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sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Áreas protegidas e democracia

 

Áreas protegidas e democracia

Sobre participação cidadã e gestão integrada e participativa de áreas protegidas e gestão socioambiental

Bruno Walter Caporrino

Foto: Bruno Walter Caporrino. BR 210, Perimetral Norte, dentro da Terra Indígena Wajãpi

Promulgada em 1988 a Constituição Federal estabelece, pela primeira vez na história do país, os fundamentos, princípios e objetivos de um Estado democrático de direito e, por isso, calca esse programa no pilar da participação cidadã.

Organizado como uma pirâmide, seguindo o princípio da pirâmide de Kelsen, esse Programa está estruturado de maneira a, desde seu vértice, iluminar todos os demais artigos e leis. Funcionando como uma cascata, o Diploma Constitucional conta com 5 cláusulas pétreas: seus 5 primeiros artigos são inquestionáveis e inegociáveis porque contém os elementos estruturais de todo o projeto de Estado democrático de direito.

Em seu primeiro artigo, a Constituição estabelece, parágrafo único, que “todo o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos”, logo depois de determinar, ainda neste Artigo, que são fundamentos deste projeto de Estado democrático de direito “I–a soberania; II–a cidadania; III–a dignidade da pessoa humana; IV–os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V–o pluralismo político”.

A cidadania e o pluralismo político são os fundamentos que mais nos interessam aqui porque serão eles a base das políticas públicas voltadas ao meio ambiente e, por isso, para compreendê-las a fundo é interessante contemplar o que a lei maior estabelece e como se articulam e repercutem princípios e objetivos contidos na Constituição em leis e mecanismos afeitos às áreas protegidas.

Funcionando como uma cascata, a Constituição vai vincular, obrigatoriamente, cada artigo subsequente a esses fundamentos que estão no vértice. Ainda no Art. 3º, estipula que um dos objetivos fundamentais do país é “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (inciso IV) e no Artigo 4º determina que prevalência dos direitos humanos (Inciso II) e autodeterminação dos povos (inciso III) são princípios do Brasil nos seus relacionamentos internacionais.

O ordenamento jurídico brasileiro estipula uma hierarquia segundo a qual todos os artigos da Constituição obedecem ao que consta nas cláusulas pétreas, devendo determinar condições para sua concretização da mesma maneira que a legislação infra-constitucional, que deve especificar em detalhes cada determinação constitucional, sempre à luz do prisma dessa pirâmide.

Iluminados por esses princípios, seguem artigos capitais para a implementação do Estado democrático de direito assentado sobre o respeito à sociobiodiversidade, que é condição sine qua non para sua implementação. Um grande advento trazido pela Constituição é vincular o direito ao meio ambiente equilibrado à diversidade sociocultural do país, alinhando-se com o movimento que possibilitava ao conhecimento científico estabelecer essa intrínseca correlação.

Dentre os artigos da Constituição que interessam para seguir nessa seara destaca-se, por exemplo, o artigo 216, que dispõe sobre as manifestações culturais diversas como patrimônio imaterial e segue a constatação de que, já que o pluralismo político é essencial para o Estado democrático de direito tanto quanto a igualdade, é fundamental respaldar os diversos grupos que compõem a comunidade nacional em seu direito à diversidade. Isso é necessário para que, sendo diversos, expressem isso de maneira cidadã por meio da participação e, assim, o regime democrático se realize. Eis como o direito à diversidade sociocultural se vincula ao pluralismo político e a partir disso uma série de normas determina condições específicas para que seja possível assegurar diversidade de ideias e de opiniões e posicionamentos.

Já o artigo 225 da Constituição determina que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

A Lei Maior do país estabelece que o meio ambiente sadio e equilibrado é um direito, mas também determina que zelar por isso exige participação cidadã, pois é dever de todos e, afinal, todo o poder emana do povo que, como conjunto de cidadãos, tem dever de agir em prol do bem estar da coletividade, segundo o próprio ordenamento constitucional.

Formalmente há que se dizer que, para que o Programa Constitucional possa ser realizado, uma série de políticas públicas se faz necessária. A fim, portanto, de dar encaminhamentos programáticos mais concretos e específicos à concretização do que determina no Art. 225, foi promulgada em 2000 a Lei 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, mais comumente conhecido como Snuc. Formalmente, o Snuc regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, instituindo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e estipula providência para sua gestão e manutenção.

Portanto, as Unidades de Conservação (UCs) são instrumentos legalmente reconhecidos para a gestão que, conforme determina a legislação (Constituição e Snuc) deve ser integrada e participativa: os Conselhos, sejam deliberativos ou consultivos, são peças-chave para a referendação das ações dos gestores.

