Bruno
Walter Caporrino
Escrevo
este texto com a intenção de que seja uma Carta para História. Trata-se de um
texto póstumo, que muito provavelmente não será lido agora, e que, muito
dificilmente, será resgatado do oceano de escombros, por algum historiador.
Mais do que um depoimento ou manifesto, minha intenção é registrar aqui, na
condição de cidadão, uma acusação formal contra a sociedade brasileira, com
provas cabais e irrefutáveis (se bem que apenas algumas tenham sido escolhidas,
a título de ilustração) e com o fito de acusar, como o faria um Promotor, a
sociedade brasileira pelos crimes hediondos de genocídio e etnocídio contra os
povos indígenas. Que conste nos autos, eis o manifesto de intenções desta peça.
Que
conste nos Autos: eis o teor e o mérito da acusação. A despeito do muito que se
fala acerca do desastroso contato promovido pela chegada dos colonizadores à
América, parece que a sociedade brasileira não consegue dimensionar o grau de
iniquidade que a prática colonial assume. Aos fatos, tais como estupro em massa,
decapitações, perseguições, assassinato sistemático de aldeias e mesmo povos
inteiros, que perpassa, como uma constante, os 500 anos da história deste país,
parece se sobrepor uma narrativa folclórica que coloca o processo genocida de
colonização como uma tranquila e pacífica sucessão de contos em que os
indígenas, tolos, teriam aceitado miçangas e espelhinhos e, de muito bom grado,
teriam cedido suas mulheres, dignidade, corpos e territórios aos colonizadores,
submetendo-se voluntária, se bem que preguiçosamente, à escravidão.
A
imagem, quase mítica, que se constrói tanto dos indígenas quanto dos
colonizadores perpassa esses 500 anos de genocídio e se interpõe à compreensão
coletiva e estrutural do processo de colonização de modo a fazer emergir, no imaginário
coletivo brasileiro, uma imagem de estado edêmico em que Adão e Eva tupiniquins
teriam sido agraciados com o lume da civilização. A história, versão dos
vencedores, galga degraus a cada monumento histórico em que se celebra uma
visão do genocídio como uma visão de conquista, e que coloca os indígenas, ora
como preguiçosos selvagens, imprestáveis mesmo para servirem de mão de obra
escrava, e os colonizadores como beatos civilizadores, responsáveis pelo
resgate destes povos.
Tais
tropos operam em cada sala de aula, em cada escola (inclusive de samba), um
imaginário que reitera, diuturnamente, a polarização natureza versus cultura
ou, melhor, cultura versus natureza: os povos indígenas, associados
meticulosamente ao plano da natureza, teriam sido resgatados da barbárie e da
animalidade em que, segundo essa narrativa viveriam; salvos pelos bons
colonizadores que, munidos de ciência, tecnologia e, assim, postulados como
arautos do progresso e da civilização, estenderiam as mãos aos selvagens,
alçando-os ao progresso, salvando-os de um estado de natureza em que, nus,
viveriam como animais e, portanto, em pecado.
O
genocídio que essa narrativa não apenas justifica como defende como necessário
e inevitável, pelo qual todos teríamos que ser gratos, acaba relegado às notas
de rodapé dos materiais históricos e educativos de maior difusão sobre o tema,
incluindo aí a narrativa jornalística e, sobretudo, as cartilhas escolares. Que
bom que os portugueses enganaram os índios ao oferecer-lhes miçangas e
espelhinhos em troca de suas riquezas e territórios: escravizados, estuprados,
vilipendiados, ao menos seriam civilizados, porque humanizados e induzidos a
deixar o plano da natureza que, bichos que seriam, deveriam abandonar pela via
do progresso e da civilização.
Disso
resulta, como vimos, que o genocídio que se cometeu por 500 anos, e ainda se
comete, contra essas populações, não apenas é mitigado e obliterado pelo
discurso da civilização como um favor e da escravidão como um preço a se pagar
por ela. Mas, pior do que isso, é fundamental que considerarmos que esses
corpos matáveis e essas populações extermináveis servem, ainda, de
justificativa para uma hipócrita e maldosa justificativa da formação de um povo
brasileiro pretensamente alegre, cordial, gentil, miscigenado, anti-racista,
acolhedor e bondoso. O genocídio cometido contra essas populações é finalmente
diluído quando a narrativa as coloca como base racial da formação da identidade
nacional e postula um estereótipo pérfido do que venham a ser os índios.
A
alegoria do indígena uniforme e estereotipado, com penas coloridas, seios à
mostra, pureza e inocência típicas das “crianças do gênero humano” que passam a
ser neste sistema de valores, corrobora a prática genocida que constitui a
gênese e portanto o gene da nação e, portanto, do Estado brasileiro. Não
bastasse esse genocídio, há ainda uma segunda camada de assassínio, que
vilipendia os incontáveis cadáveres que a constituição da cruel, racista,
classista, desigual e desumana sociedade brasileira deixa pelo caminho de sua
história.
Uma
segunda camada de maldade deste genocídio que, se movido um processo penal
contra o Estado brasileiro, serviria para qualificar este doloso e hediondo
crime, é a profanação sarcástica destes cadáveres, expressa por essa narrativa
que coloca o genocídio dos povos indígenas como um imenso favor que lhes teria
sido feito e postula uma imagem preconceituosa e distorcida destas vítimas como
a base do “caldo cultural multicolorido e cordial” que se apregoa que é a sociedade
brasileira. Em outras palavras, não bastou pilhar, devastar, estuprar,
assassinar esses povos: não contente, a agência colonizadora culpa-os, vítimas,
pelo genocídio que sofreram e ainda propaga que, além disso ter sido mais do
que merecido, ainda foi um grande favor que lhes foi feito. Não bastasse isso,
ainda se propaga, por séculos, no tribunal da história (em que não têm podido
advogar em causa própria e nem mesmo questionar a legitimidade do próprio
tribunal), uma imagem preconceituosa e distorcida destes povos, como se
assassiná-los e deixar seus corpos ao léu da história não bastasse, sendo
preciso vilipendiar suas almas e consciências: urina-se ostensiva e
macabramente sobre seus cadáveres.
Engana-se
quem imagina que o genocídio perpetrado sistematicamente pelas elites que
manejam o Estado a seu favor ocorreu por um período distante e isolado, com
poucas vítimas, e que isso é algo restrito aos primeiros anos da nefasta e
trevosa história desta nação. O genocídio perpetrado pelas elites em nome da
nação brasileira, ou seja, em nome de todos nós, persistiu ao longo destes 500
anos: e perdura até hoje.
