta:
como o Estado pode saber se uma consulta prévia, livre e informada está sendo
realizada com respeito pleno aos regimes políticos e de conhecimentos de um
povo? A resposta está nos Protocolos de Consulta e Consentimento.
Protocolos
de Consulta e Consentimento são instrumentos que podem ser desenvolvidos pelos
próprios povos indígenas e tradicionais para sistematizar suas próprias
decisões a respeito dos modos como desejam se organizar e tomar decisões para o
Estado quando este realizar a consulta prévia, livre, informada e de boa-fé a
que têm direito os povos indígenas e tradicionais. Tal direito é consagrado
pela Convenção 169 da Organização do Trabalho, OIT, promulgada em 1989 e
ratificada pelo Brasil.
Os
protocolos de consulta não são formalmente previstos no texto da Convenção, mas
reiteram princípios e fundamentos do Estado democrático e direito amparados
pelo programa constitucional mas, como no Artigo 1º da Constituição Federal de
1988 lemos, parágrafo único, que “todo o poder emana do povo, que o exerce
diretamente ou por meio de representantes eleitos”, inaugurando uma democracia
participativa inédita na história do país (Verdum, et. al. 2009) e como, a fim
de assegurar a efetividade desse sistema, os 5 primeiros artigos do diploma
constitucional, apresentam princípios e fundamentos desse Estado democrático de
direito (Duprat, 2015) e os Protocolos próprios consistem em sistematizações
feitas pelos próprios grupos dos critérios e parâmetros cominados por sua
própria organização social para que a consulta prévia seja realizada.
Como
vimos, uma decorrência concreta desse direito assegurado pela OIT 169 é o
direito à consulta prévia, livre, e informada. Segundo
a Convenção o Estado brasileiro fica obrigado a consultar os povos indígenas
antes de realizar um projeto ou propor uma lei que os afete: esse instrumento
visa assegurar a participação dos povos indígenas na vida política, ou seja,
sua cidadania e, assim, salvaguardar a democracia. Essa consulta tem que
ocorrer de maneira prévia (antes da coisa se realizar), livre e informada.
Olhemos
com mais vagar para cada um desses critérios que a Convenção estipula para a
qualificação da participação indígena diferenciada na vida política do país.
Por uma consulta livre, a Convenção
entende que o Estado não pode pressionar os grupos a dar respostas quando do
processo de consulta. E por informada,
a Convenção assegura que o Estado signatário fica obrigado a informar os grupos
consultados de maneira plena, expondo detalhadamente os prós e contras do
projeto ou lei, sem omitir nenhuma informação. Além disso, a Convenção reza que
a consulta deve ser conduzida com boa-fé
por parte do Estado, de maneira que os grupos consultados não sejam coagidos a
dar seu consentimento mediante pressão,
ameaça, ou chantagem, por exemplo.
Critérios e instrumentos para
que um processo de consulta seja legítimo
Já que
objetivo do direito à consulta prévia, livre, e informada, é assegurar a
participação cidadã dos povos indígenas sem ferir seus outros direitos, tais
como o essencial direito ao autogoverno, e isso só é possível ao garantir que
essa participação seja diferenciada mas não menos válida ou legítima que a dos
demais cidadãos, é importante questionarmos quais são os critérios de
procedimentos necessários para assegurar a legitimidade dos processos de
consulta realizados pelo Estado. Como o Estado, esse ente estatístico que, para
realizar o projeto democrático deve estender direitos universais, lidaria com a
diversidade e a peculiaridade? Como o Estado poderia saber quem decide por quem
entre cada grupo indígena?
A Convenção
169 da OIT, tanto quando a Declaração da ONU, deixam bem claro que, em atenção
aos princípios da livre determinação e do autogoverno, somente os povos indígenas poderão definir as modalidades por meio das
quais devem ser consultados. Afinal de contas, se o objetivo é respeitar
suas estruturas políticas e jeitos de tomar decisões, não faria o menor sentido
se o Estado estipulasse quais os meios pelos quais deve ser feita a consulta,
quem deve ser consultado, de que maneira um processo de consulta deve ser conduzido,
etc. Longe de ser um problema, analisando a questão de maneira mais pragmática,
temos clareza de que, do ponto de vista do próprio Estado, diante dessa difícil
tarefa, o melhor seria deixar os índios decidirem por si mesmos quais os
procedimentos adequados segundo seus próprios sistemas políticos, eximindo o
Estado de ter que “pensar por eles”, o que seria inviável.
