Leibniz e Darwin na Amazônia
(Publicado em: http://urbania4.org/2012/12/12/leibniz-e-darwin-em-afua/)
(Publicado em: http://urbania4.org/2012/12/12/leibniz-e-darwin-em-afua/)
Bruno
Walter Caporrino[1]
Quem
chega à Macapá por aeronave (um dos únicos meios para quem vem de longe) e tem
a sorte de chegar nos únicos dois vôos que aterrissam à tarde, tem o incrível
privilégio de, tendo partido de Belém, sobrevoar e contemplar do alto os campos
alagados e as ilhas do arquipélago de Marajó, onde a hercúlea mata amazônica,
repleta de grandes sumaúmas, angelins e de todas as mais belas variedades de
palmeiras, se abre respeitosamente, reverencialmente, através de incontáveis
canais, para que o rio corra, cortando-a, rumo a seu grande fim (finalidade e
término): o encontro com outro gigante, o Atlântico.
Aterrissando,
desembarca para a pista abatida por tórrido sol, em especial nos meses de
verão, e caminha até a modesta sala de embarque do pequenino aeroporto. De lá,
mesmo que parta para o recém-inaugurado hotel-padrão, climatizado e
geneticamente igual à todos os da rede, ou que vá aos mais tradicionais (tendo
a sorte de ganhar uma vista para o Rio Amazonas, no Santa Inês), o visitante
não percebe que chegou à uma cidade amazônica.
O
mesmo não ocorre ainda nas cidades amazônicas, por maiores e mais cosmopolitas,
metropolitanas (para o bem e para o mal) que sejam: mesmo que em Belém ou
Manaus shoppings e equipamentos urbanos padronizados os haja em quantidade, a
feição dessas cidades, o aspecto e o portar de seus transeuntes, a trilha
sonora e os odores e cores, sabores e produtos que tomam as ruas, são únicos, e
revelam que o viajante que flana por suas ruas e avenidas encontra-se numa
cidade incrustada no meio da Amazônia, de modo que, se a cidade invadiu,
tomando de assalto a selva, esta dá o revide e a invade (especialmente na
Manaus do inverno, onde o Negro toma de volta tudo o que lhe é de direito).
Mas
Macapá é uma capital amazônica sui
generis. A começar pela estrutura de sua trama viária, extremamente
retilínea e quadrangular, revelando forte e racional planejamento calcado na
idéia de tábula rasa, passando pela largura destas avenidas e das possíveis
calçadas (que quase nunca se realizam como tal), o viajante só se lembra que
está numa cidade amazônida quando, seguindo uma dessas retas avenidas, esbarra
com o Rio em toda sua magnitude, e pode contemplá-lo ao lado de seu belo vigia:
a Fortaleza São José de Macapá. Àqueles intrépidos que a cidade dá o privilégio
de permanecer por mais de alguns dias ou meses, residindo na cidade, é
facultado o prazer da descoberta (como ocorre em toda cidade, aliás): e se
depara com as casas de madeira avarandadas, pequenas, sobre palafitas, em plena
região central; as pontes, também de madeira, esguias ruas de palafitas sobre
“os baixos”, as “ressacas” que o Rio alaga quando o Mar, um tanto sentimental,
barra-lhe as investidas com a cheia de sua maré.
Mas
vagar pelas “pontes”, ao mesmo tempo em que é uma experiência inenerrável,
permite ao observador atento assombrar-se com a cisão entre natureza e cultura
consagrada pelo Urbano moderno, mas de uma forma incrível por Macapá: ao lado
das edificações com ares modernos, todas envidraçadas, climatizadas, imitando o
estilo pomposo-empresarial dos grandes prédios que assediam cidades como São
Paulo, existem terrenos baldios abandonados não só ao mato como à especulação
mais aguda, atrás dos quais se vê belíssimos, apaixonantes, buritizais alagados
que filtram o sol em toda sua dureza, permitindo que se coe por suas folhas e
esbarre no fino espelho d´água que os sustenta e reflete, reproduzindo-os.