Um
exemplo – infelizmente, entre milhões possíveis – são os Autos da Devassa que,
segundo Marta Amoroso:
Tais situações e visões
passaram a fundamentar tanto a práxis da violência quanto as leis de exceção
para com os Mura. As primeiras denúncias contra tais povos se deram na fase de
hegemonia da Junta das Missões, entidade com atribuições jurídicas, formada
pelas ordens religiosas católicas atuantes no Grão-Pará até 1755. Algumas
dessas ordens tinham comprovado interesse mercantil no rio Madeira. Os
jesuítas, por exemplo, exploravam os seus cacauais nativos (Azevedo, 1919) e de
tal indústria extrativa efetuavam um volume significativo de exportações. Para
esses empreendimentos, a presença mura nas margens do rio Madeira representava
uma ameaça que deveria ser combatida. Este é o cenário no qual se germinou a
criação dos Autos da Devassa contra os índios Mura do Rio Madeira (1738-1739),
que consistia em uma ação judicial movida pelas ordens religiosas que atuavam
na região do Madeira. A partir de então, os Mura passaram a figurar como
inimigos oficiais da Igreja e da Coroa Portuguesa, passíveis de serem mortos e
escravizados. Durante o século XVIII, os documentos sobre os Mura posteriores à
Devassa repetiam e reforçavam imagens fortemente pejorativas. Os registros dão
conta de “populações selvagens, tratáveis apenas através da guerra e do
extermínio”. (...). Em 1757, quando da fundação do Diretório Pombalino que
garantia liberdade formal aos índios, os Mura continuaram a ser uma exceção,
uma vez que considerados inimigos oficiais da Coroa. A Carta Régia de 1798
também excluiu os Mura dos benefícios da Lei. (...). Uma vez inimigos irreconciliáveis
da Coroa, a escravidão imputada contra essas populações sempre foi uma empresa
aceita e oficializada. (Amoroso, 2009, p.3).
“Triste
passado esse”, lamenta-se o cidadão brasileiro e, com isso, exime-se de culpa e
responsabilidade. Mesmo quando se aponta que o genocídio sistemático foi uma política consciente e deliberada de
Estado, algo legal, determinado por lei, ainda assim o cidadão se exime de
responsabilidade, negando-se sujeito histórico mesmo que este Estado criminoso
que legalizou o extermínio seja o mesmo, hoje em dia. Além de negar o crime ao
renegar a História, com isso o “cidadão de bem” (que não passa de um
sub-cidadão que escora-se, em sua vida, numa busca desenfreada por adquirir
bens), no pseudo-conforto de sua cidade, exime-se de culpa e responsabilidade
por meio da interposição desse distanciamento geográfico, político e temporal.
Mas não se enganem: o genocídio perpetrado diariamente contra os povos
indígenas não é um fato histórica, política e geograficamente isolado.
Ele ocorre
desde o primeiro minuto do contato e espraia-se pelos meandros de nossa
história, persistindo no século XX e, inclusive no século, XXI. Exemplos
concretos, infelizmente, são inúmeros. O genocídio perpetrado contra os povos
indígenas encontra no caso dos Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul é um
exemplo latente .
O
Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2017,
publicado anualmente pelo Cimi, constata aumento em 14 dos 19 tipos de
violência sistematizados; apropriação das terras indígenas é um dos principais
vetores da violência. Segundo o Cimi:
Houve um aumento no número de
casos em 14 dos 19 tipos de violência sistematizados no Relatório Violência Contra
os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2017, publicado anualmente pelo
Conselho Indigenista Missionário (Cimi).Em três tipos de violência foram
registrados a mesma quantidade de casos que no ano anterior; e apenas em dois
tipos de violência houve menos casos registrados que em 2016. No entanto, estes
dois dados são parciais e podem ser maiores, conforme reconhece a Secretaria
Especial de Saúde Indígena (Sesai).
As informações sistematizadas
evidenciam que continua dramática a quantidade de registros de suicídio (128
casos), assassinato (110 casos), mortalidade na infância (702 casos) e das
violações relacionadas ao direito à terra tradicional e à proteção delas.
“Esta edição do Relatório
explicita uma realidade de absoluta insegurança jurídica no que tange aos
direitos individuais e coletivos dos povos indígenas no país. Para piorar, os
Três Poderes do Estado têm sido cúmplices da pressão sobre o território, que
pretende permitir a exploração de seus recursos naturais, e resulta em
violência nas aldeias”, explica Roberto Liebgott, coordenador do Regional Sul
do Cimi e um dos organizadores da publicação.
Ele complementa sua avaliação:
“além disso, especialmente a bancada ruralista tem atuado no sentido de
garantir todas as condições para que um novo processo de esbulho das terras
tradicionais seja consolidado no país. Ou seja, através do estrangulamento das
terras indígenas por diversos vetores, o que se pretende, de fato, é usurpar as
terras dos povos originários deste país”. (In: Relatório CIMI Violência contra povos
indígenas, 2018).
Como vemos, tais assassínios em massa, eivados de tortura,
não são historicamente distantes de vós, que leem estas linhas. Também não são
geograficamente distantes: a perseguição e assassinato diretos contra povos
indígenas e suas lideranças acontece, precisamente, na sua cidade. E também não
são politicamente afastados: olhe para suas mãos e verás, depois de ler estas
linhas, quanto sangue indígena traz nelas.
Cada grama de carne que consomes, cada pacote de molho de
tomate que abres em sua casa, feito com soja transgênica produzida pelo
agronegócio que concentra terras infinitamente imensas nas mãos de poucos caciques,
trazem consigo litros de sangue indígena. Poder-se-ia, cara leitora e caro
leitor, argumentar que em momento algum empunhastes armas e dispararam contra
essas sociedades, buscando eximir-se de culpa perante o Tribunal da História.
“Deste genocídio não faço parte como autor. Cidadão de bem que sou, não carrego
em minhas mãos sangue indígena. A ninguém matei: povo nenhum dizimei”, podeis
argumentar, em busca de uma consciência tranquila a que pousar sobre vossos
travesseiros.
Mas não é assim. Ocorre que, como demonstrado, o genocídio
perpetrado contra estes povos entra em sua geladeira, repousa nas prateleiras
de sua despensa. Até aí, embora reconhecendo que tal genocídio não é isolado de
ti na escala temporal, ainda vos reconheceriam como inocentes e isentos os
membros do Júri da História, acreditais. Todavia, não apenas esse genocídio não
é temporal e geograficamente isolado como se dá em grande e desastrosa medida
com vosso apoio e, mais do que isso, em vosso nome, e com vossa conivência, o
que nos permite pensar que, mais do que autores do assassínio, sois seus
mandantes.
