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Resíduos e resquícios
Bruno
Walter Caporrino[1]
Sobre as águas.
Assim, simplesmente. Nunca contra as águas, e nem mesmo a favor delas, porque com
elas, nelas. É assim que se
constroem as vilas e comunidades que se espraiam pelas restingas, furos,
voltas, paranás, lagos e rios da bacia amazônica: sobre as águas, em função das
águas, ao ponto de ser possível dizer que a vida das populações ribeirinhas se
define conscientemente em sua relação com o universo água que contamina, liga e
afeta tudo na Amazônia.
Muitos pensam,
até hoje, que o universo amazônida é pautado pela escassez, enquadrando as
imagens das casas ribeirinhas, seus jiraus e pontes em uma moldura
significacional e simbólica que cai por terra (ou melhor, vai por água abaixo)
quando confrontada com a realidade múltipla e vária que esse jeito de viver,
estar e pensar o meio apresenta através das vilas, casas e embarcações.
A história da
ocupação da Amazônia é prenhe de provas de que o modelo urbano que emerge dos
feudos europeus trazendo consigo valores e modos de produção pautados pela
sedentarização, centralização e domesticação – e, portanto, dominação – de uma
natureza entendida como matéria inerte e inanimada é, apenas, como todo modelo,
um dentre muitos possíveis. Mostra também que os retirantes nordestinos que
deixaram a seca para sobreviver num universo pautado pela água em seu grau
máximo são os mais hábeis artífices do que nos define como homens: a capacidade
de lidarmos com as gentes e com a matéria do mundo de um modo dialético que nos
permita adaptá-los a nossas tramas conceituais sem contudo moldá-los ou
retalhá-los às nossas.
A ruptura
ocidental entre Natureza e Cultura, esse par cartesiano que é o mito fundador
de nossa cosmologia, faz pouco sentido na mente dos valentes exilados da seca que,
obrigados a conviver com tantos Outros (gentes tão diversas, bichos que são
gente, ou seja, animais que são animados e, portanto, agentes), de modo que
aprenderam com os indígenas a entendê-los sob outras modalidades de relação
pautadas por sua vez pela ideia de que todo ser vivo é dotado de alma (é
animado) e que alma é exatamente a capacidade de entender, apreender, perceber,
interagir e, sobretudo, agir.
Isso se revela
de forma concreta e tangível no modo como essas pessoas constroem suas casas,
produzem sua comida, plantam suas roças, extraem seu açaí, cobrem suas casas
com palha de ovi ou buçu. Disso decorre que a vida ribeirinha não é uma vida
“às margens”: eles não estão às margens do “progresso” e da “civilização”
simplesmente porque são uma civilização em função de suas interações com todas
as outras civilizações com as quais com-vivem. Seu viver não é nem uma luta
árdua contra, nem uma ode bucólica à “natureza”, simplesmente porque essa não
existe: tudo, na vida ameríndia, cabocla e amazônida, é cultura.
O caso das áreas
de ressaca na cidade de Macapá é uma metáfora real e concreta de como o
encontro entre cosmologias e, portanto, modos de produção e entendimento da
vida é o real mote da história humana da Amazônia, ao demonstrar como jeitos de
ocupar o espaço, produzir e descartar a vida podem ser diversos e que não há um
modo universal melhor do que os outros, se pensamos em adaptação e não em
evolução, quando almejamos nos desenvolver como sociedade.
Trazendo consigo
a modalidade de relação com o rio e com o universo amazônico, os ribeirinhos e
caboclos que foram atraídos para Macapá a partir da década de 1950 passaram a
exercer ali suas maneiras de viver e pensar ao habitar os rios, lagos e áreas alagáveis
conhecidas como ressacas, construindo casas sobre jiraus (palafitas). Mas a
vida às voltas com uma cidade pensada e realizada de acordo com valores e
modalidades de entendimento urbanos ocidentais, que encontra no burgo seu
arquétipo e nas metrópoles a sua obra-prima, exigiu que essas populações
adaptassem uma vez mais seu modo de vida já tradicional com plasticidade tal
que o resultado é uma incrível interação entre modalidades de relação
aparentemente opostas.
