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terça-feira, 21 de maio de 2019

Nos olhos dos outros - Bruno Walter Caporrino


Nos olhos dos outros
Bruno Walter Caporrino


As ruas estavam tomadas por toda sorte de dejetos multicoloridos quando Hans desceu do taxi. A aurora se anunciava timidamente pelas frestas deixadas pelos arranha-céus, coriscando, lá e cá, nas janelas. Varando a densa e azulada névoa que fedia a pólvora queimada de rojões, os raios de sol incidiam sobre o fractal vítreo dos prédios e iluminavam pontos específicos do panorama que Hans passou a contemplar entre extasiado e aflito: montanhas de latinhas de cerveja, garrafas de cachaça, adereços feitos na China, cada qual mais berrante, imiscuíam-se aos ébrios largados nas sarjetas enquanto zumbis vagavam à cata de metal.

Hans fora informado de que esta não era a melhor época para visitar a Taliãolândia: o carvanal, a apoteótica e gigantesca festa popular que parava o país, acontecia bem naquela semana. Formalmente, pois Hans averiguara que em Taliãolândia todos os dias era carvanal, mas que apenas naquela época, especificamente, o Governo dava autorização para que ocorresse plenamente e a bandeiras e bragas desbragadas.

Um morador de rua ou talvez engenheiro ou cirurgião – àquela altura da quinta feira cinzenta era difícil saber a diferença – esgueirou-se sorrateiramente por entre suas pernas, revolvendo uma miríade de dejetos a gritar por seu celular. “Fui roubado, não acredito!” sentou-se, atônito, as mãos à cabeça e o olhar desnorteado de tão embriagado. Tampando o sobrolho com as mãos, Hans achou por bem carregar sua valise para o hotel.

---- Primeira vez na Taliãolândia, senhor? Perguntou, bocejando, o recepcionista.

Quando Hans ia responder, deu-se conta de que sua mala já não mais estava a seus pés, onde havia deixado: “sim, e talvez a última”, ainda pensou em responder, contendo-se diante da hipótese de que quem a carregada pudesse ter sido o encarregado do hotel. Quando o recepcionista jogou as chaves no balcão, gritando “234, segundo andar” enquanto subia as calças pelo cinto, acomodando a barriga exatamente por cima dele, Hans se deu conta de que teria que passar a semana no país sem nenhuma roupa além daquela com que chegara: a valise já havia sido furtada.

A viagem de Hans à Taliãolândia mal pôde ser planejada: jornalista renomado, especializado em cobrir com perfeição grandes furos políticos, Hans comprou as passagens assim que soube que o candidato Ricardo Walter havia ganho o pleito. Walter era um outsider puro sangue: praticamente desconhecido, mesmo na Taliãolândia, pelos melhores e mais informados lobistas, jornalistas, juristas, etc, fez uma campanha rápida e simples, derrotando de maneira inacreditável o candidato que há meses seguidos estava melhor cotado para ganhar o pleito. 

Seu adversário, Jairo Fecalsaro era um parlapatão de extrema-direita, ex-oficial do exército expulso da corporação depois de inúmeros atentados que, depois de comprovou, visavam aumentar seus rendimentos, passara 27 anos no Congresso como Deputado sem propor ou aprovar projeto algum. Facalsaro era um brucutu que poder-se-ia tomar por um estereótipo do senhor de engenho rural que chicoteia e estupra por hobby ao amanhecer: usava botinas de elástico e representava o que de mais abjeto se poderia extrair de um verdadeiro senhor rural ignorante: violento, cruel, ganancioso e, por isso mesmo, extremamente popular.


Hans sabia, bem formado que era, que os habitantes de Taliãolândia amavam tiranos: todos os cientistas políticos da Taliãolândia eram unânimes em concordar que, gentil e cordial, o habitante da Taliãolândia não negava o passado brutal que inaugurou aquela colônia de presidiários e escravos onde se praticava estupro e mutilações para divertimento da elite colonial até muito pouco tempo atrás. Olho por olho, dente por dente, o taliãolandês era apaixonado pela vendeta: lançando mão de um repertório tribal que infelizmente fora deturpado pelo neopentecostalismo, o taliãolandês só entendia uma língua: a da vingança.

Hans sabia disso, e havia inclusive esboçado alguns ensaios sobre o rico mas ao mesmo tempo miserável país que, despontando entre os 6 países mais ricos do mundo, montava no dinheiro que obtinha explorando de maneira voraz e assassina seus recursos naturais enquanto 90% da população vivia com menos de cem monarcos (a moeda local) por mês.

Seis homens eram proprietários de mais da metade das terras e dos recursos da Taliãolândia, e Hans os havia entrevistado diversas vezes. Desta feita, contudo, preferia focar sua atenção nos taliãolandeses: ouvir o clamor das ruas e compreender os efeitos da inusitada e inédita eleição de Ricardo Walter.

---- O que eu acho dessa proposta dele? Sei não, rapaiz. Nós votêmo mais foi porque se não vota o dono da loja ia ponhá nós na rua. Se ele mandou nós votá num candidato? Sim! Passou o ano todo falando que se nós não votasse o Fecalsaro ia cortar nossas mão, igual fizéro com nossos avô tudo - disse um morador da Taliãolândia numa das primeiras entrevistas.

Hans tinha ideia disso tudo. Mas... ver, com os próprios olhos, era diferente. Pessoas brigando por frutas estragadas, aos montes, num país que era o sexto mais rico do mundo, era muito difícil de compreender. Mais difícil ainda estava sendo entender como a população, tão explorada, apoiava Fecalsaro que declarava ódio à negros, pardos, nativos, mulheres, grávidas, idosos, enfim, todos que não se enquadrassem em seu arquétipo nazista de raça pura. Mas quem se assustava com o apoio popular a Fecalsaro precisava conhecer a historia da Taliãolândia: o nome da colônia advinha de Talião, um dos déspotas preferidos pelos pastores que foram encarregados de, jogando fora o Novo Testamento, criar todo o ideário, a simbologia, os valores da “Pátria de Talião”.

A população, como é de se esperar, passara séculos sendo currada e chicoteada em praça pública pelos poucos senhores que eram donos das terras, donos deles, das gentes, donos das águas, e que eram irmãos dos pastores, irmãos dos juízes, primos dos delegados, tios dos jornalistas... quem “cresceu pulando cadáveres calcinados só conhece cadáveres”, pensava Hans enquanto atravessava uma praça entre a multidão que corria para abrigar-se de um tiroteio promovido pela Polícia (que dominava o tráfico de cocaína) e os milicitares, que dominava o tráfico de armas e de maconha. A disputa, Hans apurara, era pelo domínio das linhas de ônibus.

