Nos olhos dos outros
Bruno
Walter Caporrino
As
ruas estavam tomadas por toda sorte de dejetos multicoloridos quando Hans
desceu do taxi. A aurora se anunciava timidamente pelas frestas deixadas pelos
arranha-céus, coriscando, lá e cá, nas janelas. Varando a densa e azulada névoa
que fedia a pólvora queimada de rojões, os raios de sol incidiam sobre o fractal vítreo
dos prédios e iluminavam pontos específicos do panorama que Hans passou a
contemplar entre extasiado e aflito: montanhas de latinhas de cerveja, garrafas
de cachaça, adereços feitos na China, cada qual mais berrante, imiscuíam-se aos
ébrios largados nas sarjetas enquanto zumbis vagavam à cata de metal.
Hans
fora informado de que esta não era a melhor época para visitar a Taliãolândia:
o carvanal, a apoteótica e gigantesca festa popular que parava o país,
acontecia bem naquela semana. Formalmente, pois Hans averiguara que em Taliãolândia
todos os dias era carvanal, mas que apenas naquela época, especificamente, o
Governo dava autorização para que ocorresse plenamente e a bandeiras e bragas
desbragadas.
Um
morador de rua ou talvez engenheiro ou cirurgião – àquela altura da quinta feira cinzenta
era difícil saber a diferença – esgueirou-se sorrateiramente por entre suas
pernas, revolvendo uma miríade de dejetos a gritar por seu celular. “Fui
roubado, não acredito!” sentou-se, atônito, as mãos à cabeça e o olhar
desnorteado de tão embriagado. Tampando o sobrolho com as mãos, Hans achou por bem carregar sua
valise para o hotel.
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Primeira vez na Taliãolândia, senhor? Perguntou, bocejando, o recepcionista.
Quando
Hans ia responder, deu-se conta de que sua mala já não mais estava a seus pés,
onde havia deixado: “sim, e talvez a última”, ainda pensou em responder,
contendo-se diante da hipótese de que quem a carregada pudesse ter sido o
encarregado do hotel. Quando o recepcionista jogou as chaves no balcão,
gritando “234, segundo andar” enquanto subia as calças pelo cinto, acomodando a
barriga exatamente por cima dele, Hans se deu conta de que teria que passar a semana no país sem nenhuma roupa além daquela com que chegara: a valise já havia
sido furtada.
A
viagem de Hans à Taliãolândia mal pôde ser planejada: jornalista renomado,
especializado em cobrir com perfeição grandes furos políticos, Hans comprou as
passagens assim que soube que o candidato Ricardo Walter havia ganho o pleito. Walter
era um outsider puro sangue: praticamente desconhecido, mesmo na Taliãolândia,
pelos melhores e mais informados lobistas, jornalistas, juristas, etc, fez uma
campanha rápida e simples, derrotando de maneira inacreditável o candidato que
há meses seguidos estava melhor cotado para ganhar o pleito.
Seu adversário, Jairo Fecalsaro era um parlapatão de extrema-direita, ex-oficial do exército expulso da corporação depois de inúmeros atentados que, depois de comprovou, visavam aumentar seus rendimentos, passara 27 anos no Congresso como Deputado sem propor ou aprovar projeto algum. Facalsaro era um brucutu que poder-se-ia tomar por um estereótipo do senhor de engenho rural que chicoteia e estupra por hobby ao amanhecer: usava botinas de elástico e representava o que de mais abjeto se poderia extrair de um verdadeiro senhor rural ignorante: violento, cruel, ganancioso e, por isso mesmo, extremamente popular.
Seu adversário, Jairo Fecalsaro era um parlapatão de extrema-direita, ex-oficial do exército expulso da corporação depois de inúmeros atentados que, depois de comprovou, visavam aumentar seus rendimentos, passara 27 anos no Congresso como Deputado sem propor ou aprovar projeto algum. Facalsaro era um brucutu que poder-se-ia tomar por um estereótipo do senhor de engenho rural que chicoteia e estupra por hobby ao amanhecer: usava botinas de elástico e representava o que de mais abjeto se poderia extrair de um verdadeiro senhor rural ignorante: violento, cruel, ganancioso e, por isso mesmo, extremamente popular.
