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sexta-feira, 13 de junho de 2014

De Recreio

De recreio[1]
Bruno Walter Caporrino
(Macapá, novembro de 2011)


Por mais distantes, variadas e isoladas que sejam as cidades, e, mais ainda, as comunidades ribeirinhas que se espraiam pelas restingas, no caso dos grandes rios, ou nos afluentes ainda menores dos seus contribuintes, na Amazônia, há algo que as liga, que as une, que as comunica: a água. O elemento universal na vida amazônica constitui grandes e milenares vias que celebram a teoria de Torricelli e comunica os vasos: as bacias, as comunidades e as pessoas que nelas habitam.
Contrariando soberanamente os patéticos esforços urbanizantes, industrializantes, dos arautos do “desenvolvimento regional” – ou seja, da moderna exploração da delicada mão-de-obra de belas meninas indígenas, hábeis no tecer cestos, para as linhas de produção de eletrônicos da Zona Franca – e rindo-se deliciada das fracassadas e quixotescas estradas (de ferro ou não) que os governos militares tentaram impor a si, a Amazônia deleita-se em cobrir de mata projetos de um Brasil “moderno, urbano, industrial” que só encontra ecos nos mercados de capitais e na ideologia dos “50 anos em 5”: porque se há uma Trans-Amazônica, uma via que a comunica, esta é a calha dos grandes ou pequenos rios.
E, se há algo isola estas comunidades, é o mesmo elemento que as comunica todas: a água afeta tudo e todos no universo amazônico, quase numa ode à Espinoza, afetando todos os elementos e conduzindo toda a energia e as trocas entre eles. Vivendo em função dela, senão sobre ela (em barcos, canoas, casas flutuantes ou palafitas) o amazônida agrupa-se com maior ou menor rarefação às margens dos rios, e, assim, mesmo sem iluminação outra que o breu ou o sebo das velas, sem telefonia ou qualquer outro meio de comunicação eletrônico, ele sempre se valeu dos grandes ou pequenos barcos que percorriam cada igarapé ou rio onde houvesse borracha e caucho, peixe, carne de caça ou peles a trocar por pilhas, rádios, tecido, panelas, cachaça, sal, açúcar, café, toda sorte de produtos que o caboclo, mesmo em sua auto-suficiência, não produzia, mas desejava.
O marreteiro, este condutor do batelão que se embrenha nas curvas e liga aldeias a seringais, assume assim, na Amazônia, o lugar de um mito histórico: quase um agente do Leviatã tirânico que, proprietário dos grandes vapores, dos seringais, dos barracões, e das almas retirantes e sua produção, ele comunica, troca, faz o escambo que permite a aquisição e venda de bens, e, mesmo explorando o indígena, o seringueiro, ou o caboclo filho dos dois, presta-lhe de certa forma um serviço: em seu batelão, escoa-se a produção local dos recantos mais aparentemente inacessíveis, até as vilas ou cidades maiores, onde, do porão deste batelão, passavam e ainda passam para armazéns, muitas vezes flutuantes que os repassam aos porões dos recreios, que os levam às capitais.
Em contrapartida, o marreteiro, por levar mercadorias de uma calha a outra, transpondo as “bolas” de “terra firme” antigamente muito mais difíceis de se transpor, acabava tecendo, qual uma Penélope paciente, teias de sociabilidade que apenas a Radiobrás, em seu programa matinal captado por todos os rádios portáteis (comprados ao marreteiro, assim como suas pilhas) conseguia: ele comunicava pessoas, comunidades, levando não apenas cartas de amor como testamentos, documentos, dinheiro, aflições e angústias aos solitários homens que insistiam em percorrer estradas de seringa longe das esposas.