A diferença entre os policiais, agentes do Governo, e os milicitares consistia apenas em que os policiais traficavam mas eram funcionários do governo e do Judiciário, enquanto os milicitares eram os mesmos policiais, unidos aos traficantes não policiais, que traficavam nos horários de folga. Hans conheceu dois policiais que, no meio da entrevista, tiraram a farda, puseram balaclavas e assumiram outro discurso para o gravador. Boquiaberto, perguntou o que acontecia: “nada, é que deu 4 hora, aí acaba nosso turno na corporação, daí nós vira milicitar”.

A brutalidade dos milicitares era combatida pelas forças policiais com... brutalidade. E em meio ao holocausto urbano, Fecalsaro e seu discurso de ódio contra a roubalheira e corrupção que eram o pilar, o marco zero da história da Taliãolândia, fez com que chegasse a mais de 65% e intenções de votos naquela eleição.

Mas foi então que Ricardo Walter apareceu, com sua fala mansa, jeito simples e modos polidos. Articulado, versava sobre a Legislação Federativa com seriedade mas sem afetação, e acabou conquistando as massas ao lançar sua proposta em pleno debate eleitoral ao qual Fecalsaro sequer apareceu: a proposta de Ricardo Walter irritava tanto Fecalsaro quanto Getúlio Cícero da Silva, o candidato que se dizia de esquerda, e que resgatava o caudilhismo latino-americano de tal modo que Evita Perón verteria lágrimas.

A proposta de Ricardo Walter era, em linhas muito gerais, o que ele mesmo denominava “democracia radical”. Ricardo Walter propôs que, se eleito, faria com que todos os moradores da Taliãolândia fossem à Justiça assinar o que chamou de Contrato Social. O Contrato Social era basicamente a Constituição, elaborada de modo a firmar um contrato no qual o governo e os cidadãos se comprometiam mutuamente, contraindo, ambas as partes, direitos e obrigações. Pelo Contrato, os cidadãos eram obrigados a matricular seus filhos na escola pública, que o governo era obrigado a oferecer, e assim por diante.

Mas o que gerou polvorosa entre os habitantes foi o segundo componente da proposta de Ricardo Walter: ele prometia que, assim que eleito, todos os dados das redes sociais dos moradores de Taliãolândia, que estavam absoluta, radical e mesmo violentamente divididos nas eleições entre Getúlio Cícero e Fecalsaro, seriam incorporados a fim de levantar um perfil dos cidadãos e encaixá-los em “planos de cidadania”.

Segundo a proposta, feita diante de um país radicalmente dividido e convulsionado às vésperas da eleição mais disputada e acirrada de sua história, os cidadãos seriam agrupados em função de suas opiniões sobre assuntos fundamentais que operavam essa divisão do país, tais como a tortura, a ditadura (incluindo a censura e a perda de direitos de participação), aborto, prisão sem trânsito em julgado, direito de constituir advogado ou não, direito das forças policiais atirarem contra cidadãos mesmo sem instaurar inquérito, averiguar provas, instruir processo: metade da população de Taliãolândia era a favor, e metade violentamente contra todos os princípios de um Estado democrático de direito.

A discussão em torno de aspectos tão radicalmente fundamentais havia sido obliterada pelo partidarismo típico dos taliãolandeses: há muito que, para esta analfabeta e dançante população, política eleitoral e futebol eram a mesmíssima coisa, de modo que possuir e expor opinião política consistia em mais uma vertente do jogo de futebol, que implica em massacrar a torcida do time adversário não por motivos lógicos e racionais mas... porque torce para o time adversário.

Assim, a proposta de Ricardo Walter sacudiu o cenário: concretamente, a plataforma política dele previa que, assim que eleito, os cidadãos iriam aos cartórios assinar seus contratos. Mas os termos dos contratos estariam dados pelas manifestações pregressas dos cidadãos: aqueles que, antes das eleições, haviam manifestado publicamente, nas redes sociais, que eram a favor da pena de morte, por exemplo, assinariam um contrato no qual aceitavam viver em um país onde poderiam ser sumariamente assassinados por policiais se, de repente, esses policiais achassem a bunda da esposa desse cidadão atraente e estivessem interessados em fuzilá-lo para estupra-la em alguma viela escura e depois inserir papelotes de cocaína no porta-luvas de seu carro.

Já aqueles que manifestaram nas redes sociais serem a favor do Estado democrático de direito, teriam o direito a constituir advogados, à ampla defesa, e a só serem efetivamente condenados se, ao cabo do devido processo legal, ficasse provado seu crime.

Segundo a proposta de Ricardo Wagner, os dados deveriam ser colhidos de maneira retroativa, a fim de assegurar que os cidadãos, que defendiam tão apaixonadamente suas posições antes das eleições, não mudassem de ideia quando o sistema fosse de fato posto a funcionar. A proposta previa ademais, apurara Hans, que ao assinar os contratos os cidadãos receberiam novos documentos: verde para aqueles que eram a favor do Estado democrático de direito, preto para aqueles que eram contra direitos e garantias fundamentais. Estes últimos não teriam direito a um sistema público de saúde e à aposentadoria, por exemplo, mas Hans apurara que a população só se dera conta disso realmente quando do dia da posse.

Hans estava empolgado. Era o dia da posse de Ricardo Walter e ele conseguira um espaço no camarote reservado à imprensa. Todos aguardavam o início da cerimônia quando, de ambos os lados da ampla avenida Galiléia, os dois carros apontaram: de um lado, o atual presidente da Taliãolândia, Miguel Tâmisa, que deveria caminhar até encontrar-se com Ricardo Walter e passar-lhe a faixa presidencial.

Do outro lado, Walter desponta acenando. Extasiados, os jornalistas e observadores internacionais começam a transmitir ao vivo este momento inédito em que um novo regime de governo, tão radical, será empossado, fazendo cada qual suas inúmeras considerações: funcionará? Saberão ceder à ele aqueles que mais sofrerão, ou seja, aqueles que defenderam o fim da Previdência, do sistema de saúde, da democracia?

Tâmisa caminha a passos largos, com as mãos atrás das costas, para no meio da avenida Galiléia e encara Walter, que ainda precisa dar alguns passos para encontra-lo. Mas, súbito, quando Ricardo Walter se prepara para dar os últimos passos ao encontro da Faixa Presidencial, um grupo de militares o cerca, o golpeia, se joga sobre ele e o retira de cena, entre uivos e aplausos da multidão da Taliãolândia, ainda dividida.

----- Nós não assinamos contrato algum, disse Tâmisa à atordoada imprensa, enquanto passava a faixa a Fecalsaro. “A proposta de contrato era do Ricardo Walter, mas, como ele era subversivo pedófilo comunista maconheiro, nós o prendemos, em nome da Pátria e de Deus, e reestabelecemos a ordem”.

---- Mas, o que é a ordem?? Gritou Hans, indignado, sem poder conter-se e assustando-se, inclusive.

---- A ordem, meu filho, é quando quem pode manda e obedece quem tem juízo. Lei é para bater nos outros, não para fazer justiça, declarou Tâmisa, ovacionado pela multidão.