Isso fica muito claro quando observamos que os reais
executores dos assassinatos cotidianos contra os povos indígenas são os barões
do agronegócio, o que bastaria para implicar-vos, leitoras e leitores, na
medida em que: a) vos eximis de fazer algo a respeito, o que atesta vossa
conivência, afinal, conforme o adagio popular, “quem cala, consente”; b) mais
do que isso, são perpetrados a bem da produção das infinitas toneladas de commodities
agrícolas que constituem a base da economia brasileira. Produzidas pelo
latifúndio que concentra imensas terras nas mãos de pouquíssimos proprietários,
cruéis “coronés” feudais, assim como há 500 anos atrás, essas commodities são
defendidas como arautos da superpoderosa 8ª maior economia do mundo, ou seja,
do 8º maior Produto Interno Bruto, PIB, cujo crescimento comemorais a cada
edição do telejornal.
Ocorre que além de conviventes, sois partidários deste
genocídio cotidiano e, para piorar, em nada, absolutamente nada, vos
beneficiais disso. Apesar de ser a 8ª economia do mundo, o Brasil está em 79º
lugar no ranking dos países mais desenvolvidos, com índice de desenvolvimento
humano, IDH, 0,759. Para piorar, se olharmos o índice de Gini, indicador fundamental
que mensura a concentração ou distribuição de renda (e que pressupõe que 1
seria concentração absoluta de renda e 0 distribuição absoluta de renda), vemos
que o índice de Gini do Brasil é de 0,625, o que coloca o Brasil, 8º país mais
rico do mundo, entre os 10 países mais desiguais do mundo.
Para que se tenha uma ideia, estudo da Oxfam revela que os
5% mais ricos detêm mesma fatia de renda que outros 95%. Os seis homens mais
ricos do Brasil concentram, juntos, a mesma riqueza que os 100 milhões mais
pobres do país, ou seja, a metade da população brasileira (207,7 milhões de
pessoas), segundo a Oxfam.
Isso se reflete de maneira mais clara na questão fundiária,
uma vez que, em 500 anos nada mudou nesta Sesmaria, nesta colônia de exploração
predatória dos recursos naturais com base em mão de obra escrava e
desqualificada que é o Brasil. É na terra, no campo, que conseguimos
compreender a ossatura da estrutura feudal da sociedade de classes brasileira
e, ao olhar para esta radiografia que compreendemos as fraturas e sua
gravidade. Segundo levantamento do Repórter Brasil, uma vez que das
propriedades rurais do Brasil, 35 delas ocupam mais de 50% das terras úteis à agricultura.
Segundo o Atlas Fundiário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária, Incra, vemos que apenas 1% dos proprietários de terras do Brasil são proprietários
de mais da metade dos imóveis rurais do país. (para mais informações, consulte o site Repórter Brasil, reportagem de Julho de
2006).
Como vemos, desde
1500, nada mudou no Brasil: colônia de exploração, teve seu território dividido
em sesmarias e capitanias hereditárias, centrada na exploração feudal de
mão-de-obra brutalmente escravizada e calcado na partilha das terras entre
poucos tu-barões; terra, bem máximo, entre os donos do poder que, não
coincidentemente, são os pais e avôs dos membros do clero e do judiciário,
poderes acessórios cuja finalidade é legitimar o poder dos capitães ou
“coronés”. Baseada na exploração brutal de recursos naturais, essa economia
nada evoluiu: 518 anos depois, as terras ainda continuam nas mãos de
pouquíssimos senhores, que não medem esforços em empregar mão de obra em
condições análogas à da escravidão, conforme o próprio ex-ministro do trabalho
no governo Temer defendera.
Os índios, assim
como as áreas protegidas que, segundo o Artigo 225 da Constituição Federal
visam proteger o patrimônio público que é a biodiversidade, ainda mais uma vez,
passam a estar “no caminho do progresso e do desenvolvimento”. Do surto
colonizador da Amazônia que a Amazônia viveu à duras penas durante a ditadura
militar até os dias atuais, infelizmente, nada parece ter mudado: o discurso
segundo o qual seria fundamental “integrar os índios para não entregar a
Amazônia”.
O que interessa
pontuar aqui, antes disso, é que os grandes latifundiários brasileiros
obtiveram infinitas porções de terras públicas, geralmente, por meio de uma
série de práticas absolutamente ilícitas: corrupção, essa a palavra. Pois,
vejamos, o que seria corrupção senão aproveitar-se do que é público a fim de
obter vantagens pessoais? Roubar terras públicas por meio de grilagem e
inúmeros processos escusos de cessão e concessão, como bem demonstra o cineasta
Vincent Carelli em seu último documentário, Martírio, é apropriar-se do que é
público para obter vantagens individuais. Portanto, se ao leitor e à leitora
causa revolta a corrupção, podem preparar-se para mobilizar-se contra... o
agronegócio. Isso mesmo: nem pop, nem tech, o agro é mortal. Para piorar, o
agronegócio que assassina a bem da mais espúria corrupção, ainda por cima é
praticado pelos vossos representantes.
Isso mesmo, vossos
representantes: segundo dados do Diap/Senado, contando com 120 deputados
federais e 13 senadores (autodeclarados ruralistas, sem contar aqueles que, não
se declarando ruralistas os apoiam ideológica e politicamente) em sua última
composição, a bancada de representantes do povo e, portanto, dos interesses
públicos e do coletivo que luta declarada e abertamente para promover a
concentração de terras, a grilagem de terras públicas e o enriquecimento por
meio de financiamento público, em nome do coletivo, com vistas unicamente aos
benefícios particulares (ou seja, a bancada da corrupção), perfaz ¼ do Senado.
Sabeis o que isso significa, senhoras e
senhores? Significa que, num Estado democrático de direito no qual, de acordo
com o Artigo 1º da Constituição Federal, “todo o poder emana do povo, que o
exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos”, senadores e
deputados federais são, formal e teoricamente, vossos representantes, vossa voz
e, mais ainda, vosso braço: agem em seu nome, como vossos porta-vozes, como
extensão de vossos braços, com vossa anuência e autorização.
Significa,
portanto, que ao valer-se de cargos de representantes públicos dos interesses
coletivos para, manejando a máquina pública, obterem vantagens e benefícios
individuais e particulares, deputados e senadores são corruptos mas, mais do
que isso: são corruptos em vosso nome. São vossos delegados. Vossos
representantes. Considerando que ¼ do Senado é composto por praticantes de
crimes de genocídio contra os povos indígenas (muitos deles diretamente
envolvidos com o comando de casos concretos), e que estes homens e mulheres são
vossos delegados, devemos considerar que sois, vós, leitores e leitoras,
cidadãos e cidadãs, eleitores, os mandantes do genocídio enquanto eles, apenas
seus executores.