Hans
sabia, bem formado que era, que os habitantes de Taliãolândia amavam tiranos:
todos os cientistas políticos da Taliãolândia eram unânimes em concordar que,
gentil e cordial, o habitante da Taliãolândia não negava o passado brutal que
inaugurou aquela colônia de presidiários e escravos onde se praticava estupro e
mutilações para divertimento da elite colonial até muito pouco tempo atrás. Olho
por olho, dente por dente, o taliãolandês era apaixonado pela vendeta: lançando
mão de um repertório tribal que infelizmente fora deturpado pelo
neopentecostalismo, o taliãolandês só entendia uma língua: a da vingança.
Hans
sabia disso, e havia inclusive esboçado alguns ensaios sobre o rico mas ao
mesmo tempo miserável país que, despontando entre os 6 países mais ricos do
mundo, montava no dinheiro que obtinha explorando de maneira voraz e assassina
seus recursos naturais enquanto 90% da população vivia com menos de cem
monarcos (a moeda local) por mês.
Seis
homens eram proprietários de mais da metade das terras e dos recursos da
Taliãolândia, e Hans os havia entrevistado diversas vezes. Desta feita,
contudo, preferia focar sua atenção nos taliãolandeses: ouvir o clamor das ruas
e compreender os efeitos da inusitada e inédita eleição de Ricardo Walter.
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O que eu acho dessa proposta dele? Sei não, rapaiz. Nós votêmo mais foi porque se
não vota o dono da loja ia ponhá nós na rua. Se ele mandou nós votá num
candidato? Sim! Passou o ano todo falando que se nós não votasse o Fecalsaro ia
cortar nossas mão, igual fizéro com nossos avô tudo - disse um morador da
Taliãolândia numa das primeiras entrevistas.
Hans
tinha ideia disso tudo. Mas... ver, com os próprios olhos, era diferente.
Pessoas brigando por frutas estragadas, aos montes, num país que era o sexto
mais rico do mundo, era muito difícil de compreender. Mais difícil ainda estava
sendo entender como a população, tão explorada, apoiava Fecalsaro que declarava
ódio à negros, pardos, nativos, mulheres, grávidas, idosos, enfim, todos que
não se enquadrassem em seu arquétipo nazista de raça pura. Mas quem se
assustava com o apoio popular a Fecalsaro precisava conhecer a historia da
Taliãolândia: o nome da colônia advinha de Talião, um dos déspotas preferidos
pelos pastores que foram encarregados de, jogando fora o Novo Testamento, criar
todo o ideário, a simbologia, os valores da “Pátria de Talião”.
A
população, como é de se esperar, passara séculos sendo currada e chicoteada em
praça pública pelos poucos senhores que eram donos das terras, donos deles, das
gentes, donos das águas, e que eram irmãos dos pastores, irmãos dos juízes, primos
dos delegados, tios dos jornalistas... quem “cresceu pulando cadáveres calcinados
só conhece cadáveres”, pensava Hans enquanto atravessava uma praça entre a
multidão que corria para abrigar-se de um tiroteio promovido pela Polícia (que
dominava o tráfico de cocaína) e os milicitares, que dominava o tráfico de
armas e de maconha. A disputa, Hans apurara, era pelo domínio das linhas de
ônibus.
A
diferença entre os policiais, agentes do Governo, e os milicitares consistia
apenas em que os policiais traficavam mas eram funcionários do governo e do
Judiciário, enquanto os milicitares eram os mesmos policiais, unidos aos
traficantes não policiais, que traficavam nos horários de folga. Hans conheceu
dois policiais que, no meio da entrevista, tiraram a farda, puseram balaclavas
e assumiram outro discurso para o gravador. Boquiaberto, perguntou o que
acontecia: “nada, é que deu 4 hora, aí acaba nosso turno na corporação, daí nós
vira milicitar”.