Deprimido, Hans voltava ao aeroporto quando deparou-se com um grupo de manifestantes. Abaixou os vidros do carro, contra a vontade do taxista, que mal teve tempo de gritar que não o fizesse. Arrancado para fora do carro, Hans teve todos seus pertences furtados pela massa que o pisoteou e machucou bastante.

Depois de arrastar-se para o carro novamente, desesperado, num esgar de choro perguntou ao motorista: “quem era aquela gente? Me roubaram tudo o que eu tinha! Me bateram”.

---- Manifestantes contra a corrupção senhor, respondeu, palitando os dentes, o motorista.

Na Taliãolândia, aprendera Hans da pior maneira possível, a única lei é a de Gerson: levar vantagem em tudo, da qual decorre o artigo segundo: aos amigos, tudo! Aos inimigos, a lei.

Bruno Walter Caporrino
Manaus, outubro de 2018
(Revisado em fevereiro de 2019)

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Natureza morta: isso não é uma alegoria


Natureza morta: isso não é uma alegoria

Consideraçoes sobre a exposição “Deriva – ambiente surreal” do artista plástico amazonense Cássio José da Silva
Bruno Walter Caporrino

Muito se costuma falar acerca do termo surreal. Cunhado por André Breton (1896-1966) em 1924, o termo simboliza o movimento estético e filosófico que transpõe para o campo das artes plásticas o que de mais aprimorado a psicanálise promovia no campo das reflexões acerca do inconsciente. O movimento espraiou-se por manifestações na literatura, fotografia, cinema e, claro, artes plásticas.
O teor de incoerência impingido às peças de Salvador Dalí (1904 - 1989) e Pablo Picasso (1881-1973), por exemplo, permitiu o câmbio entre os estatutos de verdade propagados pelos regimes de exceção e totalitários que tomavam o ocidente à época bem como a promoção da reflexão humanística a respeito de seu devir face às atrocidades que então se cometia.
Surreal acabou virando um conceito difundido e, portanto, acabou perdendo parte de seu poder semântico e filosófico. Mas não é o caso do emprego que lhe dá o excelente artista plástico Cássio José da Silva. Nascido em Canutama, interior do estado do Amazonas, o artista mora em Manaus e se divide entre o árduo ganha-pão de pedreiro, que lhe toma quase todo o tempo disponível e a pintura.
Tive a honra de conversar detidamente com este homem esplêndido durante a vernissage de sua contundente exposição, no dia 18 de maio. Sediada na Casa das Artes (Largo de São Sebastião, Manaus) a exposição foi sabiamente intitulada Deriva – Ambiente surreal e apresenta dez (das sonhadas e já planejadas 250) telas do pintor.
Cássio José da Silva pinta com tinta acrílica (sobre telas que ele mesmo confecciona, assim como parte das molduras) como quem pensa: e posso afirmar sem adulação alguma que se trata de um excelente e afiado pensador.
A proposta dessas dez telas é, estética mas sobretudo epistemologicamente, política. Engana-se quem pensa que política consiste nos comezinhos e mormente espúrios movimentos de camarilha que ocorrem no oceano do sistema partidário; engana-se quem pensa que política é apenas uma seção da vida humana, dissociada de tudo o mais, e engana-se ainda mais quem pensa que política seria apenas aquele rebuliço que assola nossa ameaçada democracia de quatro em quatro anos: por política resgato, aqui, seu sentido primevo e original, qual seja, a arte de viver na polis, a arte de viver em sociedade, equacionando conflitos, tomando decisões e assumindo responsabilidade civil por elas. Cidadania, se preferirem.
Em sua exposição, Cássio José da Silva nos brinda com fragmentos, ou melhor, estilhaços, de um mundo que se esfacela. Vaticinante, sua arte nos solapa o cômodo apoio (muleta?) fornecido pelas (meias)verdades tão propagadas sobre meio-ambiente, sustentabilidade e Amazônia ao mesmo tempo em que retoma, com a fúria e o fôlego necessários, a boa, velha e infelizmente esquecida discussão acerca da função social da arte. E isso me fez respeitá-lo e admirar sua arte de uma maneira incrível: Cássio José tem uma mensagem, e esta mensagem é muito bem fundamentada, solapando alegorias. Por isso me decidi a escrever sobre sua obra: porque essa mensagem tem que ser pontuada, frisada, alardeada.
Se desejam uma resenha sobre a exposição, feita esta introdução, aqui a temos. Sabemos que Cássio José da Silva é um amazonense que detém, sobre a Amazônia e sobre o Amazonas, vasto conhecimento – de causa. Sabemos que é pedreiro de profissão e que se dedica à arte como se dela não pudesse desguiar-se (tal qual todo artista vocacionado ao sucesso). Sabemos, ademais, que é autodidata.
Associando todos esses aspectos, qualquer leitor de fora da Amazônia faz, sozinho, os cálculos rotulatórios inconscientes, quase que automaticamente: “trata-se de um artista plástico amazonense e autodidata. Logo, nos apresentará cenas prosaicas e coloridas da vida ribeirinha, com maior ou menor apelo aos traços indígenas, mais ou menos estereotipados, juntamente com alguns exercícios de retratação pictórica de doces paisagens com paranás e bucólicas casinhotas flutuantes. Ou, se não isso, talvez se arrisque a abstrair um pouco do pictorialismo e produza algumas alegorias nas quais um grande pirarucu enrola-se (dependendo da habilidade representativa do artista) nas pernas de um caboclo estereotipado com chapéu de palha enquanto este o zagaia. Talvez, algum arroubo de abstração, brincadeiras com formas geométricas, e, bem, isso é tudo”.
Ledo engano, caras leitores e caros leitores. O que Cássio José da Silva nos traz é arte e, portanto, questionamento. Não o questionamento vazio e raso das gritas diuturnas que ecoam por galerias mundo afora, mas sim um questionamento muito embasado acerca do que são Amazônia, sustentabilidade e, por isso mesmo, política, atualmente. Cássio José apresenta questões. E essa é a função social da arte.
As telas de Deriva – ambiente surreal coadunam-se. Dialogam de maneira harmônica entre si, perfazendo um conjunto coeso de narrativas ou criptogramas: todas as telas conversam entre si de modo que, percorrendo a sala, pode-se construir um conto ou crônica ao interpretar cada uma e ir re-fazendo a ordem, como no ousado romance O jogo da amarelinha do argentino Julio Cortázar (1914-1984).
As telas perfazem um conjunto coeso entre forma e função, mostrando que o artista leu Le Corbusier com a mente, não com os olhos, pois em sua arte a forma segue a função: em Deriva a mensagem motiva a perspectiva, o arranjo dos elementos em cena está submetido ao roteiro e este é submetido à moral que o artista deseja impingir às telas. Como deve ser.
A poética de Cássio José da Silva impressiona porque não é vã como as rememorações para-inglês-ver que, infelizmente, solapam a produção artística da, na, pela, sobre e para a Amazônia, e cuido que esse foi o aspecto de sua obra que mais me apaixonou. Silva rompe os paradigmas alegóricos sobre a Amazônia, que agrilhoam tantos e tantos artistas que a ela se dedicam (e aí me incluo, por um bom tempo).
Me recordo, respeitosamente, de trechos da respeitável obra de Astrid Cabral (1936), Herculano Marcos Inglez de Souza (1853-1918) e de João Nogueira da Mata (1909-1991) sempre que reflito a esse respeito: são bons exemplos desta tendência, que cuido racional e afetiva, em produzir uma literatura sobre a Amazônia só porque é produzida na Amazônia, mas de maneira quase que obrigatória. Nascestes na Amazônia? Deves escrever ou pintar sobre ela, pois.
Recordo de conhecidos que se mostraram decepcionados quando Miltom Hatoum lançou o primeiro livro de sua trilogia, o Noite de espera. “Então a história se passa no sudeste e em Brasília?”, ouvi muitas pessoas lamentarem, com visível esgar de decepção que traía o enunciado oculto: “se ele é de Manaus, como que escreve sobre algo que se passa em Brasília e não na Amazônia?”.
Essa “obrigatoriedade” pode advir da confluência de dois fatores: de um lado, a percepção de que a Amazônia representa, de seu mais concreto cauxi nas roupas brancas ao mais abstrato tropos epistêmico da alteridade em sua manifestação máxima, em uma grande e perturbadora incógnita, um universo desconhecido e prenhe de significados, significância: uma floresta de signos.
Por outro lado, há ainda o fato de que estando em províncias tão afastadas dos centros produtores e consumidores de arte, como Rio de Janeiro e, obviamente, a Europa, tais artistas se viram, historicamente, obrigados a lançar mão do trunfo que é ser amazônida, estar na Amazônia, gozar de experiencias e material únicos, inéditos, que certamente encontram no público boa clientela e nas editoras interesse.
Compreensível, este movimento (pelo qual eu mesmo passei, tão logo pude realizar o sonho tão ansiado de cá perder-me para só então me achar) acaba, contudo, traindo a Amazônia e interpondo uma contradição em termos, porque mormente se produz sobre a Amazônia uma arte que toma a Amazônia de verdade, real, concreta, pelo estereótipo que dela fazem justamente aqueles que nada dela conhecem. Gato por lebre ou, pior, gato por maracajá, nos deixamos todos enlear com menor ou maior grau pelo assédio alegórico, como se, por sermos brasileiros, nos sentíssemos obrigados a só compor sambas e só cozinhar feijoadas, já que é isso que os não-brasileiros intuem que façamos o tempo todo.
O resultado é uma literatura prenhe de contos e crônicas eivados de “lendas e mitos”, infinitas versões sobre mitos indígenas deturpados (porque desatrelados da matriz epistemológica que os engendra e que seu sentido, como todo mito, é instanciar) e uma arte plástica pictórica e epistemologicamente comprometida em reproduzir a alegoria que os que não estão na Amazônia desejam ver sobre ela produzida. Botos estando para feijoadas assim como... caipirinha demais.
Daí os quadros com mulheres indígenas sensualizadas, com seios e redondas coxas à mostra, em poses sensuais, banhando-se ao luar, que assolam as peixarias para turistas. Essa produção pode ter muito valor se tomada não como narrativa, mas como objeto. E é a isso que tenho me dedicado: em investigar como a produção artística sobre a Amazônia reitera pressupostos muito comodamente assentados no imaginário popular sobre a Amazônia e acaba refém, por conseguinte, de uma reprodução de artefatos que realizem, personifiquem, a cada obra, essa suíte de signos pela epistemologia ocidental imposta à Amazônia.