O mesmo faziam os grandes vapores, elegantes e imponentes, todos em ferro, que eram manipulados pelos proprietários dos seringais, dos barracões, e das almas que alimentavam a tudo isso em regime de servidão, através do sistema de aviamento que os obrigava a viver para trabalhar na dura lida tão rica e belamente narrada pelo magistral Arthur Engrácio, pelo exímio Ferreira de Castro.
Mas a diferença, contudo, entre ambos, residia nos percursos: os vapores, que ostentavam o poderio de seus proprietários, faziam as grandes linhas, ligando as capitais (Manaus, Belém, Rio Branco) aos seringais e fazendas, ao passo em que os batelões seguiam adiante, enfrentando praias, restingas, paus, e toda sorte de desafios que apenas aqueles que já se dedicaram a viajar sozinhos numa pequena embarcação rio acima saberão do que se trata aqui.
O fato que nos interessa aqui é que, com a configuração de um sólido mercado capaz de absorver a borracha escoada pelos vapores e pelos batelões, acabou por agitar-se as vias fluviais, e permitir-se a diversos armadores independentes estruturar embarcações em madeira, perfeitamente elegantes e adequadas ao contexto naval e cultural local, e cujo feitio impressiona pelo equilíbrio das formas, pelo esmero na confecção e pela navegabilidade ligeira e vacilante, mas segura e serena.
O aumento no tráfego de correspondência e produtos engendrou uma expansão no mercado de navegação fluvial, já que para além dos seringais, comunidades começaram a se configurar  como vilas, ao passo em que em alguns pontos, onde soliloqüentes casas de madeira flutuantes ou sobre palafitas começaram a se “conurbar”, para atender ao aumento no número de seus moradores.
Para atender à esta demanda, construía-se estas embarcações de feitio extremamente elegante, compostas geralmente por dois conveses, e, no caso das mais portentosas, três conveses e uma tolda que fazia as vezes de área de lazer, da ainda existente “primeira classe”: trata-se das Gaiolas.
Concomitantemente ao aumento da demanda de embarcações para escoar a produção, comunicar as comunidades e vilas e levar passageiros que até pouco tempo simplesmente não existiam, tomou a Amazônia uma cultura inédita até então, fruto das interações históricas entre diversas (e variadíssimas) etnias indígenas com ex-seringueiros (fugidos ou “alforriados” do aviamento), adaptando-se estilos de manejo simbólico, cultural, religioso, lingüístico e concreto do mundo, num constante fluxo de trocas e co-criações coletivas – mas isoladas, distantes, o que garantiu seus feitios tão diversos.
Se o mundo do seringal era, para o indígena cooptado ou para o migrante ludibriado (que inicia sua pesada lide devendo, um mundo de trabalho pesado e isolamento e solidão), com o boom da borracha e a conseqüente queda de valor do produto fizeram com que houvesse uma dispersão demográfica sem precedentes na região: e as embarcações independentes que faziam o tráfego de produtos, correspondência e passageiros (até então inéditos, como se disse) perdem paulatinamente o nome de Gaiolas (denominação devida ao elegante gradeamento de madeira cujo feitio varia em função da região, da calha navegada e à associação entre navegação e aviamento, semi-escravidão, na mentalidade do seringal) e ganham, no Amazonas, o nome de Recreios.
Por se tratar de longas distâncias a serem navegadas, os passageiros que esperavam reencontrar entes queridos ou oportunidades de trabalho em cidades e vilas distantes, bem como deixá-las ou retornar a elas, viam-se obrigados a largar os afazeres diários (sempre muitos, fosse no seringal ou na serena vida independente do ribeirinho) e deitar-se na rede, aguardando dias ou até semanas a bordo, rio acima, ou abaixo, até encontrar seu destino. O que nos leva a pensar, à rede que balança carinhosamente a cada banzeiro, que talvez, e muito provavelmente, o destino seja justamente o viajar, navegar sendo tão preciso, tão agradável e seguro, a bordo de um Recreio, a jogar cartas, dominó, prosear ou simplesmente dormir e descansar, que viver não é preciso.
Ao passar dias a bordo, conhecendo meninas bonitas ou homens interessantes, e muitas vezes casando-se ou namorando com eles por longos anos, os passageiros vivem a terceira margem do Rio: consagrando seu fluir existencial, que se dá em função da água que comunica e toca a tudo e todos, eles se deixam estar, recreando, dedicando-se a diversas formas de entretenimento e lazer (o que dá força ao nome amazonense para as antigas gaiolas, que no Amapá e no Pará são denominadas, hodiernamente, apenas de navios).






Constituindo, assim, verdadeiras ilhas de sociedade (e sociabilidade), de Cultura, que se movem elegantemente em meio à Natureza, singrando elegantemente os mais comoventes veios amazônicos, os Recreios prestam às cidades, vilas, e comunidades, o mesmo serviço que lhes prestavam os antigos vapores e batelões de marreteiros: comunicam, trocam, equalizam informações, paixões e desilusões epistolares, escoam a produção de aqui para ali, de cá para acolá. O Recreio que corta o ignoto mundo amazônico nas noites estreladas é uma ilha de luz que baila sobre as águas, em festa, deixando a tolda ou a popa do convés superior ao arrastapé, ao forró, à “bagunça”: havia antigamente trios que jogavam ao vento notas musicais de forró tradicional; atualmente há imensas caixas de som que executam em alto e bom som o mais agitado e recente forró, o mais popular techno-brega, o mais acelerado melody, ao passo em que o conhaque, a cachaça, a cerveja e os ensopados de músculo ou tracajá, deliciosos e apimentados, matam a fome.




Nesta imensa trama de relações aquáticas, transpondo calhas, ligando mundos (se queres ver algo de universal, volta os olhos para tua aldeia, já dizia Guimarães Rosa), os Recreios cruzam histórias, fundem trajetórias pessoais, ensejam casamentos, namoros, ataques do matreiro boto, negócios, e levam aos mais distantes (embora tudo seja uma questão de perspectiva) locais os fios da sociedade, qual uma Penélope que, delicada mas decidida, enciúma-se por fim do Teseu que deixou-a para ir ao seringal em cujos meandros reina o Minotauro do capital extrativista de acumulação (essa sim a única primitiva e selvagem) e decide navegar, ela mesma, em festa, noite adentro, percorrendo os traçados que Ariadne espalhou no labirinto dos rios.





[1] Extraído de livro homônimo ainda em revisão.

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