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terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Pequena autópsia de um povo sem alma



Bruno Walter Caporrino

Escrito em Agosto de 2016
Publicado na Revista Peixe-Elétrico #6[1]
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Ficha Técnica Peixe-Elétrico # 6
ISBN: 9788584741403
Selo: Peixe-elétrico
Data de publicação: 2016
Páginas: 140
TradutoresMauricio Acuña; Pedro Meira Monteiro; 

Heci Regina Candiani; Ricardo Lísias; José Oscar de Almeida;
IlustradorMarcelo Amorim

--- É preciso pintar todo o corpo da criança com urucum, para que os Donos não consigam “cheirar” seu princípio vital. Os Donos gostam muito do “cheiro”: para eles, é como uma flor, que eles podem querer arrancar da plantar. Se isso acontecer, a pessoa pode ficar louca, mudar o jeito como vê as coisas, passando a agir e se ver como cutia, anta; ficar doente, ou morrer, afirma Jawaruwa, enquanto espera, com a mão estendida, que a menina-moça que serviu-lhe a cuia com kasiri – a deliciosa cerveja de mandioca – venha buscá-la, agora que está vazia.
Aceito mais uma cuia. Sorvo, como manda a etiqueta, duma talagada só, enquanto Kasiripinã continua a prosa: “Muito antigamente, quando todos ainda se podiam ver como gente (mira), havia uma Cobra Grande, que devorava as gentes. Certa vez, conseguiram matá-la, e descobriram que seus desejos, coloridos, poderiam ser utilizados para ornar o corpo. Assim, Jacamim percorreu diversas aldeias avisando as gentes: venham pintar-se! Tukã moi morreu. Gente peixe, gente pássaro, gente anta, gente todas, chegaram e começaram a pintar-se. Gente Pacu pintou-se, dizendo ‘vou pintar-me como pacu’, e assim foi feito: pulou no rio, e lá está até hoje. Gente Jacamim, gente Anta, todas as gentes, tudos. Se pintaram enquanto nossos ancestrais, acanhados, apenas assistiam. Assim nossos ancestrais observaram como se pintavam copiaram essas pinturas, transformando-as em padrões de pintura que representam os das outras gentes. Se você pintar seu corpo igual mesmo onça, é muito perigoso! O Dono pode achar que você é onça, e você vira. Por isso fazemos os padrões, e tem regras, jeitos certos de usar”. Levanto-me para acender o cigarro de tabaco da roça enrolado em entrecasca de tawari no tição. Kasiripinã prossegue:
--- Tudo são gentes. Anta, cutia, pacu, veado, tudo. Moju, Dono das águas, lá embaixo tem sua aldeia. Poraquê é o tipiti no qual ele espreme goma de mandioca. Jacaré é seu banco, e pacu, por exemplo, seu beiju.
O recém-nascido tem seu corpo totalmente coberto de urucum, a fim de protegê-los dos Donos, enquanto todos nós nos pintávamos com urucum misturado à gordura de macaco quatá, para proteger nossas peles e preservar por mais tempo os padrões gráficos kusiwa que já tínhamos no corpo: aqueles aprendidos, copiados, pelos Wajãpi ancestrais, na época em que Tukã Moi foi morta.
Os padrões Kusiwa são a ponta do iceberg dos belo e riquíssimos regimes de conhecimentos Wajãpi. Regimes de conhecimentos realizados cotidianamente na prática: nas roças, nos caminhos, nas caçadas e pescarias, nas festas, na dispersão pelo território essencial para a gestão socioambiental, e que, comprovadamente asseguram sua qualidade. Nessa época, 2010, eu ainda trabalhava como assessor para o Programa de Formação de Pesquisadores Wajãpi: desde que os padrões de pintura corporal Wajãpi foram reconhecidos pela Unesco (2002) e pelo Iphan (2003) como patrimônio imaterial da humanidade e do Brasil, os Wajãpi, sempre extremamente organizados, construíram, com ajuda do Instituto Iepé, um Plano de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Wajãpi: um plano de ações voltadas ao fortalecimento das condições essenciais para a realização plena, cotidiana, vivida, de seus regimes de conhecimentos e relações.