Há aqui, em meu percurso, alguns pressupostos. O primeiro deles é que “a Amazônia” consiste em uma abstração, ela mesma artefato, produzida no plano do discurso pelos agentes que operam o idioma epistemológico ocidental. Grosso modo, é como se o pensamento ocidental, ordenado como é, fornecesse aos indivíduos algoritmos pré-formatados com os quais pensar a Amazônia.
Algo como: “Amazônia = exótico, natureza, índios, rios, peixes, floresta, água, caboclo”. “Natureza = lenda, mito, índio, floresta, recursos, riqueza, fragilidade, inferior, proteção, preservação, involuído, primitivo, inculto, simples, domesticável, cru”. “Cultura = ciência, conhecimento, arte, evolução, evoluído, superior, religião, pensamento, reflexão, tecnologia, progresso, avanço, desenvolvimento, sabedoria”. Esses conjuntos de signos e valores, orquestrados como são pelas feições do regime de conhecimento ocidental, gravitam em torno da clássica e, infelizmente ainda não superada, polaridade que é o mito fundador da episteme moderna: natureza versus cultura ou, hierarquicamente, cultura versus natureza (e a ordem dos fatores é, aqui, fundamental).
Assim como uma língua, estes signos e valores se inter-relacionam de maneira sistêmica, de modo que o discurso consiste em manifestações peculiares destas possibilidades todas. Portanto, muito da arte que se produz na ou sobre a Amazônia fica refém deste campo simbólico e, infelizmente, até certo tempo, desta polaridade cultura versus natureza. Pensemos a arte como discurso, narrativa, e as peças como manifestações dos cálculos que os artífices fazem com os termos fornecidos pelo sistema.
Observando a grande narrativa acerca dos povos ameríndios, por exemplo, percebe-se que eram ora vistos como puros descendentes de Deus vivendo em convívio harmônico num Éden tardio e, portanto, tidos como puros e sábios habitantes da floresta dotados de sabedoria e espiritualidades ancestrais; ora vistos como aberrações, fósseis vivos, primitivos incultos e selvagens a quem se deve ou civilizar, levando o progresso, ou exterminar, os habitantes amazônidas são, até hoje, jogados para lá e para cá entre estes tropos. À sua total revelia.
E não foi diferente no campo (privilegiado para tal análise) das artes plásticas e da literatura. Como mencionei, a obrigatoriedade em produzir uma arte sobre a Amazônia ainda foi associada ao tributo adicional de realizar peças artísticas que funcionassem como discursos que reiteravam mitos sobre a Amazônia.
A produção artística que se ocupou da Amazônia esteve e ainda está, infelizmente, muito presa à alegoria. James Clifford, em seu sublime A autoridade etnográfica (Clifford, 2008) nos brinda com a percepção de que alegoria provém do grego allos (“outro”) + agoreuein (falar). A alegoria seria uma espécie de representação que interpreta a si mesma em função da interpretação que se faz do Outro ou, melhor, de como os outros nos interpretam. Estando em um nível acima da interpretação, alegorias consistiriam num manejo quase inconsciente dos signos que o sistema fornece a uma sociedade, espaço privilegiado para observarmos como cada grupo se observa a si mesmo sob a ótica que faz dos outros.
Nesse sentido, é com grande pesar no coração que me sinto obrigado a publicizar um enunciado que sempre me vem à mente quando vejo algumas coisas que se produz na e a partir da Amazônia: como num grande festival de Parintins, parece que a produção amazonense assume para si mesma o papel de versar, sobre si mesma, para os outros, e segundo os termos, critérios, parâmetros e signos que os outros têm sobre nós.
O Nós, Amazônia, nas artes, acaba perpassando por um exercício quase antropofágico (e aí é muito rico) de deglutição do real pela boca sedenta de alteridades pre-formatadas dos Outros. Amazônia, Amazônia, ecoam as toadas cantadas por belas morenas em sumários trajes, ornadas por plumas coloridas, numa exaltação de uma semana da mesma amazoneidade que sua vida fora do evento do Boi consiste em negar: morar na beira é coisa de índio, índio é tudo primitivo, não é porque sou manauara que seja primitiva e analfabeta como esses índios...
Discurso e prática se negam complementarmente no campo desta grande ficção que é produto da narrativa da identidade: a depender do contexto, os atores manejam positivamente as alegorias que os outros entalham sobre amazoneidade. Durante o Boi, a alegoria é engendrada de maneira eufórica: assumir para si a identidade amazônida é motivo de orgulho, exceto quando um grupo de investidores japoneses que visita a Zona Franca interessado em investir pergunta a esse mesmo secretário de infra-estrutura, responsável tanto pelo Boi quanto pela Zona Franca, se seus antepassados são indígenas: “não não, sou civilizado, rapaz. Está achando que somos tudo bugre? A gente sabe fazer fábricas aqui, ninguém é índio não”. E a alegoria solapa e oblitera qualquer reflexão mais profunda. Mas é assim que o mecanismo identidade funciona mesmo, em todo canto.
O fato é que uma grande toada, sobre fantasias plumárias espalhafatosas e carros alegóricos, permeia a nossa produção e, por favor, não ousem suspeitar que para um antropólogo comparar arte ao festival de Boi Bumbá de Parintins seja um exercício de crítica à arte (isso pressuporia que o festival não é arte, e não é o caso). Ser índio, pode: um determinado estereótipo, e apenas em determinadas ocasiões. Pensar como índio, fazer política como índio, produzir ciência e pensamento como índio: isso não.
Apenas, minha tese é que a produção artística da Amazônia é refém, em grande parte, de uma alegoria que consiste em uma discursividade reflexiva muito rica e, sobretudo, muito instigante quanto pensada sob a perspectiva da antropofagia ameríndia e do perspectivismo ameríndio: predar o Outro implica em transmutar de perspectiva ao mesmo tempo em que, todo aquele que preda está sujeito a deixar-se predar (ou seja, mudar de perspectiva). Ou seja, no universo ameríndio, Eu sempre é um Outro – todos os outros.
Isso é um problema quando falamos de artes plásticas e de literatura porque são práticas cuja função é produzir reflexão e crítica, pois em muitos casos essas peças como os infinitos contos “a lenda do boto”: escrever sobre o boto com seriedade, só Engrácio e Márcio Souza lograram, este último levando muito a sério o teor mitológico do material que lhe serve de matéria prima para a sua arte e, por isso mesmo, Arte.  
Os gigantes Márcio Souza, com seu surrealismo panfletário que se equilibra tão criticamente entre a crítica e o realismo fantástico, e Miltom Hatoum, chegaram à literatura amazonense para romper com este paradigma que intitulo “da obrigatoriedade” e da alegoria. A obra de Márcio Souza é um grande manifesto acerca da função social da arte e perfaz um repertório de ensaios sobre a história, a economia e, sobretudo, a sociologia amazônida como nenhuma outra, tratando a mitologia como ela deve realmente ser tratada por um artista: boto é bom para pensar, não para comer, já diria Lévi-Strauss.
Dito isso, Deriva – ambiente surreal de Cássio José da Silva consiste numa dessas belas e tão preciosas rasteiras epistemológicas nas alegorias “para inglês ver” que tanto esperamos: rompendo os cânones estéticos impostos historicamente à produção amazônida, Cássio José da Silva dá um nó nos meandros semânticos que os signos insistem em dar na mente de qualquer expectador de fora. Qualquer um que imagine telas com bucólicas casinhas e mulheres sensualizadas (Amazônia = natureza = fêmea = domável/violável/inoculável) quebra a cara diante de dez telas que contam com beleza brutal a saga da beleza amazônida em meio à brutalidade que a história da colonização lhe impõe desde o primeiro minuto.
Cássio nos mostra uma única alegoria: a do Progresso. Essa a alegoria-pesadelo que emana do fundo de toda sua narrativa. E é por isso que sua mensagem é tão preciosa e poderosa.
As telas de Cássio José da Silva versam sobre devastação, rapacidade. E resgatam o que de mais puro existia no movimento surrealista, dialogando com os termos por ele propostos por Breton: mais do que recorrer ao onírico, o movimento se detém em produzir narrativa sobre o trauma.
É de traumas, pois, que se ocupam os pincéis do artista. Hábil em seu manejo, dispensa apreciações sobre sua aptidão técnica: da escolha da palheta de cada peça à construção de texturas, luzes e sombras, da perspectiva sempre distorcida que sacode o olhar como se estivéssemos a bordo e à deriva.
No que tange à composição, essa liquidez da perspectiva é o que mais chama a atenção. Suas telas parecem ser construídas por alguém que enxerga o mundo com uma objetiva olho de peixe, o que tem a imensa vantagem de conferir às telas a preciosa inter-relação entre forma e função, pois tudo está em evidência ao mesmo tempo sempre nas suas telas. Em para quem leu Um peixe olhou para mim, de Stolze de Lima, essa metáfora se torna ainda mais pertinente. Um banzeiro semântico sacode o olhar que fica inquieto até que o mal estar se dispersa ao notarmos que a perspectiva está, na verdade, em vários lugares da tela ao mesmo tempo. Como bem deve ser na Amazônia ameríndia.
A palheta de cores flerta com um exercício de pictorialismo, não se sabe se por um apego ao concreto, da parte do pintor, ou pela necessidade de conferir ao discurso de cada tela o lastro com a realidade brutal e concreta (de cimento, pedras e pedregulhos que, com suas próprias mãos e com seu próprio suor, tão bem conhece por seu ofício de pedreiro).
Há sempre um lastro na realidade concreta, como na tela Sonhos e desilusões, em que um caboclo singra o Encontro das Águas, defrontando-se com a heterogeneidade dos dois mundos (branco, dos brancos, representado pelo Solimões; negro, dos índios e caboclos, representado pelo Negro), vestido com o signo-esteriótipo máximo do nacionalismo (a camisa da seleção brasileira de futebol masculino adulto), provavelmente deixando as beiras e comunidades rumo à cidade onde se propaga que a vida é tão melhor...