As áreas do
território de Macapá regidas pelo regime das marés do Amazonas são áreas baixas
por onde o rio adentra a cidade, como numa metáfora sorrateira do modo como a
Amazônia sempre se ri da tendência ocidental de dominar e domesticar isso que
seria a Natureza. Aos caboclos coube, portanto, a astúcia de adaptar seus modos
de pensar-se e lidar com o espaço edificando, em madeira, verdadeiras vilas
ribeirinhas sobre jiraus nas quais o rio e o córrego são a rua, e as palafitas
se estendem ligando casas e formando praças sem qualquer planejamento que não o
individual, num exercício pleno e autônomo de cidadania que consiste em deixar
que a cidade se faça a si mesma através das mãos e engenho dos próprios
cidadãos.
Assim, em áreas
como Congós, grandes extensões do Aturiá, do Igarapé das Pedrinhas e do Canal
do Jandiá, populações ribeirinhas construíram verdadeiras polis onde interagem homens e onde estes interagem com o rio, suas
marés e vontades de forma dialógica e vária, transpondo para o âmbito urbano
modos ímpares de entender o espaço, o tempo, a vida e seu fabrico. Repletas de
“pontes”, essas áreas são ocupadas por casas ribeirinhas ligadas e muitas vezes
assistidas por um igarapé, canal ou baixio alagável (a ressaca) que permite que
os barcos e canoas substituam os carros e motos, que são a realização máxima do
modelo urbano ocidental.
Todavia, àqueles
que pensam que as áreas de ressaca são um problema (como o Estado, esse leviatã
estatístico e homogeneizante), as comunidades das ressacas constituem desafio
por serem justamente uma provocativa solução. Longe de serem invasões, como se
alega cotidianamente, são modos de entender o espaço a todo momento invadidos
pelo modelo urbanístico caótico pautado pela expansão desenfreada, orquestrada
pela “mão invisível” de concreto e alvenaria, pela ignorância completa das
necessidades e sobretudo potencialidades do meio no qual se inserem e com o
qual lidam.
Em vez de
invadir, essas comunidades estão sendo invadidas, cercadas pela especulação
imobiliária e por projetos do Estado que, não sendo voltados a beneficiar o
cidadão mas sim o Capital, ignoram completamente os modos de vida e organização
das pessoas que, morando nas ressacas, provam ao mundo inteiro que é possível
com-viver com o rio, estar com ele em constante diálogo e interação.
Diante da
incapacidade do Estado de ouvir e entender, as comunidades remanescentes das
áreas de ressaca são cercadas por avenidas barulhentas e assoladas pelos
problemas decorrentes da aglomeração urbana para os quais seus moradores ainda
não conseguiram encontrar soluções mas que, dada a plasticidade de suas visões
de mundo, poderiam conseguir, se o Estado não os disciplinasse a entender-se a
si mesmas como um problema ambiental e, sobretudo, um problema legal e social.
Ao preconceito
dos moradores de Macapá que enxergam as comunidades de ressacas como resquícios
do atraso e da primitividade contra a qual a cidade copiada dos modelos
fracassados da urbanização ocidental seriam erigidos como um monumento,
assoma-se a falta de iniciativas do Estado e, por fim, a grave falta de
auto-estima dos moradores que passam a se entender a si mesmos como invasores,
atrasados, favelados, marginais. Por conta disso, o modelo de apropriação do
espaço coletivo, pautado nas comunidades ribeirinhas pela interação com o meio e
articulado pelo debate entre os seus entes constituintes, é isolado e minado.
A tradicional
modalidade de relação com o que deve ser descartado, com aquilo que não se
deseja mais, típica das sociedades ameríndias, passa de solução a problema: nas
comunidades indígenas tradicionais, tudo o que se produzia, produzia-se para si
com aquilo que era simplesmente extraído ou dado pelo meio. Lembremos os
artefatos produzidos com tecnologia compartilhada por todos os membros dessa
sociedade: a vida é, nesse sistema, produzida por si mesma, para si mesma, sem
intermediários como o dinheiro (equivalente universal) ou o patrão, num
compartilhamento pleno de saberes e técnicas. Todos sabem fazer tudo o que
precisam. Os produtos extraídos meio, tais como peneiras, abanos, cestos, casas
e barcos eram facilmente deglutidos pelo próprio meio, bastando jogá-los ao rio
assim que não fossem mais ser utilizados.