Uma das muitas ações que os Wajãpi inseriram no Plano (todas intimamente correlacionadas) foi a formação de 20 pesquisadores Wajãpi. Esses jovens pesquisam os regimes de conhecimento Wajãpi, a fim de tomar consciência daquilo que é, por definição e excelência, inconsciente: a lógica que tudo liga no âmbito desses sistemas de conhecimentos, e as maneiras como essas lógicas são instanciadas na prática, na vida real. Nesse momento eu assessorava os pesquisadores – era a reta final para a conclusão de suas monografias, todas redigidas em língua Wajãpi e feitas com base na sistematização dos saberes coletados em entrevistas com os sábios – processo em execução contínua há mais de dez anos.
A grande tarefa a que nos dedicávamos era sistematizar os saberes, a fim de comparar narrativas e construir clareza a respeito da maneira como todos os saberes se ligam. Paralelamente a isso, esse Programa, que acabou formando jovens lideranças de forte expressão na conformação do Plano de Gestão Socioambiental, por exemplo, visava qualificar traduções: basicamente, destruindo a fácil ideia de que seja possível traduzir palavras, termo por termo, entre regimes de conhecimentos diversos. Todo o esforço dessas formações está em demonstrar que não existe tradução: mas que é possível construir explicações, e que, para que se possa explicar um elemento do conhecimento Wajãpi para um não-índio é necessário conhecer muito bem seu regime de conhecimento, e vice-versa. Construir explicações entre regimes diferentes exige que se os conheça, e que se frise, a todo momento, suas diferenças.
A conversa é interrompida por forte vendaval. Nos idos de 2010, o clima na terra indígena ainda não sofria as mudanças que, sensíveis, os Wajãpi já percebem hoje, e estávamos em pleno verão. Forte chuva era anunciada pelas densas e negras nuvens que se avizinhavam. “Estranho”, falei. “O tawari apagou-se. Será que alguém matou sucuriju, para chover assim, do nada?”. Todos rimos.
Saímos dessa aldeia e, no dia seguinte, em outra aldeia, ficamos sabendo que Sisiwa, que tem pajé forte, perdera um excelente e precioso cão de caça: engolido por uma sucuriju. Sisiwa tem pajé forte: nutriu-o e, com ele, pode enxergar as criaturas visíveis e invisíveis, dialogar e negociar com elas. Por conta disso, lhe foi dado abater a sucuriju que estava no igarapé no qual banhava as crianças. Matar sucuriju, criatura do Dono da água, é muito perigoso...
Por essa época, fiz uma mais um bloco de viagens à diversas aldeias, umas seguidas das outras. Como meu regime de trabalho preconizava a permanência em terra indígena por no mínimo 45 dias, e me facultava em média 15 dias de permanência em Macapá, mal saí da terra indígena embarquei para Belém, a fim de passear um pouco na cosmopolita capital. Atei minha rede no convés superior do Barco a Motor Ana Beatriz, e relaxei, disposto a curtir as próximas 24 horas à bordo.
Estranha febre, contudo, apoderou-se de mim. Em menos de quatro horas de viagem, ardia em febre: eram 17:00 hs. “Hora da malária”, pensei. Tranquilizei-me, imaginando que se tratava de mais uma malária vivax, e sabendo que os calafrios que causam tremores incontroláveis, e a febre forte, poderiam ser sanados em Belém. “Mano, tu tás suando tanto que tua rede tá pingando”, fui acordado por uma senhora, preocupada. Disse-lhe que poderia ser só mais uma malária, e quedei-me tranquilo: das cinco malárias que já tivera, quatro vivax e uma falciparum, só me preocupava sofrer novamente outra falciparum – essa sim extremamente perigosa, com considerável risco de óbito.