Desse
modo, a partir do que dispõe a Convenção 169 da OIT, é consenso que o melhor
meio para isso consiste em permitir que os próprios povos indígenas reflitam
sobre seus sistemas sociopolíticos, conheçam os direitos aqui mencionados e sua
finalidade e decidam, por si mesmos, quais os critérios, condições e etapas
devem ser adotados para que um processo de consulta e, portanto, o consentimento
(ou não) dele decorrente sejam legítimos. Um instrumento importante nesse
sentido é o protocolo de consulta.
Um
protocolo é um conjunto de critérios e normas estabelecidos e que se usa para
tornar algo válido. Protocolos de
consulta são documentos gerados pelos próprios povos indígenas nos quais eles
apresentam como são seus sistemas sociopolíticos e seus consensos a respeito de
como o Estado deve consultá-los a respeito de medidas legislativas e
administrativas. Como os povos indígenas são muito diversos entre si,
sobretudo politicamente, o único meio para promover seu direito ao autogoverno
em sua plenitude e, consequentemente, sua participação no processo democrático
de maneira diferenciada, é fazer processos de consulta prévios, livres, e
informados, de acordo com as regras e procedimentos estabelecidos pelos
próprios povos em questão.
Nesse
sentido, os Wajãpi do Amapari, do estado do Amapá, foram os primeiros a
concretizar um Protocolo de Consulta, intitulado Wajãpi
kõ omõsãtamy wayvu oposikoa romõ ma´ë – Protocolo de Consulta e Consentimento Wajãpi. Apresentando
aos não-índios sua organização sociopolítica os Wajãpi estabelecem, no
protocolo, todos os critérios, procedimentos e etapas, detalhada e
minuciosamente, para a realização de um processo de consulta por parte do
Estado. Esse pioneiro protocolo norteará o primeiro processo formal de consulta
de acordo com um protocolo, relativo à regularização fundiária da Floresta
Estadual do Amapá e do Projeto de Assentamento Perimetral Norte, vizinhos à
Terra Indígena Wajãpi.
Outro
grupo que já desenvolveu um protocolo de consulta habita o Pará: os Munduruku
definiram, por si mesmos, quais são os critérios compatíveis com sua
organização social para que um processo de consulta seja legítimo e assegure
que seu sistema sociopolítico e seu autogoverno sejam respeitados nos processos
de consulta.
No caso
dos grupos onde (havendo ou não protocolos formalizados em documentos) os
critérios para a consulta prévia estão claros, todo e qualquer meio empregado
pelo Estado para obter seu consentimento pode vir a ser questionado. Ao
construir seus protocolos próprios, os povos indígenas no Brasil dão uma
verdadeira lição de cidadania a toda a sociedade nacional, uma vez que se
apropriam consciente e coletivamente de direitos, refletem sobre si mesmos,
organizam-se ativamente em torno de sua participação na vida política, pública,
do país e se adiantam, saem à frente ao apresentar ao Estado os métodos que
deverá seguir para realizar seus próprios objetivos sem ir de encontro com suas
próprias determinações – que são as leis. Não seria exatamente essa a melhor
definição de cidadania? Assim, é
possível dizer que os povos indígenas no Brasil realizam os princípios da
democracia e da cidadania de uma maneira muito consciente, participando pró-ativamente
da vida política e se adiantando em relação às políticas públicas ao apresentar
seus consensos quanto seus rumos a serem adotados pelo Estado na realização das
políticas públicas.
O
Protocolo de Consulta Wajãpi é muito ilustrativo do quanto um conjunto sério de
regras e critérios como esse não é fácil de se construir: produto de
praticamente 30 anos de reflexão e experiência na relação com o Estado por meio
do Conselho das Aldeias Wajãpi Apina, o Protocolo sistematiza consensos e
aprendizados há muito consolidados.
É forçoso dizer que não dispor
de um protocolo, contudo, não pode ser considerado pelo Estado uma desculpa
para não promover a consulta prévia, livre e informada e, assim, não respeitar
os direitos que ela ampara. Primeiramente porque em hipótese alguma o Estado
poderia dar uma desculpa para não realizar a democracia, ferir o direito à
autodeterminação e ao autogoverno e agir contra o principio da isonomia.