Isso significa que
as mortes e mais mortes de indígenas e quilombolas, de ribeirinhos e
agricultores familiares, orquestradas por estes vossos representantes,
constituem um genocídio não apenas temporal e geograficamente próximos de vós,
mas sobretudo politicamente próximos, porque realizados a vosso mando, por vossos
representantes, por vossa delegação e responsabilidade. Se eles são os
capangas, vós, eleitoras e eleitores, sois os mandantes.
Mas não paremos por
aí. Para além do genocídio cometido com sua conivência, em seu nome e a seu
mando, há uma prática ainda mais dolorosa e hedionda: o etnocídio, que equiparo
à dolosa e hedionda profanação das vítimas na história. Conclamo a testemunhar
o grande Pierre Clastres:
O etnocídio é a
destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes
daqueles que empreendem essa destruição. Em suma, o genocídio assassina os
povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito [...] O etnocida, em
contrapartida, admite a relatividade do mal na diferença: os outros são maus,
mas pode-se melhorá-los obrigando-os a se transformar até que se tornem, se
possível, idênticos ao modelo que lhes é proposto, que lhes é imposto.
(CLASTRES, 2004 [1974]: 83).
Vemos então que,
não bastasse a morte física e dolorosa dos povos indígenas pela aniquilação
direta e dolosa de seus corpos, que espraia-se até hoje, faz 500 anos, há a
prática do etnocídio: aniquilando os povos em seus espíritos, a prática
etnocida reconhece de maneira aparentemente benévola a diferença, abriga-a sob
a humilhante capa da “cultura diferenciada” que anula essa diferença em sua
raiz mais profunda, negando a epistemologia, o regime de conhecimentos e os
regimes de relações sociopolíticas destes povos e impondo-lhes por vias mais ou
menos violentas mudanças em seus paradigmas.
A prática etnocida
acompanha o genocídio dos povos indígenas desde o primeiro minuto em que, cá
pisando, os portugueses retalharam corpos e terras. Mais hedionda, todavia, ela
aniquila os homens em sua humanidade: anula e suplanta seus regimes de
conhecimentos, tomando-os ora como animais bestiais ou beatos, e visa, com
isso, destituir-lhes de sua soberania científica, cosmológica, social, política
sobre si mesmos e sua história, sobre seu universo e seu território, sobre suas
próprias existências e relações.
As duas principais
vertentes da práxis etnocida caminham tão intimamente juntas que o simples
olhá-las nos permite compreender as afinidades eletivas entre Estado e Igreja,
desde o início deste crime chamado Brasil: a prática missionária católica que
debatia a humanidade ou não dos índios, com o propósito de definir se poderiam
ser escravizados ou não, anda de mãos dadas com os interesses dos Capitães e
das elites que controla(va)m o Estado a fim de beneficiarem-se privadamente com
a exploração predatória dos recursos naturais – e humanos – da colônia. Como,
por exemplo temos, durante o início do século XX o Serviço de Proteção ao Índio
e Localização dos Trabalhadores da Nação, SPILTN, que visava atrair e
sedentarizar os povos indígenas para, privando-os do usufruto pleno de seus
sistemas sociopolíticos, mantê-los “aldeados” (termo do século XVI até hoje
empregado, e não à toa) a fim de liberar o território para a exploração dos
recursos pelos donos do poder.
Eis uma prática que
não é, assim como o genocídio, isolado temporal, geográfica e muito menos
politicamente de vós, leitoras e leitores: do surto desenvolvimentista que
permeou de desvario, assassínio e mortes a Amazônia durante o período em que,
tomando o Estado brasileiro os militares trabalharam para a exploração
estrangeira de seus recursos em nome da soberania nacional aos dias atuais,
fica inequivocamente provado que o etnocídio é a prática mais cotidiana do
Brasil e da qual vós não estais dissociados. Primeiramente porque, como já
afirmara Edmund Burke (Dublin, 12 de janeiro de 1729 — Beaconsfield, 9 de julho
de 1797), que faço questão de citar por se tratar de um filosofo liberal: “o
mal triunfa quando homens de bem se omitem”.
Como mencionado, o
etnocídio é prática corrente por parte do Estado desde que este se instaura no
que viria a ser o Brasil e está, portanto, na base e na raiz da atuação do
Estado brasileiro com os povos indígenas. Visando aniquilá-los em sua
diferença, catequizando-os e escravizando-os, o etnocídio caminhou de mãos
dadas com o genocídio: quando não se matava os índios em seus corpos, matava-se
em suas almas. A religião desempenha, então, papel preponderante na prática
etnocida, não apenas no passado, mas até os dias atuais. Igreja e Estado
irmanam-se na empreitada etnocida, sob o comando dos proprietários de terras
empenhados em extrair recursos naturais para entregar aos estrangeiros a preço
de banana, há 500 anos.
Infelizmente, é
possível dizer a relação do Estado brasileiro com os povos indígenas em nada
mudou e, mais infelizmente ainda, exemplos de etnocídio não faltam: desde as
Missões como Sete Povos das Missões e, no século XX, Utiariti, no Mato Grosso,
práticas de aniquilação dos povos em sua diferença espraiam-se no tempo e no
espaço.
Atualmente, a
atuação de missionários neopentecostais, que se autodenominam
“interdenominacionais” como a Missão Novas Tribos do Brasil e a Jocum persistem
em atuar, nas aldeias, uma catequese cuja base é, em linhas gerais, condenar os
regimes de conhecimentos e de relações indígenas ao “pecado”: fruto do pecado,
os saberes e viveres indígenas são associados ao Mal e à Satanás em um processo
cada vez mais sofisticado, sutil e, por isso mesmo, cada vez mais brutal de
anulação dos povos indígenas em sua essência, em suas almas, em seus regimes de
conhecimentos e, portanto, em sua diferença.
Assim como durante
os século XVI, XVII e XVIII, atualmente as missões atuam como pontas de lança
da empresa colonial, aliada ao Estado e, por conseguinte, servindo aos donos do
poder que o manipulam a fim de matar, assassinar e colonizar para enriquecer de
maneira privada com a pilhagem e a rapina dos recursos naturais e humanos, que
são patrimônio público. Vosso patrimônio.