Quando aportamos em Breves, no meio do caminho, a febre estava tão forte, e meu corpo tão debilitado, que achei conveniente solicitar à essa senhora que já zelava por mim, preocupada, alguma atenção. “Tomara que não seja falciparum, mas até saber, não, obrigado, acho melhor não medicar”, disse ao comandante, que viera me ver enquanto embarcavam carga na embarcação, provavelmente acionado pela desconhecida senhora.
“Quem mandou comer peixe reimoso, olha aí, agora buiou”, ainda gracejei, visando tranquilizá-lo para que não decidisse me desembarcar em Breves. Viajando sozinho, calculei não ser bom negócio, já que íamos a Belém mesmo. Quando avistamos Belém, eu já não sabia se delirava ou de fato contemplava a linha de arranha-céus que se apodera da capital. Não sei como desembarquei. Sei somente que meu check-in no hotel onde tivera feito reserva era para meio-dia e que ainda eram 09:00hs quando um guarda repreendeu-me por deitar-me no banco da praça do Gasômetro, sem forças sequer para abrir os olhos, e sofrendo terríveis dores de cabeça. Frio!
Estranhando a força da febre e dos tremores, optei por dar entrada no hotel e descansar, pois os sintomas diferiam daquilo que sentira durante os outros episódios. Delirando na praça, coberto com a página principal d´O Liberal por morrer de frio sob os 35 graus Celsius típicos de Belém, comecei a lembrar de Viviane, sim, Viviane, a moça que morrera entre os Katukina do Rio Biá, povo com quem vivi e trabalhei no Amazonas antes – eu havia pego sua vaga, em 2009, alguns anos depois de sua morte.
Dei entrada no hotel, pedi mais três cobertores, e, sob o intenso calor da capital paraense, passei três dias trancado, delirando, até começar a urinar um líquido negro. Imediatamente me lembrei dos trágicos episódios que vira entre os Katukina, no Amazonas: “hemogoblinúria. Estou mijando hemoglobina. Em pouco tempo não poderei mais oxigenar tecidos. Falciparum é um plasmódio que se instala no cérebro – por isso a insuportável dor de cabeça”. Juntei forças, tomei um taxi, e peregrinei por todos os postos de saúde que me indicavam, juntando, com muito custo, minhas poucas forças.
“Ah, isso é dengue”. Foi o que ouvi nos três primeiros. No superlotado posto do Guamá, a ira, associada à cefaleia, devolveu-me a têmpera: “doutor, como podes afirmar, como fizeram os demais, que se trata de dengue, se sequer colheram meu sangue? Eu venho de uma terra indígena, zona endêmica de malária. Meus sintomas denotam falciparum, pois tenho insuportável cefaleia e hemoglobinúria, além da febre terrível. O senhor vai fazer só isso: pedir um exame da gota espessa, fazer pesquisa por plasmodium, e, confirmando, vai me dar primaquina e cloroquina”. O displicente sacerdote de branco do Saber Ocidental olhou-me com desprezo, levantou o bolso do jaleco, onde constavam seu nome e o número do CRM, e me mandou embora perguntando: “quem é o médico aqui?”.
Revoltado, cambaleei até a saída, onde a assistente social que me dera informações perguntou: resolveu?. “É dengue, disse ele, e me expulsou do consultório”. Fizestes o exame de sangue –  ela me perguntou?
--- Não, a bola de cristal do Saber Ocidental pós-moderno do médico, esse ser racional que opera segundo os ditames do Novum Organum contra os médiuns charlatães, por meio de método científico, permitiu-lhe diagnosticar-me em exames laboratoriais, e mesmo clínicos – sequer contaram minhas plaquetas! Ao dizer isso, uma bela médica que caminhava a passos largos deu meia-volta: “qual seu problema?”, perguntou. Narrei-lhe os sintomas ao que ela só fez preencher um pedido de hemograma. Colhido o sangue, aguardei sobre um banco no corredor, a delirar com sucurijus que viravam arco-íris – sua representação, pelo conhecimento Wajãpi – e com as podak, finas, esbeltas, e elegantes canoas Katukina, feitas unicamente com a casca do jatobá – tão finas e leves que o vento as leva. Assim eu quase havia perdido a minha, em 2009.