Moradores
da cidade há, no entanto, que nunca provaram um pedaço de pirarucu. Que
desconhecem a diferença entre um tucunaré e um surubim. Que não sabem a
diferença entre uma bacabeira e um pé de açaí. Dentro de suas modestas
edificações (todas climatizadas), eles se valem de um ideal de urbanidade e de
progresso tão cruel quanto exótico, e, devo dizer, nocivo: longe de podar as
agradáveis mangueiras que proliferam pela cidade acolhendo os transeuntes sob
sua sombra alegre, dando-lhes frutos doces gratuitamente como num sonho
rousseauniano, eles as “toram”: cortam, extirpam, eliminam.
O
“mato” que invade os arredores das casas cobertas com escaldante amianto
(símbolo tradicional de status na Amazônia inteira, à época em que, saídos dos
seringais os hoje caboclos ainda construíam suas elegantes habitações com
cobertura de palha) é simplesmente subsumido, e as avenidas e ruas,
impressionantemente largas, que poderiam ser tomadas por mangueiras e cheirosos
pés de cupuaçu, são assoladas pelo sol mais equatorial do Brasil (já que Macapá
é a única capital cortada pela linha do Equador). Isso faz de Macapá uma
metáfora do Brasil: como no poema Pneumotórax de Manuel Bandeira, toda uma vida
que poderia ter sido, e não foi.
Assim
como o Brasil parece ter se desenvolvido de costas para a América Latina,
contemplando primeiramente a Europa, e depois os Estados Unidos, com avidez,
Macapá parece ter crescido de costas para a Amazônia, contemplando com inveja, pela
televisão, os grandes centros urbanos. Edificada em torno da Fortaleza São José
de Macapá, a cidade possui uma história tão singular quanto o Estado, que até
1988 era território federal. Erguida sobre um platô alto cerca de 2m de altura
em relação ao Rio, ela se espraiou por um bioma que poucas pessoas sabem que
existem na Amazônia: o cerrado. Povoada por forasteiros que se relacionaram de
forma colonizadora com os indígenas e recursos locais, a região toda foi tomada
de pronto por garimpeiros febris por ouro e madeireiros ávidos pelas cédulas
que cada folha poderia produzir.
Em
Macapá houve um processo contrário ao que houve na cosmopolita Manaus: recebendo
incentivos fiscais e injeções fenomenais de capital estrangeiro, a capital do
Amazonas viveu era de ouro com o ciclo da borracha (extrativismo, de certa
forma), que levou para o meio da Amazônia retirantes flagelados escravizados
para que, no Theatro Amazonas, as classes favorecidas pudessem apreciar belas
óperas, e gozar a fresca ouvindo gramofones ao apreciar suco de graviola e
cupuaçu em suas varandas neo-clássicas. As interações entre os europeus, os
japoneses, os nordestinos seringueiros e os indígenas foram se consolidando
historicamente de modo a criar uma cultura e uma espacialidade afeita ao
contexto, própria a ele, e que se reflete na cidade: cosmopolitismo.
Isso
não parece ter ocorrido em Macapá. Ponto de passagem dos garimpeiros que
desbravavam os rios pedregosos e de difícil navegação, a cidade encontrou no
ouro extirpado das entranhas da terra e na mata deitada abaixo suas únicas
fontes de recursos, coroada pela mineração que instalou-se com peso no estado
em fins da década de 1970.
O
modelo trazido pelos empreendedores da cidade de Macapá foi o da urbanização
ocidental predatória, que encontra na cisão natureza/cultura sua pedra de
toque: ser índio é ser subdesenvolvido, e morar “no mato” é sinal de involução,
atraso. Almejando a evolução, instalou-se no cerrado uma metrópole que, de
costas para o Amazonas, mas invadida por ele em suas entranhas, por suas terras
baixas, luta como um Sísifo contra cada hera, cada liana, cada árvore, rumo ao
progresso, esse mesmo ideal que fez com que, em Progresso, no Mato Grosso (como
escreveu Wellington Cançado na edição 2 de Piseagrama), todos os pequenos
arbustos da tórrida avenida central fossem extirpados, em nome da urbanização e
do Progresso.
Eis
porque Macapá, consagrando a estrutura do pensamento de um tempo e de uma
sociedade (como toda cidade), pode ser tomada, assim como Progresso-MT, como
mais uma maquete em escala real dos valores e posturas epistemológicas das
classes dirigentes, pois é nisso que consiste uma cidade: uma fotografia da
estrutura de pensamento e das relações sociais que a subsidiam e que ela
subsidia, dialeticamente.