Não coincidentemente,
as missões neopentecostais pressionam os povos indígenas com maior grau nos
contextos em que, a mando do Estado, projetos desenvolvimentistas como a
BR-210, Perimetral Norte, Belo Monte (originalmente Cararaô) e Transamazônica
se desenrolam com recursos públicos (vosso dinheiro) e sob o comando de agentes
políticos (vossos delegados, que atuam em vosso nome), favorecendo os processos
de sedentarização e concentração da ocupação indígena para, com isso, liberar o
território para o “progresso e o desenvolvimento”(de quem?).
Para piorar, a
prática etnocida desempenhada pelo Estado, ou seja, em vosso nome, vale-se do
Estado democrático de direito instituído pela Constituição Federal de 1988 e
preda as políticas públicas, fazendo com que elas, que deveriam servir à
promoção do pluralismo e do multiculturalismo, induzam justamente a aniquilação
da diferença. O objetivo é claro: aniquilar a diferença, catequizando os
indígenas para que, abandonando seus regimes de conhecimentos e de relações,
dependam cada vez mais de salários e cargos, postos de assistência, e cada vez
menos da floresta e do território que são, mais do que matas virgens,
comprovadamente fruto de milênios de ocupação indígena.
Converter os
indígenas, soberanos sobre seus conhecimentos e regimes de relações em
dependentes de políticas públicas assistencialistas e clientelistas caminha
passo a passo com o desmatamento e a insegurança jurídica promovida pela
grilagem estatal, liberando espaço para obras faraônicas como Belo Monte, que
enriquecem empreiteiras como Odebrecht, com dinheiro público, às custas do
genocídio e do etnocídio. Belo Monte e grandes obras, assim como o agronegócio,
que subsistem da grilagem e, portanto, da atuação de pistoleiros, assassinos de
aluguel, capangas, vereadores, deputados, prefeitos e senadores, tornam-se mais
fáceis quando os índios, impedidos de viverem-se a si mesmos, têm seu direito à
diferença aniquilado mediante um processo de catequese que visa converter estes
soberanos em pobres mendigos, expulsos das terras indígenas e relegados a
ocupar a periferia da periferia da periferia da periferia da periferia da
periferia do nosso universo.
Tudo isso, para
piorar, por meio do Estado e das políticas públicas que, como já expliquei em (“De
como sem respeitar os índios o Brasil não respeita a si mesmo”, aqui publicado) deveriam
justamente promover a diferença, segundo os princípios sagrados da isonomia, da
autodeterminação e do autogoverno. Um exemplo concreto desse hediondo processo
é a educação escolar: ofertada aos povos indígenas de maneira absolutamente
ilegal, porque totalmente desobediente ao que comina a Constituição Federal, a Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT, e toda a legislação
infra-constitucional, a educação escolar, que, enquanto politica pública é
realizada em vosso nome, e com vossos recursos, deveria promover e fortalecer a
diferença, acaba servindo como um dos mais claros exercícios de etnocídio.
Nas salas de aula
das escolas indígenas do Brasil é comum ver que a educação escolar funciona
como um mecanismo de submissão dos índios ao propagar ideias totalmente
preconceituosas segundo as quais os indígenas seriam macacos, primitivos, povos
da idade da pedra, implícitas nos programas educacionais e materiais didáticos
que postulam que os índios até tenham cultura, algo bonitinho que os diferenciaria,
mas que em essência seriam seres primitivos que deveriam ser civilizados
mediante o acesso aos verdadeiros conhecimentos, que seriam os conhecimentos
ocidentais.
Ocidentais de 2ª
classe, assim são ensinados a enxergarem-se as crianças indígenas nas salas de
aula que se espalham pelas aldeias. Ocidentais de 2ª categoria, que deveriam
apegar-se à educação escolar, oferecida de maneira precária na forma e no
conteúdo em torno dos antigos postos de atração – que visavam atrair os índios,
centralizar a ocupação e liberar o território para madeireiros e garimpeiros –
a fim de, munidos de um diploma de 2ª categoria, rezarem para conseguir
sub-empregos mal-remunerados nas fazendas instaladas onde, antes, eram seus
territórios, que ocupavam e usufruíam com plena soberania. Estes o plano e o
sentido da política pública: uma prova a mais da atuação etnocida do Estado.
O pior de tudo é
que sequer se ministra estes conhecimentos ocidentais com qualidade, o que
torna nítido que o processo visa converter os indígenas, assim como o SPILTN
propunha, em peões de fazenda, semi-analfabetos, submissos às regras cruéis do
mercado que os assimilaria como mão de obra barata e desqualificada.
No campo da saúde
indígena não é diferente. Um exemplo gritante é a prática levada a cabo pela
organização missionária Caiuá, que, terceirizando o que deveria ser papel do
Estado (oferecer saúde diferenciada, segundo ampla legislação, salvaguardando a
diferença dos povos indígenas e respeitando seus direitos à autodeterminação),
atua como um braço missionário que, entre outras coisas, visa satanizar,
demonizar os pajés e, portanto, oferecer serviços públicos, políticas públicas
em saúde, como moeda de chantagem para que os povos indígenas abandonem seus
regimes de conhecimentos.
Segundo reportagem
do O Estado de São Paulo, a ONG evangélica e declaradamente missionária Caiuá assumiu,
como terceirizada, um serviço público que visa assegurar direitos de primeira
geração e universais, que, segundo a legislação constitucional e
infra-constitucional, deveriam ser oferecidos de maneira diferenciada a fim de
salvaguardar a autodeterminação destes povos, respeitando a obrigação do Estado
de ofertar os serviços em regime de isonomia. A referida reportagem dá conta,
ainda, de que em diversas regiões onde esta ONG atua em nome do Estado e,
portanto, em vosso nome, pajés e a cultura indígena são, mais do que desrespeitados,
criminalizados: associando os pajés ao satanismo, os médicos e técnicos de saúde,
na verdade, são agentes missionários que acabam evangelizando os índios e condenando,
dia a dia, na pratica, sua cosmovisão e organização social, como ocorre no Vale
do Javari onde, para piorar, a atenção à saúde, direito universal, é oferecida
como moeda de troca por meio de chantagem: ou abandonam sua cultura, ou morrem
doentes. (para mais detalhes, consultrm o Dossiê Especial Favela Amazônia,
Jornal O Estado de São Paulo, Capítulo 9).
Como vemos,
etnocídio é política pública: etnocídio é política de Estado. Etnocídio e genocídio
servem aos interesses de poucos proprietários de terras que, lucrando com a
depredação do patrimônio público a bem de privilégios privados, tornam o Brasil
– 8º país mais rico do mundo – o 10º país mais desigual do mundo. Em vosso
nome. Com vosso aval.