--- Sua hemoglobina está muito baixa, muito mesmo! Disse assustada a complacente Sacerdote de Jaleco Branco do Pós-Moderno Conhecimento Ocidental. Analisando parâmetros, dados colhidos sob o mais rigoroso método científico, ela contemplava uma análise laboratorial, científica, de meu sangue, consagrando o triunfo da Razão sobre as trevas da ignorância na qual, para o Ocidente pós-moderno, os “primitivos índios, esses seres da idade da pedra” ainda viviam. “Agora consigo um diagnóstico, minha primaquina, minha cloroquina, e me jogo na cama do hotel sob todos os cobertores do mundo”, pensei.
Frio!
--- Deve ser dengue, tome analgésicos. Essa foi a sentença produzida pela médica, as mãos no bolso do jaleco, o iPhone (uma riqueza, em 2010) a brilhar entre os finos dedos da mão direita. Numa cadeira de rodas, rumei até um taxi, cujo taxista me carregou até a cama do hotel. A partir desse ponto, não sei contar o que vivi ali, e o que era verdade e o que era delírio. Até que, no terceiro dia depois dessa tentativa de busca por auxílio do Sistema Único de Saúde, no qual, como todo bom cidadão ocidental civilizado eu depositara minha vida, o gerente do hotel viera me ver, perguntando se eu poderia deixar o hotel até as 17:00hs. “Precisamos desse quarto, pois as reservas são feitas pela internet, pagamento com cartão de crédito, não há como mudar o sistema”, sorriu amarelado.
A indefectível lógica cartesiana do Ocidente pós-moderno reside em mim: meu corpo, minha pessoa, meu Eu, são frutos dela. Como é frustrante ser feito à imagem e semelhança de um sistema simbólico, de um regime de conhecimentos, onde não há espaço para sua própria manutenção orgânica.
Sistemas! Sistemas racionais, lógicas sistemáticas: urinando um denso líquido negro, que manchou o chão do box, perguntei-me como faziam para manter a água na caixa d´água, a 16 andares de altura. Delírios. A viagem de 24 horas embarcado, de volta a Macapá é uma incógnita que se encerra com minha chegada em casa e, no dia seguinte, no escritório, o assombro dos colegas. “Você está cadavérico! Você está verde, muito verde”. Hepatite, pensei. Suspeitando não ser malária – ah, como somos crentes, crentes na lógica pragmática pós-moderna! – por crer nos médicos, fui trabalhar.
Nesse mesmo dia, fui acordado por colegas de trabalho que me banhavam – com roupa e tudo. Fortíssima febre e indescritível cefaleia me abatiam, e nesse momento eu só conseguia me concentrar em respirar – o que já era muito. Fui levado ao hospital de emergência de Macapá, onde fiquei internado por três dias e três noites: a pesquisa por plasmodium revelou malária mista – vivax e falciparum ao mesmo tempo, com 4 cruzes cada. Sozinha, a falciparum leva a óbito em oito a dez dias. Era meu nono.
Quedei-me internado num banco do corredor. Feliz da vida, entre momentos de extremo delírio e períodos de consciência, por ter conseguido o resultado (e os medicamentos) e por estar internado – ao menos. No segundo dia consegui uma maca de aço inox, que se usa para autópsias. Amigos que me visitaram dizem que eu tremia tanto que o ruído sobre a maca de metal parecia uma bateria de escola de samba. Há que rir. E o fiz.
Cacique Seremete foi me visitar. Passava pelo Hospital de Emergência em sua peregrinação por atenção à saúde: “médico mentiroso! Não acredita! Quem tem pajé pode ver os Donos, quem tem pajé pode conversar com criaturas, ogros, da floresta: pode oferecer tabaco, tirar doença. Essa minha doença mesmo: cânci. Não tinha isso antes! Nenhum Wajãpi tinha isso antes! Tudos doença a gente sabe tratar! Essas não. Médico diz que vai dar remédio, química, para tratar. É mentira. Espírito não-índio que me deixa doente é o mesmo que te deixa doente! Não existia malária para nós antes de começarem a chegar os não-índios na nossa região. Quem tem pajé tem que aprender a conhecer esses espíritos – saber o que eles querem, e poder tirar doença, negociar”, falou-me, consternado.