Deixando
Macapá de barco, deitando-se agradavelmente na rede sobre o convés superior,
num elegante recreio, tem-se a sensação de que a negação da “natureza” (e de
seus habitantes) em nome da “cultura” (ou seja, do Progresso e da Evolução que
culmina em metrópoles que têm nos shoppings a realização máxima dos burgos, (que
são a gênese das cidades modernas), percebe-se que tudo o que rodeia e invade a
cidade por suas baixas periferias é Amazônia, e a bela e preciosa cultura que
nela e por ela desenvolveu-se.
Chegando
ao pequeno município paraense de Afuá, sofre-se um choque. Construída
completamente sobre palafitas, em madeira, a pequenina e belíssima cidade marajoara
é a realização de um modo de viver e relacionar-se com o meio, com o contexto
amazônico, de forma inteligente e aperfeiçoada. Orgânica, em todos os sentidos
que o termo possa assumir. Pelas “pontes” de madeira que são palafitas,
passeia-se de bicicleta (única e exclusivamente, já que o tráfego de veículos
automotores é ali proibido por lei municipal) por entre as belíssimas casinhas
avarandadas, todas de madeira, pintadas das mais diversas cores, onde o esmero
na construção e na decoração revelam a presença cabocla, pois a casa cabocla é
tradicionalmente um símbolo de zelo, limpeza, frescor e cuidado.
Assim
como nas pequeninas e acolhedoras comunidades ribeirinhas que se espalham pela
Amazônia, Afuá é uma ode à vida amazônida: construída sobre as águas do rio que
tomam a cidade na maré alta sem mitigá-la, ela convive com o meio, fixando-se
nele de forma volátil e, por isso mesmo, perene, ao demonstrar que seus
habitantes não apenas conhecem-no muito bem, como fazem um pacto com ele e,
aceitando suas regras, lidam com elas naturalmente: cultura. Orgânico.
Das
pequeninas varandas das casas entrevê-se o soalho enceradíssimo e reluzente
onde crianças se refestelam, descalças no calor da tarde, a comer todas juntas
um pedaço de filhote, peixe pescado pelo próprio pai que acabara de retornar
com seu elegante batelão com motor-de-centro. Todas comem do mesmo prato, assim
como sói nas sociedades indígenas amazônicas. E na casa cabocla.
O
esmero da comunidade em zelar, cada qual por sua casa, e todos pelas vias
públicas, onde elegantes lixeiras acolhem os detritos devidamente ensacados a
serem recolhidos pelo lixeiro – que pedala – permite que se perceba um senso de
urbanidade e comunidade que só se encontra nas referidas comunidades
ribeirinhas.
Da
beira onde se amontoam as belíssimas e delicadas, mas valentes e portentosas
embarcações (recreios, batelões, catraias) de madeira, contempla-se o sol que
se põe na mata que jaz quase intacta – nunca virgem – há poucos minutos desta
cidade que desenvolveu-se a partir de uma vila ribeirinha e que assim soube se
manter.
A
antropologia contemporânea nos ensina que não há mata virgem: a Amazônia é um
grande jardim cultivado por mais de 5.000 anos de contatos e convívios humanos,
e a própria dispersão de muitas espécies vegetais e animais se deve justamente
à presença humana. Se às sociedades indígenas, em função de seu modo de
produção extrativista, foi permitido interagir com este bioma de forma a, mais
do que não extingui-lo, cultivá-lo, aos ocidentais que tentaram colonizá-la,
domá-la, foi relegado o mais cruel fracasso.
Quantos
Fitzcarraldos não pereceram por estas bandas após verem suas quimeras urbanas,
civilizatórias, tragadas por aquele mesmo componente que tentaram negar ao
domar: a natureza?