O etnocídio,
política de Estado no Brasil, ganha novas feições na última década, travestido
de política pública, mas o objetivo é o mesmo de 500 anos atrás: colonizar os
índios, aniquilá-los em sua diferença, convertê-los em pacífica mão de obra semi-escrava,
a fim de permitir a exploração predatória dos recursos por um minúsculo grupo
de senhores feudais. Associado, uma vez mais, à religião, empregando o Estado
e, portanto, vossas cartas brancas, para levar a cabo esse projeto, o genocídio
e o etnocídio contemporâneos travestidos de política pública se valem da
religião para demonizar os índios e condená-los justamente por sua diferença.
Na forma as
políticas também são etnocidas. Se o conteúdo dos serviços de assistência à
saúde e educação, que deveriam ser diferenciados a fim de respeitar o princípio
da isonomia e assegurar os direitos à autodeterminação e ao autogoverno, mas
que, como vimos, acabam servindo como braço mais eficiente e direto do projeto
etnocida, na forma a coisa não é diferente. Seguindo o mesmo plano, as
políticas públicas em saúde e educação parecem orquestradas, orientadas para o
mesmo rumo: ofertadas de maneira extremamente precarizada e ineficiente, saúde
e educação operam como iscas que atraem os povos indígenas das regiões mais
isoladas e dispersas de seus territórios para os postos, hoje chamados de
assistência, mas que na verdade ainda são de atração.
Ofertando educação
e saúde de péssima qualidade (para ocidentais seria um absurdo ofertar educação
desta qualidade, imagine para povos diferentes) apenas em postos centrais, o
Estado induz processos paulatinos de centralização da ocupação e, assim, induz
à sedentarização. Conforme é provado por muito vasta e aprofundada literatura,
inclusive por manifestações dos próprios povos indígenas, como os Wajãpi, com
os quais trabalhei, a ocupação do território se dá em função das relações
sociopolíticas e de parentesco e acaba influenciando e sendo diretamente influenciada
por sua visão de mundo (a lide com os Donos), promovendo, assim, a gestão sócio
(sócio, antes de ambiental)ambiental do território. Conforme já expus nos
textos deste blog acima citado, a ocupação do território pelos indígenas é,
comprovadamente, a mais eficiente para a gestão dos recursos: é no
fortalecimento de seus regimes de relações sociopolíticas que devem recair as
políticas públicas.
Mas é no exato
oposto que elas incidem: forçando a centralização e a sedentarização da
ocupação do território em torno de postos centrais, o Estado acaba com sua
organização social e interrompe cadeias preciosíssimas de formação da pessoa.
Alegando oferecer educação, o que o Estado faz, assim, é induzir os povos
indígenas a abandonar processos orgânicos de produção e transmissão de seus
conhecimentos às futuras gerações: deixando de caçar e pescar com seus avós, as
crianças perdem a oportunidade de vivenciar todo o processo de construção da
Pessoa que é, em essência, a verdadeira educação indígena. Sem vivenciar sua
cosmologia e seus regimes de relações, as crianças não aprendem o que é ser
Pessoa, como portar-se, não ouvem as narrativas, não experienciam o ser de seus
povos.
Este é o movimento
mais brutalmente silencioso do etnocídio: ofertando educação escolar de péssima
qualidade, o Estado prestidigita a cosmologia indígena, surrupiando das
crianças a oportunidade de formarem-se pessoas plenas de seus povos e
oferecendo-lhes conteúdos de péssima qualidade. Interrompendo os processos de
transmissão oral dos saberes e cerceando a prática destes saberes, as políticas
públicas têm sido o principal exercício de etnocídio de que se tem notícia.
Vemos, assim, que
na forma e no conteúdo as políticas públicas são etnocidas. Precarizadas, visam
formar mão de obra de quinta categoria. Centralizadas e etnocêntricas, visam
matar os povos indígenas em suas almas: punir a cultura, a cosmologia, os
pajés, criminalizar as práticas e saberes tradicionais, perseguir os
praticantes. Tudo isso, para quê? Para converter os indígenas, esses soberanos
da diferença, em iguais em desigualdade: suplantar a diferença, não para
promover a igualdade, mas para enriquecer a desigualdade. Tudo isso em vosso
nome, porque trata-se de políticas públicas.
Além disso, a
precarização na oferta destas políticas públicas cria, primeiramente, a
demanda, a necessidade por elas: tornando-se dependentes de saúde e educação,
chantageados pelo Estado, que oferece políticas públicas como moeda de troca
por votos, e resume as políticas – que devem ser públicas – a vias para o
beneficiamento individual e particular em nome e à expensas do coletivo
indígena, e ainda por cima, depois de criar a necessidade delas, focando no
assalariamento como objetivo máximo da educação escolar, o Estado precariza
esses serviços. Assim, cria-se uma demanda brutal, oferece-se os serviços de
maneira centralizada, evitando a dispersão do território e, depois,
precarizando os serviços, empurra-se os povos indígenas e tradicionais para
fora das Terras Indígenas e áreas protegidas.
Qual é, em resumo,
a missão última desta prática etnocida? Converter os indígenas, soberanos sobre
sua cosmologia e seus territórios, gestores sociopolíticos dos recursos
naturais em mendigos desqualificados desesperados por saírem dos territórios
tradicionais e rumar para as periferias das cidades a fim de, recebendo
péssimos serviços de educação e saúde, servirem como exercito industrial de
reserva faminto e desesperado por servir como peões de obras, como fica claro
no caso de Altamira onde Belo Monte proporcionou um aumento de 500% no índice
de homicídios e latrocínios, segundo dados do próprio Ministério Público
Federal: a atração de empregados terceirizados para a cidade que não tem
infra-estrutura alguma, movendo contingentes enormes de famélico exército industrial
de reserva visa baratear as terras, promover a grilagem usando políticas
públicas como a reforma agrária, e gerar um contingente de famintos consumidores,
dependentes de serviços precários, quando não inexistentes. Prostituição,
moléstias infecto-contagiosas, homicídios: aumento de 500% no número de
latrocínios e homicídios em Altamira, após iniciarem-se as obras de Belo Monte,
acompanhado da grilagem literalmente violenta que se espraia tomando a obra
como epicentro: eis o projeto de país, etnocida e genocida, aí desenhado.