Uma vez que
bastava jogar ao rio um produto inutilizado e pronto, é comum visitar
comunidades ribeirinhas e ver as pessoas descartando toda sorte de coisas de
suas embarcações e casas assim que a maré sobe. Nas comunidades de Afuá,
Gurupá, no Bailique, é comum encontrar praias onde o rio acumula toda sorte de
artefatos, como matapis (estrutura de palha trançada em formato cilíndrico para
aprisionar camarões), esteiras, cestos, tábuas serradas. As crianças se
divertem nesses ambientes em um exercício arqueológico muitas vezes engraçado,
a gritar “olha! A panela da Velha Pobre”, apontando para uma cuia quebrada, e
fazendo referência à Serra da Velha Pobre, próxima a Almeirim, sobre a qual
costuma-se dizer que costumava errar pelas vilas e comunidades catando toda
sorte de artefatos para re-criá-los e, assim, dar-lhes novo significado e
existência.
Não é de lixo
que se trata, mas de objetos descartados que, ao deixarem de ganhar significação
e uso para os homens, passam a perder seu encantamento, e tornam a ser palha,
fibra, madeira. O hábito de deitar ao rio toda sorte de resíduos orgânicos tem
origem nessa mesma modalidade de relação, e, como é comum dizer-se, atrai os
peixes para mais perto do jirau, de modo que a belíssima compreensão de
Lavoisier realiza-se nesses contextos como em nenhum outro: nada, absolutamente
nada, se perde. Tudo se recria. Basta, portanto, extrair, transformar, e, depois,
descartar.
Mas, tal como o
modo de produção da vida ocidental influenciou a ocupação do espaço, a condução
e equação da vida econômica e simbólica, ele também proporcionou mudanças
bruscas no modo como se produz, utiliza e descarta utensílios. Longe de poder
simplesmente jogar pela janela o material confeccionado para usufruto próprio
com a matéria do próprio meio, devolvendo-o a ele, agora, com cada vez mais
produtos manufaturados introduzidos na vida ribeirinha, agora as pessoas se veem
obrigadas a acumular dentro de suas casas toda sorte de material que antes
bastava descartar.
“Fazer o quê não
é? Essas coisas são todas duras. Duram muito mais, mesmo quebradas. A gente
joga do catrario, do navio, do iate, porque não tem condições de levar com a
gente a bordo. Veja o senhor: esses cestos todos que a gente usa para carregar
o caroço do açaí. Eles se acabando, vão tudo para dentro do rio, mas é palha,
se acaba na hora. Essas coisas de plástico, essa lixarada toda aí de cidade,
isso o povo tem que aprender ainda a usar”, diz Seu Inácio, que vem semanalmente
à Macapá à bordo de sua lancha vender o açaí que retira de sua comunidade, no
rumo da baía de Afuá. No caso, Seu Inácio se refere ao azafamado porto do Igarapé
das Mulheres, onde encostam embarcações de pequeno e médio porte que ligam a
metrópole às vilas e comunidades e onde esse choque de modelos se revela no
acúmulo de lixo no leito do pequenino estuário.
Quando objetos
diferentes, que materializam diferentes modos de produção da vida, de divisão
do trabalho, e de relação com a matéria do mundo, encontram-se com esse jeito
de viver e com esse comércio do tempo e do espaço, o lixo passa a ser, então,
um dos problemas mais imediatos postulados pelo processo de acumulação das
pessoas nas áreas de ressaca e no entorno dos baixios e igarapés.
Devemos lembrar,
entretanto, que essas comunidades são na verdade vítimas em vez de algozes: pululam
iniciativas das próprias comunidades para coleta e tratamento de seus resíduos
sem apoio algum do Estado. Muitos se organizam em mutirões semanais, detectando
os canais por onde entra mais o lixo e os vedando com telas e grades. “Aqui no
Jesus de Nazaré, a gente se organiza sem se reunir. Sozinhas as pessoas sabem
que têm que levar o lixo lá para a rua de acesso à ponte. É muito comum os
vizinhos juntarem o lixo aos domingos, ouvindo um som, assando um peixe
(risos). É uma questão de educação, não precisa reunir. Cada qual sabe seu
fazer. Mas o lixo que fica aqui não é a gente que joga não, por isso que eu
falo: ele vem todo com o vento, no verão, e com as enxurradas, no inverno”, diz
dona Nazaré, moradora da área desde que começou a ser ocupada, há mais de 40
anos, em depoimento colhido num ensolarado domingo em que, recolhendo as
garrrafas PET e sacolas plásticas que flutuavam defronte e debaixo de sua casa,
ela e a vizinha abateram uma moreia cuja gordura usariam para fazer pomadas.