Como muitos Wajãpi, Seremete pegou malária logo depois de mim, juntamente com muitos outros Wajãpi. Isso não esqueço: em 2011 a Terra Indígena Wajãpi viveu um surto de malária. “Igual quando karai kõ, não-índios, chegaram, em 1970: Funai juntou nós tudo para aldeias centrais. Não é assim que moramos, você sabe. Fazemos nossas aldeias espalhadas. Moramos um pouco num lugar, depois fazemos roça em outro lugar, onde tem muito cocô de minhoca, terra plana, preta, e com areia, aí mudamos para lá. Quando karai kõ chegaram, juntaram nós: para proteger da malária e do sarampo que eles mesmos traziam!”, diz o grande cacique Waiwai Wajãpi, na aldeia Mariry, algum tempo depois que, curado da malária, retornei às aldeias, para ficar por mais cinco anos assessorando o Conselho das Aldeias Wajãpi Apina, a associação, a fazer seu Plano de Gestão Socioambiental, intitulado “Como estamos organizados para continuar vivendo dos jeitos Wajãpi”.
Por quê será que há tanta malária agora? Era essa a pergunta sobre a qual refletíamos, os pesquisadores e eu, antes de irmos às aldeias reunir as comunidades para reuniões onde eles, os pesquisadores Wajãpi, lhes faziam essas perguntas. O boom de malária surgiu quando a Secretaria de Estado da Educação começou a oferecer aulas de 5ª a 8ª série, centralizando todos os Wajãpi em apenas três escolas e promovendo a centralização da ocupação do território, algo totalmente contrário a seus jeitos de estar e percorrer as florestas.
Superpopulosas, as aldeias centrais passaram a sofrer junto com os Wajãpi, pois não é esse seu regime de ocupação do espaço, não é assim que caçam e partilham a caça; plantam, colhem, e partilham os produtos da roça; moram, caminham, vivem. O surto de malária caminhou de mãos dadas a outros problemas socioambientais e, portanto, de saúde, ao mesmo tempo, nossa reflexão caminhou para desvendar isso: com o tempo passou a ser preciso caminhar cada vez mais para caçar, pescar; os lugares bons para fazer roça passaram a ficar cada vez mais distantes das aldeias – sendo que o correto é fazer as aldeias em função das roças, e não o contrário...
Políticas públicas: atuação do Estado. A atenção à saúde indígena, que deve ser diferenciada, segundo comina ampla legislação, centraliza e sedentariza, em vez de acompanhar a dinâmica de ocupação espacial essencial à manutenção dos ambientes que é, por sua vez, essencial para a manutenção desses jeitos de conhecer, transmitir conhecimento, se organizar e viver. Uma das maiores reivindicações dos povos indígenas do Brasil é essa: que o Estado respeite o direito à sua autodeterminação, assegurado pela Constituição, e secundado pela legislação infra-constitucional, e os reconheça como cidadãos de direitos, como são. Mas trata-se de direitos diferenciados, a fim de que se preserve as condições para que continuem usufruindo de seus direitos à autodeterminação, a ser o que são por si mesmos.
Parece, contudo, que o Estado, em seu pensamento estatístico, os atropela. Parece, contudo, que o Estado, esse Totem da lógica racional e pragmática ocidental moderna, não é lá tão racional e moderno assim... de jaleco branco, o Estado ignora o indivíduo, não lhe estende o direito à ter alma. De Jaleco Branco e luvas, o laboratorista analisa meu sangue: usufrui de um sistema de conhecimentos calcado na cisão natureza/cultura, cisão na qual cultura se faz, justamente, mediante a superação e o domínio da natureza, sua manipulação – já que a natureza é, para esse sistema, entendida como inerte, inanimada, incapaz de inteligir, de ter agência, e de reagir.