Segundo dados do
IBGE, em 2010, pela primeira vez na história do Brasil a população urbana
superou a população rural. Esse dado é importante porque demonstra o projeto de
país que subjaz à atuação dos governos: sucatear as políticas públicas para o
campo a fim de estimular as populações rurais e tradicionais a abandonarem seus
territórios a fim de, com isso, liberarem a exploração indiscriminada de seus
territórios por parte do agronegócio. Paralelamente ao teor e à forma etnocida
das políticas públicas temos outras políticas que estimulam as populações
rurais e tradicionais a enxergarem seus modos de vida como inferiores: toda uma
vasta e orquestrada superestrutura de produção ideológica, jornalística,
televisiva, educativa, trabalha para fazer com que essas populações enxerguem
seus modos de vida tradicionais, sabidamente soberanos sobre seus regimes de
conhecimentos e de relações com o território como modos de vida primitivos e
inferiores.
Longe de fortalecer
e valorizar a diferença, as políticas públicas ofertadas no plano local por
agentes alinhados com o neopentecostalismo e os valores mais distorcidos do
desenvolvimentismo capitalista trabalham para converter a auto-imagem de povos
tradicionais: de soberanos a mendigos. Um exemplo dramático disso é o caso do
“efeito mortadela”, identificado pela pesquisadora Barbara Piperata.
Investigando o quão
sofisticado e equilibrado é o sistema de produção da vida dos extrativistas da
Floresta de Caxiuanã, Piperata é surpreendida com a oferta irresponsável e
massiva de bolsas a estes extrativistas que, estimulados a entender-se como
primitivos que deveriam abandonar “o mato” para “civilizar-se”, ou seja,
tornar-se consumidores de produtos industrializados de péssima qualidade
(pesquise por “Na Amazônia, bolsa família causa efeito mortadela entre ribeirinhos”,
reportagem do site Amazônia Org publicada em novembro de 2015), são rapidamente
convertidos de reis a escravos submissos, num processo que revela muito sobre o
projeto de país em questão: inquestionavelmente etnocida, a política pública
desequilibra sistemas extremamente sofisticados e equilibrados de relações com
os ambientes e faz com que povos tradicionais abandonem o açaí e o pescado,
obtidos em regime extremamente equilibrado socioecologicamente, por mortadela,
daí o “efeito mortadela. “
Etnocida, a
política pública é utilizada para que abandonem as regiões onde moram e passem
a depender, então miseráveis, de assistência: doentes devido à má alimentação
que substitui a soberania alimentar de que usufruíam, passam a depender cada
vez mais dos precários serviços de saúde, entendidos como uma linha de produção
em massa tanto da doença como das medicações paliativas que pretensamente
consistiriam em sua cura. Já escrevi bastante sobre isso em outros textos que
podem ser consultados no Portal Unisinos, no qual dei entrevista intitulada "O desenvolvimento e o fim da cosmovisão indígena" no portal OutrasPalavras, onde escrevi sobre "As vizinhanças amazônidas e o risco de perdê-las".
Como vemos, isso
não é, infelizmente, de hoje. Todavia, não bastasse tudo o que os povos
indígenas e tradicionais já sofreram, agora desenha-se um projeto político
ainda mais drástica e declaradamente genocida e etnocida. Ao contrário dos
governos que ocuparam o poder até então, e que caracterizavam-se por
equilibrar-se, no presidencialismo de coalizão, entre os interesses dos muitos
e diversos coligados que lhes deram votos e um congresso sempre conservador,
mas que ao menos pretendiam manter uma imagem de governos democráticos
comprometidos com os princípios da isonomia e da autodeterminação dos povos (ao
menos no discurso), teremos um governo declaradamente genocida e etnocida:
declaradamente no mais literal sentido do termo.
Nos últimos anos, ganhando
força no Congresso Nacional, as bancadas ruralista e evangélica vêm tecendo um
pacto que lhes permitiu empurrar propostas como a Proposta de Emenda
Constitucional 215, o Projeto de Lei 1.610/96, que visa liberar as Terras
Indígenas para a mineração, a Portaria 303 da Advocacia Geral da União,
impetrar a hedionda Comissão Parlamentar de Inquérito da Funai, que visou
acabar com o órgão e aniquilar organizações importantes da sociedade civil como
o Cimi – todas estas medidas declaradamente anti-indígenas e nitidamente
orientadas aos interesses dos barões do agronegócio.
Um pacto que
associa agência missionária neopentecostal à políticas que deveriam ser
públicas e, portanto, focadas na promoção da isonomia e dos direitos à
autodeterminação e ao autogoverno são orquestrados à aprovação do Novo Código
Florestal, Lei 12.651/2012, o Novo Código de Mineração, Decreto 9.406/2018,
medidas como o julgamento de Raposa Serra do Sol pelo STF e suas 19
condicionantes, dentre elas o espúrio Marco Temporal, e grandes obras como Belo
Monte e são Luiz do Tapajós.
Associada às
politicas públicas etnocidas que visam arruinar a organização social e o regime
de conhecimentos dos povo tradicionais e convertê-los em dependentes eternos de
políticas públicas precárias, sucateadas e assistencialistas, tal ação visava
sutilmente (na aparência, embora no conteúdo sempre tenha sido brutal) expulsar
os povos tradicionais de seus territórios para liberá-los à mineração e ao
agronegócio. Converter a educação em fabriquetas de mão de obra de 2ª categoria
e negociar políticas públicas cmo cargos e salários que visam a cooptação
destes povos sempre foi uma iniciativa orquestrada que visava fazer com que,
voluntariamente, desejassem, no futuro, depender menos da terra e mais de
bolsas e cargos para que, voluntariamente, aceitassem a grilagem, o
arrendamento e a mineração em suas terras.
Agora, depois de
500 anos de humilhação, estupro, pilhagem, genocídio e etnocídio, os povos
indígenas assistem, atônitos, ao golpe mais brutal que poderia desenhar-se: em
uma cruzada neopentecostal (de fins eleitoreiros), Jair Bolsonaro, declarado
defensor da tortura e da ditadura militar, é eleito e aclamado pelo povo
brasileiro, declarando aberta e publicamente que, no que dependesse dele, em
sua gestão, não será demarcado sequer um milímetro de terras indígenas
(pesquisem por “Nem um centímetro a mais para terras indígenas, diz Bolsonaro”,
reportagem publicada pelo Amazônia Org em fevereiro de 2018).
Fortemente apoiado
pela coalizão ruralista e evangélica, Bolsonaro tem declarado publicamente que
seus planos para os índios não são nada além de integrá-los: uma vez mais a
Amazônia revira-se em seu majestoso leito ante delírios psudo-nacionalistas de
militares que resgatam do lixo o pérfido slogam “integrar para não entregar”.