Criar e gerenciar uma Unidade de Conservação é dever e responsabilidade do poder público, sobretudo porque manter o meio ambiente equilibrado, direito de todos os cidadãos brasileiros, é dever do Estado. Mas não somente, pois tal responsabilidade é dividida com os cidadãos e os Conselhos gestores ou consultivos são os fóruns primordiais para essa gestão compartilhada.

O Snuc determina que toda a gestão das Unidades de Conservação seja apreciada por um Conselho, que pode ser consultivo, no caso de UCs de proteção integral, ou gestor, no caso de UCs de uso sustentável nas quais morem populações. O Snuc estipula isso a fim de promover a participação nas decisões executivas inerentes à sua gestão com a sociedade civil, ali representada pelos atores designados pela Portaria de instituição do Conselho, iluminado pelo fundamento da cidadania.

O programa estipulado pelo Snuc para cada categoria de UC, que poderá ser municipal, estadual ou federal, e de uso sustentável ou proteção integral é acompanhado de determinações a respeito de como se deve proceder para instituir a UC: critérios para sua criação e manutenção passam pela consolidação de um zoneamento e do Plano de Manejo que, também segundo o Snuc, deve contemplar critérios rigorosos inscritos na Lei 9.985/2000 e detalhados em resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), por exemplo.

Os Conselhos são, então, o principal mecanismo por meio do qual os objetivos preconizados pelo Snuc chegam perto de ser efetivados em prol de uma gestão integrada e participativa, o que, por sua vez, depende de uma aplicação concreta do que preconiza a Constituição Federal desde seu art. 1º.

Mas a participação cidadã diferenciada em prol da gestão socioambiental não se restringe aos Conselhos de UCs. Há outros fóruns legalmente estabelecidos por meio dos quais a gestão deve ser paritária, participativa e integrada, como os Conselhos Estaduais de Meio Ambiente e os Conselhos Municipais de Meio Ambiente.

Os Conselhos Estaduais de Meio Ambiente são  integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), instituído pela Lei Federal nº 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, regulamentada pelo Decreto Federal nº 99.274/90

Já a instituição dos Conselhos Municipais de Meio Ambiente está prevista na Lei nº 6.938/1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), bem como na Resolução Conama nº 237/1997, que trata sobre a revisão e complementação dos procedimentos e critérios utilizados para o licenciamento ambiental. 

Além disso, sempre à luz do parágrafo único do Artigo Primeiro da Constituição Federal, o ordenamento jurídico brasileiro também prevê a constituição de outros fóruns deliberativos que asseguram a participação cidadã e determinam condições para que esta seja realizada em sua plenitude com o advento da diversidade sociocultural. É o caso dos Comitês de Bacias Hidrográficas. Segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico:

Os Comitês de Bacia são grupos de gestão compostos por representantes dos três níveis do poder público (federal – caso a bacia envolva mais de um Estado ou outro país, estadual e municipal), usuários da água e sociedade civil.

É por meio de discussões e negociações democráticas, que esses comitês avaliam os reais e diferentes interesses sobre os usos das águas das bacias hidrográficas. Possuem poder de decisão e cumprem papel fundamental na elaboração das políticas para gestão das bacias, sobretudo em regiões com problemas de escassez hídrica ou na qualidade da água. As principais decisões tomadas pelo comitê são: aprovar e acompanhar a elaboração do Plano de Recursos Hídricos da Bacia, que reúne informações estratégicas para a gestão das águas em cada bacia; arbitrar conflitos pelo uso da água (em primeira instância administrativa); estabelecer mecanismos e sugerir os valores da cobrança pelo uso da água (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, https://www.ana.gov.br/aguas-no-brasil/sistema-de-gerenciamento-de-recursos-hidricos/comites-de-bacia-hidrografica/comite-de-bacia-hidrografica ).

 

O Conselho Nacional de Recursos Hídricos pactua resoluções que determinam desde a obrigatoriedade de formar um Comitê de Bacia Hidrográfica sobre corpo d´água no qual se vislumbre fazer um empreendimento até as condicionantes e parâmetros para o compartilhamento justo dos recursos hídricos entre os diversos segmentos da sociedade.

Mencionei os Conselhos Estaduais e Municipais de Meio Ambiente, mas, além destes, há o Conselho Nacional de Meio Ambiente, conhecido como Conama, e que tem o papel de assegurar, de maneira paritária, a representatividade da sociedade civil que ocupava cadeiras com representantes eleitos nas Conferências de Meio Ambiente. Criado pela Lei Federal nº 6.938/81 e, como dito, é o órgão colegiado brasileiro responsável pela adoção de medidas de natureza consultiva e deliberativa acerca do Sistema Nacional do Meio Ambiente. O Conama se reunia com frequência duas vezes ao ano desde a década de 1980 porém, assim como outros colegiados, não mais se reúne desde 2019.