Surtos de doenças como diabetes e hipertensão assolam populações tradicionais no Brasil: a merenda escolar, que poderia ser regionalizada (há lei para isso) consiste em carne em conserva, suco em pó, e assim vai. A educação que deveria ser diferenciada consiste em um uma brutal máquina pós-colonial de conversão das almas das gentes, soberanas sobre seus próprios sistemas de conhecimento, políticos, e de produção da vida em... consumidores treinados na periferia da periferia da periferia do sistema dos outros.
Em Belém, de folga novamente, em 2013, sofri um brutal assalto. Fotografava o Ver-o-Peso, enquanto minha bagagem e rede já se encontravam a bordo da embarcação na qual esperava retornar à minha casa – Macapá. Três sujeitos armados com facas tentaram furar-me, pelas costas. Reagindo mecanicamente, sem pensar, derrubei o primeiro ao chão, tomei-lhe a faca, e tentei defender-me do segundo, que derrubei com uma rasteira enquanto o terceiro mordia-me a mão. Ao girar com o corpo, rompi o ligamento do joelho direito – e capitulei. Eles roubaram minha carteira com identidade, dinheiro, cartão de banco... e a passagem do barco. “Blefado”, como se diz, voltei ao pequeno hotel onde estava hospedado, que me hospedou por confiança, até conseguir voltar a ter nome, pois sem RG e cartão de banco, sem dinheiro e sem poder andar, fui totalmente destituído de minha pessoa, de meu estatuto humano.
Os policiais que me atenderam disseram que eu fiz bem em reagir, embora eu me desculpasse por fazê-lo, sabendo que não se deve reagir a assaltos. “Égua macho, fizestes foi bem! A moda aqui é furar primeiro, roubar depois”. Na manhã daquele mesmo dia, os usuários de crack do centro de Belém haviam furado uma moça que, no chão, teve os brincos arrancados das orelhas. Não fui ao hospital e sem poder andar, voltei a Macapá dias depois – passando, novamente, por Breves, depois de provar, perante um juiz, que eu era eu, e poder sacar algum dinheiro no banco.
“Eles tentaram furar você? Por que?”, perguntou-me indignado meu amigo Jatuta, enquanto comíamos carne de veado moqueado com bem tucupi e pimenta. Roubar, respondi. “Vocês, povo da mercadoria, não têm alma: o corpo de vocês é igual casca, vazia”, respondeu-me o professor Aikyry Wajãpi, que contou, em seguida, como a Secretaria Especial de Saúde Indígena tratara sua filha e sua esposa quando essas, sofrendo com diarreias (que não existiam até bem pouco tempo atrás), buscaram atendimento no posto: “a culpa é do jeito que vocês vivem – igual bicho, no mato”, teria lhes dito o técnico de saúde.
Sisiwa me pedira uma saca de pacotes de tabaco Maratá e um isqueiro. Dei. Rezou meu joelho, que desinchou. “Mas não vai funcionar muito. Esse tipo de doença é difícil: não conheço os Donos de vocês”, disse, em Wajãpi. Descobri a cura faz pouco tempo: acometido por lancinante crise de apendicite aguda, que de chofre supurara, passei mais de 10 horas no mesmo Hospital de Emergência onde ficara curtindo as últimas malárias, urrando de dor, vomitando entre pessoas com deficiência mental que os parentes abandonam porque o Estado do Amapá não oferece mais atenção a essas almas.
 “Aqui a gente cura o corpo. Doença de alma é na igreja, esses endemoninhados têm que ser trancafiados e exorcizados”, resmungou o pastor evangélico que visitava uma senhora enferma que jazia sobre um colchão no chão. Com um esgar de nojo, ele cuspiu na lixeira ao sentir o odor de um desses tresloucados. Ah, a pós-modernidade! Manipulando seu smartphone, o pastor exigia a senha do Wi-Fi: queria conectar-se wireless para poder fazer um culto em livre stream para que, orando, na igreja, os fiéis lhe curassem com palavras. Feitiço – a palavra que age. Jamais fomos modernos.