SONHOS E DESILUSÕES
Em busca de políticas públicas, este caboclo singra sozinho a tormenta provocada pelo encontro, desassistido por uma Justiça faminta e desestabilizada por um desequilíbrio das instituições do Estado democrático de direito: o prumo, ferramenta com que constrói o mundo de dia com o suor de seu rosto em prol de sua família, enquanto pedreiro, é colocado na tela a fim de mensurar como e o quão desaprumadas estão as instituições. Encontrará este pobre caboclo as políticas públicas prometidas e merecidas na cidade?
Mais do que isso: saberá ele que ao deixar sua floresta, sua casa e seus roçados, ele abandona sua soberania simbólica, cultural, espiritual, epistemológica, e ruma para a periferia da periferia da periferia da periferia do mundo dos outros? Novamente, as oposições natureza/cultura e desenvolvido/subdesenvolvido entram em cena: mas é aí que reside a robustez da proposta deste artista.
Mais do que retratar “lendas de boto” Cássio nos confronta com uma reorganização dos termos em seu discurso: e isso, senhoras e senhores, isso sim é Arte. Cássio José da Silva não retrata cenas bucólicas de uma Amazônia de mentirinha: produz discursividade, constrói uma narrativa no manejo muito consciente de imagens a fim de confrontar, por meio de sua composição, estas imagens de nosso inconsciente coletivo com o trauma do real, por ele tão conhecido em sua labuta cotidiana à cata do precioso sustento na selva de pedra.
A Amazônia real, brutal, contemporânea, emerge, então, desnuda e, então sim, fielmente retratada. Como eu disse, àqueles que esperavam cenas bucólicas que retratassem um alegórico “estado de natureza” nas telas deste pintor amazonense, são confrontados com uma narrativa que postula o surrealismo como plataforma e, assim, reverte o processo ao demonstrar que surreal é, na verdade, todo o trauma que é imposto às infinitas formas de vida que compõem a Amazônia.
Trauma. Na tela Indigesto, por exemplo, Cássio nos apresenta, novamente, um horizinte distorcido que confere fluidez e liquidez à narrativa, enquanto no centro da tela, que divide em quatro, representa os peixes que que sufocam com as toneladas de sacolas plásticas que são jogadas nos rios e igarapés pelos amazonenses durante sua sanha urbanizante rumo a um ideal de progresso e desenvolvimento que engendra aglomeração urbana, superpopulação e, por conseguinte, muito lixo. O urbano que emerge das águas, a princípio (primeiro plano) na forma de palafitas (que é como se morava nas beiras de Manaus no início da sanha urbanizadora), converte-se em prédios que, desaprumados, se amontam sobre sacos plásticos, sufocando os peixes.