Enquanto se reunia, o Conama apreciava questões trazidas pela sociedade civil organizada ou propostas pelos próprios gestores e deliberava resoluções de cunho técnico. Suas resoluções funcionam como súmulas do Supremo Tribunal Federal (STF), na medida em que consistem em pareceres técnicos, deliberados democrática e paritariamente a fim de nortear o entendimento, a interpretação das leis e estabelecer com suas resoluções obrigações para a sociedade civil ou Estado.

Uma importante resolução do Conama é a Resolução 13/90 que, visando a conservação dos ecossistemas protegidos por Unidades de Conservação, resolve que as atividades econômicas exercidas no entorno das unidades de conservação devem ser definidas pelo órgão responsável pela UC, juntamente com os órgãos licenciadores e de meio ambiente. Também é famosa a resolução 428/2010, na qual lemos que:

O CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE-CONAMA, no uso das atribuições e competências que lhe são conferidas pelo art. 8º da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, regulamentado pelo Decreto nº 99.274, de 06 de julho de 1990 e tendo em vista o disposto em seu Regimento Interno, Anexo à Portaria MMA nº 168, de 13 de junho de 2005, e: Considerando a necessidade de regulamentar os procedimentos de licenciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental que afetem as Unidades de Conservação específicas ou suas zonas de amortecimento, resolve:

Art. 1º O licenciamento de empreendimentos de significativo impacto ambiental que possam afetar Unidade de Conservação (UC) específica ou sua Zona de Amortecimento (ZA), assim considerados pelo órgão ambiental licenciador, com fundamento em Estudo de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), só poderá ser concedido após autorização do órgão responsável pela administração da UC ou, no caso das Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPN), pelo órgão responsável pela sua criação. (CONAMA, 2010).

 

Essa resolução é um marco porque, na prática, o gestor da Unidade de Conservação só pode emitir a autorização (ato administrativo relativo à gestão da Unidade), a rigor, se submeter isso ao Conselho da mesma, o que fortalece muito os Conselhos como instâncias de participação com um poder, embora vago, de veto e modificação de propostas que incidem sobre o território. Talvez por ser algo vago, nem conselhos nem gestores façam muito uso desses dispositivos, que foram muito usados no Amapá em diversos casos[PC1] .

Além do Conama há também o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, conhecido como CNRH. Trata-se de um colegiado intergovernamental que, além de outras competências, tem a função legal de: (i) promover a articulação do planejamento da gestão dos recursos hídricos com os planejamentos nacional, regional, estadual e dos setores usuários; (ii) acompanhar a execução e aprovar o Plano Nacional de Recursos Hídricos; (iii) determinar as providências necessárias ao cumprimento de suas metas, e (iv) estabelecer critérios gerais para a cobrança pelo uso dos recursos hídricos.

Poderosos[PC2]  fóruns legalmente reconhecidos com base nos fundamentos do Estado democrático de direito e, portanto, imprescindíveis para a realização do fundamento da participação cidadã no zelo pelo meio ambiente equilibrado, esses Conselhos vêm sofrendo, todavia, dilapidação e desidratação. Segundo Tomanik:

Dentro de enfoque intergovernamental, a Lei nº 9.433, de 1997, institui que o CNRH é composto por representantes: (i) dos ministérios e das secretarias da presidência da República, com atuação no gerenciamento ou uso de recursos hídricos; (ii) indicados pelos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos; (iii) dos usuários; e (iv) das organizações civis de recursos hídricos (art. 34, I a IV). Pela lei, cada Conselho Estadual deve indicar um representante, seu membro ou não. O decreto nº 2.612, de 1998, com alterações posteriores, em vez de adotar a redação da lei, ou seja, referir-se a representantes indicados pelos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, modificou o sentido daquela e estabeleceu que haverá no Conselho representantes dos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos. Em desacordo com a lei, limitou o número dos representantes estaduais a cinco, escolhidos em cada região administrativa federal, pelos conselhos estaduais ali existentes, sendo os suplentes obrigatoriamente de outro estado, da mesma região (art. 2º, IV, § 2º). Com isto, a maioria dos estados e até o Distrito Federal deixaram de integrar o conselho, participando, quando é o caso, de Câmaras Técnicas, o que não é a mesma coisa e nem o previsto na Lei nº 9.433, de 1997. (Pompeu, Cid Tomanik. (2003). O papel do conselho nacional de recursos hídricos - CNRH. Ciência e Cultura, 55(4), 42-44. Retrieved September 06, 2020, from http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252003000400023&lng=en&tlng=pt.)