Uma moça grávida de três meses sofria horríveis dores ao meu lado: toda sintomatologia de uma apendicite aguda também. Vomitávamos juntos na mesma lixeira, companheiros de desdita. Depois de dez horas sem ser medicado ou atendido, decidimos, minha amada Cabocla e eu, ir ao hospital particular, onde, mediante pagamento em espécie, e à vista – e somente assim! – fui operado. Dois dias depois, já em casa, fui informado pelo jornal local de que essa moça – e seu bebê – faleceram no Hospital de Emergência onde eu teria ficado se não tivesse conseguido dinheiro emprestado para custear minha cirurgia.
Pelos conhecimentos Wajãpi tudo está ligado. E tudo tem dono. Segundo esses regimes de conhecimentos, não existe “o pajé”, a pessoa pajé. Todos temos pajé. Você pode cultivar seu pajé, alimentando seus opiwarã com muito tabaco. Você cria, segundo essa epistemologia, fios invisíveis que te conectam aos donos, aos princípios vitais das criaturas – todas elas humanas, em essência, mas variadas segundo a manifestação de seus corpos.
Hoje, Sisiwa, eu sei. Cada vez que passamos por um processo de cura xamanística, nosso pajé se fortalece. Você pode cultivá-lo. Talvez por ter passado por algumas experiências de cura, hoje, Sisiwa, eu vejo: nossa doença está em nossa alma. Achamos que não estamos conectados. Achamos que somente humanos possuem agência – capacidade de agir, inteligir. Não atribuímos humanidade aos demais seres. Mas, o que é pior, colocando o corpo cartesiano, esse mecanismo separável em partes, manipulável, autopsiável, passivo, no centro de um sistema de conhecimentos calcado na cisão entre natureza e cultura e pressupondo, como fazia Descartes, que os animais não têm alma, que seriam mecanismos autômatos, fatiamos as esferas de nossas vidas: corpo é diferente de alma; só humanos têm alma, rim é rim, bois e homens os têm, mas, como os bois não têm alma... Assim como fatiamos as esferas de nosso conhecimento: matemática, química, física, história, geografia... alocamos o mundo em caixinhas, como Procustos ensandecidos que, não contentes em estripar a terra para extrair-lhe “recursos naturais”, cortamos e separamos a golpes de cutelo epistemológico.
O que é saúde? O Brasil vive, hoje, uma terrível epidemia de câncer: no filme “O veneno está na mesa”, Silvio Tendler alerta: o agronegócio, que devasta a Amazônia, promove o etnocídio indígena, está intimamente associado ao uso de pesticidas que causam essa epidemia. O que é doença? Vivendo e trabalhando com os povos indígenas, aprendi a fazer explicações sobre nossos próprios regimes de saberes. E, talvez, a fazer algumas perguntas: o que é qualidade de vida? O que seria cura? Vivemos a derrocada do Estado democrático de direito. O SUS capitula, juntamente com os demais direitos que constituem e base de nossa própria teoria do corpo e da pessoa.
“Dominamos a natureza”. Do alto do pedestal de nosso Totem Estado Pós-Moderno, pior, meu amigo Sisiwa, classificamos os próprios homens: sob o jugo de números, alocamo-los em um sistema de status que varia segundo as cifras que possuem os indivíduos em suas contas bancárias – variando, assim, seu grau de humanidade. Estamos todos doentes, e assim ficaremos, infelizmente, cada vez mais, ingerindo pesticidas, alimentando-nos mal, hipertensos, desnutridos, obesos, exaustos. Com a diferença de que não haverá sequer um sistema público de saúde para curar as feridas aparentes que decorrem da doença generalizada de nossa alma.

Macapá, setembro de 2016





[1] CAPORRINO, B. W.. Pequena autópsia de um povo sem alma - Um relato da experiência com o Programa de Formação de Pesquisadores Wajãpi e de quase morte nas redes do SUS do Pará. Revista Peixe-Elétrico, São Paulo, p. 01 - 22, 14 set. 2016. (http://www.e-galaxia.com.br/produto/peixe-eletrico-06/ )