INDIGESTO
Mas é em O resgate, por exemplo, que o surrealismo de Cássio José se realiza à perfeição. Como mencionei, o artista rompe da obrigatoriedade da alegoria (enquanto discurso sobre si mesmo feito para o Outro e em função de seus termos) e rompe com o paradigma do onírico: Amazônia é associada a pesadelo, trauma, lixo, esgoto, podridão e poluição. Na tela, uma ratazana e um urubu observam o declínio climático e a consequente aniquilação do humano que, só então percebe que converteu o planeta em uma lixeira. Apocalíptica, a cena é de uma distopia assombrosa: florestas calcinadas dividem espaço com chaminés que regurgitam negra fumaça em meio ao rios de esgoto. Em primeiro plano: plástico.

O RESGATE
No que tange à estética, as telas de Cássio José flertam muito com as mais conhecidas telas de Dalí, cujo Girafa em chamas de 1937 tornou-se maior expoente. Mas, reparando bem, percebemos que mesmo em Dalí fica claro como no rebojo do inconsciente o que existe é distopia: tempo, morte, falibilidade. O mesmo se dá, de maneira ainda mais incisiva com as telas de Cássio José.
Mas é com Pablo Picasso, Cândido Portinari e René Magritte que a arte de Cássio José melhor dialoga. A imensa contribuição de Cássio José está em mostrar que a Utopia de uma Amazônia imaculada e bucólica, que subsidia a mais pérfida narrativa, a do progresso e do desenvolvimento e, portanto, sua própria negação é, por isso mesmo, uma grande distopia.
Trazendo à tona a distopia provocada pela falência dos regimes ocidentais de relacionamento com o planeta por meio da utopia de um capitalismo que atrai retirantes aos milhões para os inchados e poluídos centros urbanos, novamente, a forma segue a função: o surreal em Cássio José não é a Amazônia – postulá-la como surreal é o alegórico clichê que se espera, aliás. Ao contrário, a sagacidade deste pensador que se vale de imagens para confrontar signos e produzir uma narrativa disruptiva está no fato de demonstrar que o surreal é, na verdade, o que nós fazemos dela no antropoceno.
Nesse sentido, a correlação mais coerente seria com a série de telas de Portinari de que é expoente Retirantes, de 1944. O flagelo da fome no nordeste, que se agrava com as duas secas, de 1932 e 1942 é provocado por um grande colapso climático. E muito pouco, muito pouco mesmo, se fala a respeito do quanto este colapso da seca foi provocado pela monocultura: exaurindo a terra num exercício contínuo, ininterrupto de estupro e violação, senhores de engenho e coronéis também flagelaram sociedades inteiras na grande e trágica crônica de etnocídio que é a história do Brasil.
As duas secas em questão se deram na vigência de Getúlio Vargas que, de modos diversos, apoiou com todos os recursos a exploração indiscriminada e predatória dos recursos naturais que engendraram tal colapso climático. O Departamento de Informação e Propaganda – DIP –  de Vargas encarregou-se de construir uma alegoria segundo a qual os retirantes seriam pobres coitados e a seca produto da agência divina.
Em Portinari, na série de telas em que a fome protagoniza a saga dos retirantes, é o trauma provocado por esse holocausto que toma a cena. Assim como em Cássio José: suas telas retratam de maneira, então sim extremamente pictórica, a distopia que nos assola. Em Nas profundezas da alma vemos como o solo gretado e a floresta calcinada ao fundo resultam do trauma que consiste em cindir mente e corpo humanos com o machado dourado da cobiça: o esqueleto que se agrilhoa à madeira morta tem o pescoço cindido num cenário de hecatombe provocado pela agência humana – assim como as secas do nordeste brasileiro, que provocaram o flagelo que motivou os migrantes a se retirarem (por isso retirantes) e virarem... soldados da borracha no Amazonas, justamente num período em que a febre extrativista enriqueceu coronéis...