Outro ponto a ser considerado,
além disso, é que a consulta e, portanto, a participação cidadã, não podem
ficar restritas a processos formais de consulta prévia nos termos de ações civis
públicas do MPF por exemplo: deve ser uma rotina constante por parte do Estado
e deve ser, em todo e cada momento, norteada pelo respeito estrito aos direitos
e princípios aqui brevemente enunciados e, sobretudo, em respeito ao que os próprios
povos indígenas dizem a respeito da maneira como se organizam para serem
consultados. Para isso, existem instâncias de governança já bastante ocupadas
pelos povos indígenas de maneira pró-ativa e organizada, como conselhos
consultivos de áreas protegidas, conselhos locais e regionais de saúde e
educação, etc[1].
Tudo
aquilo que todo e qualquer cidadão deve fazer para realizar a democracia:
pautar, minutar, de maneira organizada e com base em consensos comunitários e
locais, as políticas públicas – os povos indígenas fazem, apesar de sua
diferença, da opressão que sofreram por parte do Estado, e do fato desse
sistema de organização sociopolítica ser muito diverso do deles. Bonito para
eles. Feio para nós, que nada ou muito pouco fazemos nesse sentido enquanto
cidadãos, enquanto se instaura, na sociedade brasileira, uma crise que não é,
na verdade, centrada nas instituições: essa crise deriva de nossa absoluta
ausência de cultura política, de formação e participação para a cidadania.
Retornando
à questão central, vimos que, para que uma democracia funcione plenamente, é um
princípio que os cidadãos participem ativa e organizadamente da tomada de
decisões. Em outras palavras, para que um país seja efetivamente democrático, é
fundamental que garanta a participação de seus cidadãos, consultando-os a
respeito dos rumos do país – rumos esses de cuja condução se encarrega o
Estado. Quando isso ocorre, dizemos que há cidadania, esteio fundamental da
democracia. No caso dos povos indígenas, devido à suas diversas maneiras de se
organizar politicamente e tomar decisões, isso exige o respeito aos princípios
da livre determinação, autogoverno ou
autodeterminação e, na sua relação com o Estado, o respeito a seu direito à
consulta prévia, livre, informada e de boa-fé sendo, ademais, dever do Estado
ofertar condições diferenciadas para que estes diferentes não precisem
igualar-se (“perder sua cultura”, deixar de ser como são) para que participem
enquanto cidadãos da vida política do país e decidam, por si mesmos, à sua
maneira, o que é melhor para eles.
Cidadania, participação, e
diversidade
Vimos
que os povos indígenas no Brasil, especificamente, são muito diversos dos
não-índios e, assim também, muito diferentes entre si, e que o que diferencia
não são apenas suas línguas e seus trajes e pinturas corporais: seus jeitos de
tomar decisões, seus sistemas de parentesco e políticos são muito ricos e
variados. Para que o Brasil seja um país
efetivamente e, portanto, universalmente democrático, é fundamental que essas
diferenças sejam respeitadas e fortalecidas, de modo que o processo de consulta
prévia, livre e informada, que assegura a participação democrática dos povos
indígenas na gestão do país respeite seus sistemas de tomada de decisões
políticas. Essa é uma condição essencial não apenas para a manutenção dos povos
indígenas em si: é requisito mínimo para que consideremos o Brasil um país
verdadeiramente democrático e cidadão.
Ao
realizar o que dispõem a Constituição, a Declaração e a Convenção, o Estado
brasileiro estaria fazendo um bem não apenas aos povos indígenas: estaria
fazendo um bem a todos os cidadãos brasileiros, que merecem viver em um país
democrático, cidadão, e plural, onde as diferenças sejam respeitadas. Oxalá
isso comece a ocorrer, pois embora haja um arcabouço jurídico poderoso nesse
sentido, o Estado parece ser, quando o olhamos à luz dos processos de cidadania
movidos pelos índios, seu maior inimigo por sua tendência a anular, e da
maneira mais negativa possível, sua diferença, aniquilando-os.
Bruno Walter Caporrino
Publicado originalmente em
agosto de 2017
Na coluna Filosofias Selvagens
Portal Heráclito
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[1] Sobre a participação cidadã indígena
organizada, diferenciada e calcada em consensos comunitários locais como
realização dos princípios da cidadania e da consulta prévia, livre e informada
de maneira diária e orgânica, ouso recomendar outro texto de minha autoria
também publicado nessa coluna:
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