Em
Afuá, passeando pelas estreitas palafitas que são as ruas, sentando-se nas
praças, todas de madeira, sobre as águas, dormindo-se na rede, sente-se o frio
típico das regiões onde ainda há mata. Todas as habitações e embarcações são
construídas de modo a lidar, conviver com a água que é, assim, o motivo e ponto
de partida e de chegada de tudo. Em Macapá, ao contrário, é impossível andar à
pé, triunfando o modelo urbano das metrópoles que anulam o espaço público a bem
do triunfo do privado: há asfalto (escaldante), para os carros (climatizados),
mas não calçadas, para os pedestres.
Uma
comparação se faz, então, possível, tendo-se como eixo os modelos de acordo com
os quais cada uma dessas cidades, tão próximas mas tão distantes,
desenvolveu-se, tendo-se como eixo o modelo de relações (sociais, sobetudo) que
subsidia a cada uma: ao negar a natureza, Macapá pretende-se Progresso,
evolução; atende a princípios finalistas, ou seja, pressupõe em cada esquina,
ou obra particular, a idéia de que tudo deve tender à evolução, ao progresso,
ao urbano ocidental moderno, metropolitano.
Ao
aceitar a Natureza, por seu turno, Afuá realiza-se como cultura por uma outra
via: os homens vivem sobre as águas, constroem seu meio ambiente (e este é
outro componente da definição que podemos dar de uma cidade, ou seja, um
ambiente construído pelos e para os homens) sem negar o ambiente natural no
qual estão inseridos: vive-se em função da Amazônia, em Afuá, uma urbanidade
natural, coroando o ideal de adaptação, e não o ideal finalista de progresso e
evolução, já que este último, como nos demonstra a antropologia há anos, é um
ideal etnocêntrico que impõe o modelo europeu ocidental de homem e relação,
modo de vida e de produção (mercantilista, industrial), desclassificando todas
as outras modalidades ao considerá-las subdesenvolvidas, atrasadas.
Mas,
se buscarmos a origem epistemológica do próprio ideal de progresso e finalismo
em um de seus expoentes, o filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz
(1646-1716), encontraremos a tese de que o mundo em que vivemos é o “melhor dos
mundos”. Leibniz pretendia com isso que o mundo que vivemos é a realização da
consciência de um deus arquiteto que criaria tudo numa linha histórica que
tendesse ao aperfeiçoamento, à evolução: ou seja, à perfeição, à si mesmo,
portanto.
Mas,
errando por Afuá, tem-se a sensação de que a tese de Leibniz poderia ser muito
melhor aplicada à uma cidade se fizéssemos o exercício de, juntamente com
Charles Darwin (????-????) entender a vida, em sua totalidade, como um
constante processo sincrônico, e não diacrônico, de adaptação (ao contrário de
evolução e progresso): segundo Darwin, que nunca mencionou a palavra evolução,
os seres adaptar-se-iam aos contextos, tornando-se perfeitamente eficientes e afeitos
a eles, cada um a seu modo, não havendo uma série histórica que tendesse a um
fim, mas sim uma sucessão de contextos repletos de seres extremamente adaptados
a eles, ou seja, perfeitos, permitindo que se contemple a vida em todas suas
mais variegadas manifestações, sem superpô-las umas às outras de acordo com o
ideal de que, quanto mais humanas se pareçam, mais evoluídas serão.
Segundo
esta concepção, poderíamos extirpar o finalismo da análise, e entender os
seres, as culturas, e as cidades, como perfeitos construtos que, como pretendeu
Leibniz, são da forma que são (e não de tantas outras infinitas formas
possíveis) porque uma série de fatores concorreu para tal, configurando-se,
assim, como os melhores mundos. Possíveis: adendo importantíssimo.
Retorna-se
então, de Afuá, com a plena sensação de que aquela é uma cidade plena:
totalmente afeita ao contexto em que se insere, ela é um contexto onde uma
série de relações são perfeitamente afeitos a ela, encontrando-se em um estado
de adaptação e sustentabilidade que Macapá e outras metrópoles não encontram,
porque não são sustentáveis, e porque são sustentadas e sustentam um modelo de
compreensão do mundo e do espaço urbano que tem uma única finalidade: o lucro,
a mercantilização, a acumulação de capital, à revelia das pessoas, e do espaço.
[1] Bacharel
em Ciências Sociais pela USP, é fotógrafo amador e, pós-graduado em
indigenismo, atua como indigenista junto ao grupo tupi Wajãpi, no Amapá.
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