NAS PROFUNDEZAS DA ALMA
À deriva, nos deixamos fascinar pela narrativa dura e polifônica deste grande artista, porque grande pensador. Ao conversar com ele sobre o título tão acertado da exposição, me dei conta de que o ambiente surreal não é o meio ambiente, mas o ambiente humano, político, social em que vivemos. Isso fica claro quando o pedreiro e pintor, amazonense, nos brinda, em Linha vermelha com uma representação tão precisa dos tijolos baianos (retirantes... cidade de pedra naufragando em igarapés sujos) perfurados à bala.

LINHA VERMELHA
Enquanto contemplava sua obra e ouvia Cássio José falar com tanta firmeza e acerto sobre essa sua proposta tão pensada e solidamente embasada, me lembrei da cena clássica, segundo a qual, em 1940, com Paris ocupada pelos nazistas, um oficial alemão, diante de uma fotografia reproduzindo o painel Guernica (1937), perguntou a Picasso se havia sido ele quem tinha feito aquilo. O pintor, então, teria respondido: "Não, foram vocês!". E ao me lembrar disso fiquei muito, muito grato a este Cássio José, pelo poder de sua mensagem, no contexto hecatômbico atual.
Linha vermelha é a tela que mais clama em favor desta tese do autor: usando a estética advinda do surrealismo, o artista a subverte demonstrando que a Amazônia vive um pesadelo: o pesadelo de estar sob o jugo de coronéis que manejam impiedosamente navalhas de Occam e motosserras, calcinando florestas produzindo violência, êxodo das comunidades ribeirinhas para o inchaço caótico da urbanidade periférica que resulta em superpopulação, esgoto nos igarapés e tijolos perfurados à bala.
Mais do que lendas e mitos, a Amazônia de que nos fala o artista é aquela que resulta do pesadelo capitalista que se vale, justamente, das alegorias sobre a Amazônia (que o artista destrói) para subjuga-la.
Mais do que lendas e mitos, a Amazônia de que nos fala o artista é aquela que resulta do pesadelo capitalista que se vale, justamente, das alegorias sobre a Amazônia (que o artista destrói) para subjuga-la.

É este tapa na cara que a reflexão de Cássio José nos oferece. Para quem almeja telas que retratem alegoricamente as alegorias que povoam o carnaval sobre a Amazônia, mais um recado do arcabouço surrealista, desta vez dialogando com a célebre contribuição de René Magritte: Ce n'est pas une allégorie seria o título ideal desta exposição quando ela for a Paris – e eu espero que vá, pois esta mensagem precisa ganhar o mundo, pois este artista plástico nos traz uma aterradora mensagem – se não contivermos nossos coronéis, doravante toda natureza será morta. E não somente no campo das artes.
Bruno Walter Caporrino
Manaus, 20 de maio de 2019


 “Deriva – Ambiente Surreal” fica em cartaz até 21 de julho, com visitações de terça a domingo, das 15h às 21h, na Casa das Artes (Rua José Clemente, 564 - Largo de São Sebastião, Manaus).
  
O artista – Cássio José da Silva é natural de Canutama, município do interior do Amazonas, lugar onde concluiu o ensino fundamental. Em 1988, foi morar em Lábrea e por lá permaneceu por dois anos até mudar-se para Manaus, em 1991. 
Na capital, trabalhou como zelador, letrista, marceneiro, artesão e pedreiro. Em 2014, Cássio retomou os estudos e pretende seguir até o fim e conquistar a tão sonhada graduação.



segunda-feira, 13 de maio de 2019

Na terra das vacas sagradas

Na terra das vacas sagradas 
                                                                Bruno Walter Caporrino

Originalmente publicado em minha coluna Filosofias Selvagens do Portal Heráclito http://www.portalheraclito.com.br/index.php/materias/filosofias-selvagens/783/na-terra-das-vacas-sagradas.html


*Créditos da imagem: bricolagem de Bruno Walter Caporrino

Nós sabíamos que ia acontecer, porque já vivíamos isso há muito, muito tempo. Meus avós e meus bisavós viveram isso. Sabíamos que chegaria a esse ponto, mas não que seria assim. O ápice aconteceu da pior forma possível: consagrou o início da nova era sem surpreender a quem quer que fosse, porque a verdade é que já vivíamos essa era desde o início das eras desta terra – desde que tem esse nome. O que me leva a pensar, ou melhor, sentir, então, que houve “um ápice”, se se trata de algo que sempre vivemos? Nunca fora de outro modo...

Penso nisso, diariamente, quando torro o café que sobreviveu e observo a nuvem de urubus que oblitera o céu fumarento e cinéreo. Espanto as moscas que em profusão assolam meu rosto e clamo a deus, se acaso algum houver, que me leve logo daqui.

Meu nome é Nício. Nício Ideltrudes Guarani Kaiowá, assim, no RG. Sou o último remanescente vivo de meu povo e só estou vivo, acredito, por não me encaixar nos padrões que o povo do Brasil tem do que é ser índio. Por não parecer índio, já que, para eles, ser é parecer. Essas rugas que sulcam meu rosto, os dentes que me faltam e as auréolas branco-leitosas que tomam meus olhos por causa do diabetes; talvez os cabelos crespos e o nariz achatado, de negro, foram traços herdados de meus pais, que por sua vez herdaram de meus avós, que, por sua vez, herdaram dos pais e avós de seus pais e dos pais e avós daqueles com quem trocaram esposas e maridos durante o genocídio da Guerra do Paraguai. Talvez por isso fui avistado duas vezes desde os últimos acontecimentos, e ninguém ainda me matou.

Se há algo de que me recordo em minha mais tenra infância é das caminhadas, longas e dolorosas, pelas estradas poeirentas e escaldantes, entre uma retomada e outra, entre um acampamento e outro. O medo, presente em cada um dos segundos de minha terrena existência, só não é maior do que a dor de ter visto e ouvido meus parentes e conhecidos, meus semelhantes, agonizarem, um a um, até encontrarem Yvy marã e'y, a Terra sem Mal.

Quando as ondas de suicídio tomaram nossas comunidades ilhadas no oceano de soja, agrotóxico, violência e medo; enquanto os aviões davam rasantes em nossas barracas de lona aspergindo agrotóxico sobre nós, eu me recolhia, maracá nas mãos, o mais perto possível de meu avô, pajé Inácio. Quando meus primos e irmãos se enforcaram, e suas mães choravam até arrancar os cabelos sobre seus túmulos improvisados, agredindo-os, culpando-os, a fim de que suas almas não desejassem mais voltar; quando seus corpos eram enterrados em terras nossas que nunca pudemos chamar de nossas, com os rostos virados para baixo, a fim de que encontrassem o caminho certo à Terra sem Mal –  eu me agarrava à meu avó.

Quando as balas voaram por cima de nossas casas e roçados, zunindo, e no meio da nuvem de poeira vi todos caírem esvaindo-se em sangue enquanto os faróis das caminhonetes nos cegavam e a poeira que havia subido secava sob o banho de sangue, urinei-me e, tremendo, só percebi que meu avô havia partido, juntamente com todos, quando seu corpo esfriou.