“Aqui no
Perpétuo Socorro, a gente se criamos desde meninas. Meu pai pescava, e meu avô
era carpinteiro naval. Tudo aqui era bairro de pescador. Não era essa sujeirada
toda não. Antes, tinha era mato. Aparecia até cobra dentro de casa. Tem o caso
do Anísio porre, que dormiu no jirau e acordou abraçado com sucuriju. As
pessoas ouviram-no murmurar palavras de amor, e foram espiar, de gaiatice,
porque ele era viúvo há muitos anos. O susto foi grande quando viram a bicha
toda enrolada nele. Tinha bicho, tinha tudo, só não tinha era sujeira. Meu avô
criou tracajá e jacaré na porta de casa até bem pouco antes de morrer. Não
tinha prefeitura, nada. Mas cada qual cuidava do seu pedaço. Hoje isso aqui
parece que inchou, tem gente um em cima do outro, é barulho, é briga, é lixo.
Antes não era assim não”, enfatiza Dona Nita, simpática moradora do Perpétuo
Socorro que prega o evangelho todos os domingos na penitenciária estadual e faz
parto nas comunidades do entorno de Macapá.
Vemos assim que
grande parte do lixo que flutua nas áreas de ressaca vem não dos moradores
dessas áreas mas das ruas, córregos, galerias fluviais e lixeiras da cidade
seca que as envolve. O vento e as chuvas arrastam para os canais e igarapés
toda sorte de lixo que vem do asfalto, sendo um problema tanto ambiental quanto
social porque as comunidades se veem obrigadas a conviver com os detritos sob
suas casas. Para além das doenças e do desconforto provocados pelo acúmulo de lixo,
as comunidades que criam tracajás e peixes no quintal de casa sob as pontes
sofrem o preconceito vindo daqueles que justamente sujam suas áreas e os taxam de
marginais sem higiene e boas condições de vida.
O caso do lixo
nas áreas de ressaca de Macapá demonstra com clareza que as gentes e coisas
interagem de forma ativa e que modelos de ocupação do espaço podem com-viver entre
si, conquanto haja vontade política dos cidadãos para entender que as áreas de
ressaca não são um problema, mas sim uma solução, e que os moradores têm
respostas concretas a dar sobre o problema. “Teve um monte de estudante aí que
veio aqui, de uma faculdade, querer ensinar a gente a cuidar do nosso lixo.
Tinha que ver, as meninas, tudo de salto alto prendendo nas pontes, falando que
a gente suja tudo, que querem nos ajudar a recuperar os impactos ambientais de
morar aqui. A gente não é bicho não, isso aqui não é zoológico: a gente cuida
do nosso lixo, o asfalto é que não cuida do dele, e a gente que paga o pato”,
diz Seu Walmir, carpinteiro naval em Santana.
O lixo que
assola essas comunidades é um exemplo concreto do modo como a cidade ocidental
e o modo de produção da vida que se elogia como monumento é cego, surdo e
falido.
Talvez seja
possível dizer que, sob essa ótica, lixo é o jeito como produzimos a vida nas
modernas sociedades industriais urbanas, pois o lixo não é outra coisa além do
que nós mesmos nos esforçamos para fabricar com empenho, engenho e técnica, e
que depois descartamos. Nesse sentido, desenvolvimento consistiria justamente
em produzir a vida e não o lixo, descartando aquilo que pudesse ser
transformado sem se perder, ou reutilizando aquilo que nós produzimos de modo
tal que o meio não consegue absorver.
Se pensarmos
nisso sob a ótica do desenvolvimento, não haverá dúvidas de que o jeito
ribeirinho, indígena, e caboclo, de produzir a vida e descartar produtos é mais
eficiente, e tecnologicamente desenvolvido. Mas os produtos inorgânicos não
serão abandonados: será necessário, então, fortalecer a organização local das
pessoas, valorizar as boas práticas que já existem, e, sobretudo, mudar o que
não são hábitos, mas aspectos de uma visão de mundo diferente.
[1] Bruno Walter Caporrino é antropólogo de formação e indigenista por profissão junto ao
povo indígena Wajãpi, no Amapá, pelo Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, Iepé.
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