A
brutalidade dos milicitares era combatida pelas forças policiais com...
brutalidade. E em meio ao holocausto urbano, Fecalsaro e seu discurso de ódio
contra a roubalheira e corrupção que eram o pilar, o marco zero da história da
Taliãolândia, fez com que chegasse a mais de 65% e intenções de votos naquela
eleição.
Mas
foi então que Ricardo Walter apareceu, com sua fala mansa, jeito simples e
modos polidos. Articulado, versava sobre a Legislação Federativa com seriedade
mas sem afetação, e acabou conquistando as massas ao lançar sua proposta em
pleno debate eleitoral ao qual Fecalsaro sequer apareceu: a proposta de Ricardo
Walter irritava tanto Fecalsaro quanto Getúlio Cícero da Silva, o candidato que
se dizia de esquerda, e que resgatava o caudilhismo latino-americano de tal
modo que Evita Perón verteria lágrimas.
A
proposta de Ricardo Walter era, em linhas muito gerais, o que ele mesmo
denominava “democracia radical”. Ricardo Walter propôs que, se eleito, faria
com que todos os moradores da Taliãolândia fossem à Justiça assinar o que
chamou de Contrato Social. O Contrato Social era basicamente a Constituição,
elaborada de modo a firmar um contrato no qual o governo e os cidadãos se
comprometiam mutuamente, contraindo, ambas as partes, direitos e obrigações.
Pelo Contrato, os cidadãos eram obrigados a matricular seus filhos na escola
pública, que o governo era obrigado a oferecer, e assim por diante.
Mas
o que gerou polvorosa entre os habitantes foi o segundo componente da proposta
de Ricardo Walter: ele prometia que, assim que eleito, todos os dados das redes
sociais dos moradores de Taliãolândia, que estavam absoluta, radical e mesmo
violentamente divididos nas eleições entre Getúlio Cícero e Fecalsaro, seriam
incorporados a fim de levantar um perfil dos cidadãos e encaixá-los em “planos
de cidadania”.
Segundo
a proposta, feita diante de um país radicalmente dividido e convulsionado às
vésperas da eleição mais disputada e acirrada de sua história, os cidadãos
seriam agrupados em função de suas opiniões sobre assuntos fundamentais que
operavam essa divisão do país, tais como a tortura, a ditadura (incluindo a
censura e a perda de direitos de participação), aborto, prisão sem trânsito em
julgado, direito de constituir advogado ou não, direito das forças policiais
atirarem contra cidadãos mesmo sem instaurar inquérito, averiguar provas,
instruir processo: metade da população de Taliãolândia era a favor, e metade
violentamente contra todos os princípios de um Estado democrático de direito.
A
discussão em torno de aspectos tão radicalmente fundamentais havia sido
obliterada pelo partidarismo típico dos taliãolandeses: há muito que, para esta
analfabeta e dançante população, política eleitoral e futebol eram a mesmíssima
coisa, de modo que possuir e expor opinião política consistia em mais uma
vertente do jogo de futebol, que implica em massacrar a torcida do time
adversário não por motivos lógicos e racionais mas... porque torce para o time
adversário.
Assim,
a proposta de Ricardo Walter sacudiu o cenário: concretamente, a plataforma
política dele previa que, assim que eleito, os cidadãos iriam aos cartórios
assinar seus contratos. Mas os termos dos contratos estariam dados pelas
manifestações pregressas dos cidadãos: aqueles que, antes das eleições, haviam
manifestado publicamente, nas redes sociais, que eram a favor da pena de morte,
por exemplo, assinariam um contrato no qual aceitavam viver em um país onde poderiam
ser sumariamente assassinados por policiais se, de repente, esses policiais
achassem a bunda da esposa desse cidadão atraente e estivessem interessados em
fuzilá-lo para estupra-la em alguma viela escura e depois inserir papelotes de
cocaína no porta-luvas de seu carro.