Restamos apenas Naldo e eu. Amedrontados, corremos para o meio da infinita plantação de soja que nos rodeava, à procura da capoeira onde, fazia muito tempo, ou nos enforcávamos ou nos enterrávamos, até que o clarão nos assustou e, abraçados, caímos no meio do plantio, aos prantos. Ardendo em chamas, a pequena capoeira, uma ilha de árvores de dois hectares aspergida pelo napalm da Monsanto financiado com recursos públicos, do BNDES pelo Plano Safra, simplesmente explodiu. O estrondo foi tão alto, devido à quantidade de agrotóxico inflamável, que a concussão que se seguiu nos derrubou. Foi quando caímos.

Erramos à procura dos acampamentos vizinhos e pranteamos, um a um, os incontáveis cadáveres de nossos parentes baleados, atropelados, calcinados juntamente com a cana das usinas, até que, desesperados, famintos e sedentos, encontramos a família de Géssica, com quem ficamos mais tempo. Nos refugiamos sob a lona preta perfurada a bala de sua modesta morada provisória, enquanto a fumaça negra dos canaviais trazia para nossos peitos a chuva de fuligem incandescente que divertia as crianças – delas é, definitivamente, a Terra sem Mal. O pai de Géssica, pajé Ivair, já o dizia, enquanto as observava.

Até que a Polícia Federal, em quem confiávamos até então, começou a nos caçar. Primeiro foi Genoveva: dois tiros nas costas, quando cruzava a rodovia para pegar um pouco da água pestilenta na vala da estrada. Isaac vomitava sangue: há muito tinha câncer, que ele, dos mais idosos, atribuía a feitiço ou resultado do mau viver a que fomos condenados. Os caciques, mortos. As mulheres, estupradas. As crianças calcinadas não saíam de nossas cabeças e, quando a sede aumentava, eu pensava em correr para o meio da plantação e abrir a boca para beber o napalm que caía dos aviões, propriedade particular dos senhores desses oceanos de terra e que foram comprados com dinheiro público do Plano Safra.

Há muito já vivíamos assim. Mas até então essas ações eram ilegais, e alguns xamãs dos não índios vinham fazer perícias: tiravam fotos, abriam nossos corpos, levavam os ossos queimados para laboratórios e diziam que faziam isso para apurar o que acontecera e prender os culpados. Mas esses xamãs obedeciam a seus caciques, que, de posse de caras gravatas e relógios, fazem assembleias na imensa casa de reunião deles, aquela, com as duas cuias, uma virada de cabeça para cima e outra, de cabeça para baixo. As balas passaram a sumir dos relatórios desses xamãs: mas eles ainda vinham, só que para provar que nós é que estávamos atirando ou agredindo o dono da fazenda. Assim também aconteceu com os juízes.

Então, o que vinha acontecendo, virou... não sei dizer. Oficial? Legal, talvez? Depois do atropelamento de Gerson, Kleiciane, Nádio, Almir, todos os líderes, um a um, passou a ser lei: quem atropelasse um boi ou uma vaca deveria responder a inquérito policial e pegava detenção de 10 a 30 anos. Foi então que, milagrosamente, nossos poucos parentes vivos passaram a ser atropelados na estrada. A lei, celebrada em Dourados com rodeio e fogos por mais de uma semana, dizia ainda que quem atropelasse um de nós ganhava indenização e reforma do carro, e o prefeito e o governador anunciaram que dariam um prêmio de R$5.000 por cabeça, oriundos do Fundo de Apoio à Soberania Nacional –  que criaram para nos exterminar, com o dinheiro que recebem da Europa, da China e dos Estados Unidos pela soja e pela carne que esses poucos caciques dos não-índios, esses pouquíssimos homens que possuem terras do tamanho de países, extirpam de nessas terras e lhes entregam baratinho em nome da soberania nacional.
Os xamãs dos não-índios passaram a dizer que os projéteis encontrados nos corpos de nossos parentes atropelados milagrosamente deveriam ter aparecido em seus corpos por ingestão: diziam que comíamos as balas de chumbo e as carregávamos em nossos corpos por toda nossas vidas.

Muitos foram atropelados. Myriam, Athaíde, Naelson. Quantos? Não recordo os nomes: quero que fiquem em paz em seu caminho para a Terra sem Mal, já que não pudemos enterrá-los. Naldo foi o último. Ardendo nossas barrigas em febre de fome, flechamos um bezerro da fazenda do deputado que, depois fui saber, tem o tamanho do Paraguai. O mesmo deputado que gritava nos jornais que tem muita terra para pouco índio, quando fazíamos alguma tentativa de retomada de nossas terras. Eu disse à Naldo que era perigoso matar o bicho: esse gado todo é de propriedade privada um homem só, mas foi comprado com dinheiro público, então o governo viria atrás de nós. Mas a fome falou mais alto.

Naldo foi se aliviar, depois de comermos o bezerro com aqueles que ainda restavam de nós, quando duas caminhonetes estacionaram, faróis acesos; ouvi zunirem balas e apaguei. Acordei com o sol alto, coberto de moscas e sangue em meio à fumaça de nosso acampamento em desordem e, rastejando até a estrada, vi o grupo de homens que esperava a Polícia Rodoviária para receberem seus prêmios por terem atropelado as 26 pessoas da comunidade. “Índio só anda bêbado, o senhor sabe, oficial. Estavam todos deitados na pista e, quando vimos, estávamos em cima. Agora, me diga, vai demorar para recebermos o prêmio e consertarmos as caminhonetes?”, disse um, quando a viatura encostou.

Fui embora, sangrando, até encontrar esta casa abandonada, onde estou há semanas. As fazendas são tão grandes que duvido que me encontrem aqui. Observo os urubus e rezo para Nhanderu vir me buscar; sonho com a Terra sem Mal enquanto, sozinho, reflito e ideias vêm à minha mente: lembro de uma professora da Pastoral que deu aulas para nós em um dos nossos acampamentos. Ela disse que quando os portugueses chegaram aqui, acharam que estavam nas Índias. Erraram o caminho. Nos chamaram de índios.

Um dia, estava em Dourados e vi na televisão que na Índia as vacas são sagradas. Só então percebi: no Brasil, nas Índias Ocidentais, as vacas e bois são sagrados – valem mais do que vidas humanas. Valem muito, muito mais do que as vidas de Guarani Kaiowá.

Chove: de novo, as pequenas gotas esverdeadas com forte cheiro de vômito e urina. Vi na TV, muito tempo atrás: chuva ácida. As telhas de amianto da casa estão furadas. Vou ao meio do campo gretado, seco, duro, rachado, vazio: abro a boca, e espero por minha passagem para Yvy marã e'y, pois cansei dessa Yvy vai, dessa terra imperfeita – deixo-a para as vacas, essas que aqui são sagradas.

Bruno Walter Caporrino
Manaus, 2017