Articulando os
valores neopentecostais da sociedade brasileira a um discurso na forma
anti-corrupção, Bolsonaro sobe ao poder pelas mãos do povo brasileiro, por
vossas mãos, por vós delegado, por vós empoderado com vossa carta branca, para
colocar em prática um Plano de Aceleração do Genocídio: liberar terras
indígenas para arrendamento e mineração, bloquear totalmente mais demarcações,
extinguir Terras Indígenas, Territórios Quilombolas e Unidades de Conservação,
propagando que “aquecimento global é uma trama marxista” e que entregar a
sociobiodiversidade brasileira aos estrangeiros (veja sobre isso o caso da
Renca e sua relação com a soberania nacional (conforme explico em “Você está
implicado, e não vai bamburrar, texto de minha autoria publicado também neste
blog), em nome da soberania nacional, é o plano de governo.
Em suas mais
recentes declarações, Bolsonaro tem deixado claro que seu projeto é
potencializar e acelerar o genocídio e o etnocídio. Cooptar os índios,
convertê-los em mão de obra barata, desqualificada, faminta e periférica, num
cenário onde direitos trabalhistas são implodidos, a fim de permitir a
mineração e o desmatamento, em suma, genocídio e etnocídio como políticas
públicas e programa de governo declarado. Declara pública e abertamente que seu projeto
de governo consistirá em abrir as terras indígenas que ainda restaram à
exploração (pesquisem por “Bolsonaro defende exploração de Raposa Serra do Sol”,
reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo em dezembro deste ano) e aciona, para justificar seu projeto, de
maneira declarada, os valores que subjazem à atuação etnocida do Estado com as
políticas públicas. Em resumo, se antes o etnocídio era uma política de Estado
velada, ele agora é um plano de governo: de ilegal, trabalhar-se-á para
legalizá-lo.
Declarando que
índios estão como animais em zoológicos em suas terras indígenas, o facínora,
para quem quiser ouvir, que pretende aniquilar os povos indígenas em seus
corpos e, sobretudo, em sua diferença. Mas, se recordais do que aqui eu já
disse quanto à diferença como base do Estado democrático de direito,
lembrar-vos-ão de que não são somente os povos indígenas que têm, com isso,
seus direitos suplantados, uma vez que, como já demonstrei em “De como sem
respeitar os índios...” o direito à diferença, principio básico de qualquer
Estado democrático de direito, é um direito vosso: mesmo que não indígenas,
dependeis de um Estado que respeite a diferença pois, sem isso, vossa própria
humanidade é desrespeitada.
Para quem ainda
resta dúvida, as movimentações de Bolsonaro no sentido de promover uma devassa
na Funai, endossando os ideais mais iníquos da PEC 215, e passando a Funai para
a mão dos ruralistas, deixam claro a que vem este governo. Num nítido esforço
em promover dissonância cognitiva no melhor estilo Bannon, Bolsonaro estuda
movimentações bombásticas e depois retrocede para, num terceiro momento,
coloca-las em prática à revelia da participação popular, mas o que vale, aqui,
são seus movimentos: mais do que ideias ou ensaios, são declarações de
intenção. Uma declaração de chefe do executivo a favor do genocídio e do
etnocídio, travestida dos valores mais genocidas e etnocidas da “integração do
índio à comunhão nacional.”
Levando-se em
conta, portanto, seus movimentos como uma declaração de intenções ou, mais
precisamente, uma declaração de guerra contra os povos indígenas, Bolsonaro
ainda comete a desfaçatez de convocar uma pastora evangélica envolvida com uma
ONG condenada pela prática de etnocídio pelo MPF para assumir a pasta que se
encarregará da Funai e da questão indígena. Declaração mais pública,
inquestionável e cristalina, de que se trata de um governo assumidamente
genocida e etnocida não há.
Tudo isso em vosso
nome. Enriquecer os mais ricos, concentrando cada vez mais terras nas mãos de
cada vez menos gente, permitir a exploração de recursos naturais como madeira e
minério por corporações estrangeiras (o caso da Renca é ilustrativo: pesquisem
por reportagem publicada pela BBC Brasil sobre o anúncio feito pelo então ministro
de Minas e Energia do governo Temer, em 2017, de que a Renca seria extinta, à
mineradoras canadenses 5 meses antes dos brasileiros saberem), reduzindo a
carga tributária, flexibilizando totalmente a legislação e, portanto, a
fiscalização, a fim de possibilitar, às custas da morte corporal e espiritual
dos povos indígenas e tradicionais, o enriquecimento de um punhado de
brasileiros e, pior, de um punhado de estrangeiros: tudo isso em nome da
soberania nacional.
Praticar o
genocídio e o etnocídio contra o próprio brasileiro, beneficiando pouquíssimos,
sobretudo estrangeiros (pesquisem pela Coluna de Lúcio Vaz na Gazeta do Povo,
intitulada “Porteira aberta: estrangeiros poderão comprar terras à vontade no
Brasil”, publicada em 12 de maio de 2017) em nome da soberania nacional. O
assassínio e a pilhagem dos recursos e patrimônio públicos, como o são a sócio
e a biodiversidade brasileira, em benefício de uns poucos: a isso chama-se
corrupção, e, ao contrário de soberania nacional, deve chamar-se crime de
lesa-pátria.
Para quem duvida,
basta olhar para a indicação da pastora Damares Alves, fundadora da instituição
e Movimento Atini - Voz Pela Vida, uma organização que se apresenta com a
missão de “promover a conscientização e a sensibilização da sociedade sobre a
questão do infanticídio de crianças indígenas”. Segundo reportagem do jornal
Estado de São Paulo, em 2015, o MPF-DF entrou com uma acao civil publica contra
a ONG, que realizara um vergonhoso filme falso onde uma criança era enterrada
viva, criminalizando a cultura dos povos indígenas por meio de um filme falso
em que o enterro, chocante, foi encenado. A acao civil publica foi julgada pela
Justiça Federal que, considerando procedente o pedido, condenou a ONG perversa
à pagar uma multa de 1 milhão de reais (para mais informações, consultem o
portal do jornal sob o título “Ong de ministra que comandará Funai foi
denunciada por discriminação contra índios”).
Inequívoca e
declaradamente genocida e etnocida, eis o governo que assume, por vossas mãos,
o poder em janeiro. Tudo isso em vosso nome. Lembrando que o presidente da
república, senadores e deputados são representantes do povo, por vós eleito, o
que configurará, perante o Tribunal da História, que eles serão os capangas e
vós, seus eleitores, os mandantes deste hediondo e bárbaro crime. Se sois
verdadeiramente cristãos, como alegais, ponde a mão em vossas consciências,
pois se o mal triunfa quando cidadãos de bem se omitem, ele ulula quando estes
o apoiam e sustentam. Há sangue em vossas mãos, e a História não vos perdoará.
Bruno Walter Caporrino
Manaus, dezembro de 2018
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