Já
aqueles que manifestaram nas redes sociais serem a favor do Estado democrático
de direito, teriam o direito a constituir advogados, à ampla defesa, e a só
serem efetivamente condenados se, ao cabo do devido processo legal, ficasse provado
seu crime.
Segundo
a proposta de Ricardo Wagner, os dados deveriam ser colhidos de maneira
retroativa, a fim de assegurar que os cidadãos, que defendiam tão
apaixonadamente suas posições antes das eleições, não mudassem de ideia quando
o sistema fosse de fato posto a funcionar. A proposta previa ademais, apurara
Hans, que ao assinar os contratos os cidadãos receberiam novos documentos:
verde para aqueles que eram a favor do Estado democrático de direito, preto
para aqueles que eram contra direitos e garantias fundamentais. Estes últimos
não teriam direito a um sistema público de saúde e à aposentadoria, por
exemplo, mas Hans apurara que a população só se dera conta disso realmente quando do dia da posse.
Hans
estava empolgado. Era o dia da posse de Ricardo Walter e ele conseguira um
espaço no camarote reservado à imprensa. Todos aguardavam o início da cerimônia
quando, de ambos os lados da ampla avenida Galiléia, os dois carros apontaram:
de um lado, o atual presidente da Taliãolândia, Miguel Tâmisa, que deveria
caminhar até encontrar-se com Ricardo Walter e passar-lhe a faixa presidencial.
Do
outro lado, Walter desponta acenando. Extasiados, os jornalistas e observadores
internacionais começam a transmitir ao vivo este momento inédito em que um novo
regime de governo, tão radical, será empossado, fazendo cada qual suas inúmeras
considerações: funcionará? Saberão ceder à ele aqueles que mais sofrerão, ou
seja, aqueles que defenderam o fim da Previdência, do sistema de saúde, da
democracia?
Tâmisa
caminha a passos largos, com as mãos atrás das costas, para no meio da avenida
Galiléia e encara Walter, que ainda precisa dar alguns passos para encontra-lo.
Mas, súbito, quando Ricardo Walter se prepara para dar os últimos passos ao
encontro da Faixa Presidencial, um grupo de militares o cerca, o golpeia, se
joga sobre ele e o retira de cena, entre uivos e aplausos da multidão da
Taliãolândia, ainda dividida.
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Nós não assinamos contrato algum, disse Tâmisa à atordoada imprensa, enquanto
passava a faixa a Fecalsaro. “A proposta de contrato era do Ricardo Walter,
mas, como ele era subversivo pedófilo comunista maconheiro, nós o prendemos, em
nome da Pátria e de Deus, e reestabelecemos a ordem”.
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Mas, o que é a ordem?? Gritou Hans, indignado, sem poder conter-se e
assustando-se, inclusive.
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A ordem, meu filho, é quando quem pode manda e obedece quem tem juízo. Lei é
para bater nos outros, não para fazer justiça, declarou Tâmisa, ovacionado pela
multidão.
Deprimido,
Hans voltava ao aeroporto quando deparou-se com um grupo de manifestantes. Abaixou
os vidros do carro, contra a vontade do taxista, que mal teve tempo de gritar
que não o fizesse. Arrancado para fora do carro, Hans teve todos seus pertences
furtados pela massa que o pisoteou e machucou bastante.
Depois
de arrastar-se para o carro novamente, desesperado, num esgar de choro
perguntou ao motorista: “quem era aquela gente? Me roubaram tudo o que eu
tinha! Me bateram”.
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Manifestantes contra a corrupção senhor, respondeu, palitando os dentes, o
motorista.
Na
Taliãolândia, aprendera Hans da pior maneira possível, a única lei é a de
Gerson: levar vantagem em tudo, da qual decorre o artigo segundo: aos amigos,
tudo! Aos inimigos, a lei.
Bruno Walter Caporrino
Manaus, outubro de 2018
(Revisado em fevereiro de 2019)