 

Subsidiando tudo isso havia, até maio de 2019, a Política Nacional de Participação Social. Instituída pelo Decreto 8.243/2014, a política pública instituia o Sistema Nacional de Participação Social e, assim, vinculava administrativamente as conferências nacionais, por exemplo, aos demais fóruns, possibilitando a concatenação das deliberações conjuntas entre sociedade civil e Estado.

O Sistema seria chefiado pela Secretária-geral da Presidência da República, estando previstos um conselho permanente; comissões temáticas; conferências nacionais periódicas; uma ouvidoria pública federal; mesas de diálogo; fóruns interconselhos; audiências e consultas públicas; e ambiente virtual de participação social. A intenção era permitir que as entidades influenciassem as políticas e os programas de governo e consolidassem a participação social amarrando as diversas instâncias e mecanismos participativos, entre eles as Conferências Nacionais de Meio Ambiente.

Paralelamente a isso, o Brasil dispõe de outros mecanismos infra-constitucionais que subsidiam a manutenção da diversidade sociocultural essencial à participação cidadã. Um exemplo é o Decreto 6.040/2007, que Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, a ser gerenciada de maneira paritária e participativa pela Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT): povos e comunidades tradicionais poderiam, organizados, estabelecer consensos e representantes que, nesta Comissão, seriam ouvidos pelo Estado acerca de como proceder para salvaguardar seus direitos. Essa participação ocorre paralelamente nos demais fóruns de participação, desde os Conselhos Municipais de Meio Ambiente ao Conama, passando pelos conselhos das UCs.

As políticas públicas instituídas mediante pressão organizada da sociedade civil foram conformando um arcabouço normativo infra-constitucional concatenado. Exemplo disso é que a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena (PNGATI) foi criada com base nas experiências concretas dos próprios povos indígenas que já faziam seus Planos de Gestão muito antes da Política existir e elaborada de maneira participativa, por meio do Projeto GATI, parceria da The Nature Conservancy com a Fundação Nacional do Índio. O decreto 7.747/2012, que institui a Política foi debatido e referendado pelos povos indígenas e estabelece meios para a integração entre a gestão das Terras Indígenas e das Unidades de Conservação.

Como mencionado, o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho que determina que os povos indígenas e tradicionais têm direito à serem consultados de maneira prévia, livre, informada, de boa-fé e culturalmente adequada pelo Estado.

Para que o Estado possa consultar os povos indígenas e tradicionais de maneira adequada, respeitando portanto sua autodeterminação e seu direito ao autogoverno, cada povo indígena e comunidade tradicional tem o direito de, coletivamente, determinar os critérios e condições para que a consulta prévia seja realizada, elaborando seus Protocolos de Consulta, documentos pactuados nos quais critérios e parâmetros para a tomada de decisões e sua representatividade face ao Estado sejam legitimados em função de sua autodeterminação.

Sem que esses povos e comunidades tenham condições para debater e estabelecer coletivamente esses critérios legitimadores de tomada de decisão, sua autodeterminação e seus regimes de conhecimentos e de relações estarão severamente ameaçados. Por isso, auxiliá-los a conformar seus Protocolos de Consulta e Consentimento é condição sine qua non para sua manutenção enquanto povos indígenas e comunidades tradicionais já que, quando não participam da tomada de decisão, medidas legislativas e administrativas, projetos e políticas públicas se tornam extremamente equivocados e podem comprometer radicalmente sua própria sobrevivência.

Mais do que isso, a ausência de protocolos de consulta constitui grave ameaça à própria perpetuação do Estado democrático de direito e é nesse sentido que desejamos continuar orientando nossas ações, com apoio do Projeto que, temos certeza, será por sua relevância aprovado.

Além disso, outras políticas públicas resguardam esses direitos e determinam as condições para a participação cidadã da sociedade como um todo e, em especial, dos povos e comunidades tradicionais que, sabidamente são os segmentos que mais dependem das relações ecossistêmicas equilibradas para perpetuar sua organização social e regimes epistemológicos como também são as comunidades e povos que, vivendo segundo esses regimes de saberes e relações, mais contribuem para a salvaguarda do meio ambiente sadio e equilibrado.

Cumpre salientar que a participação das comunidades e povos tradicionais na vida democrática do país não se restringe ao momento e ao rito da consulta prévia e demonstrar claramente que esta deve ser realizada, nos termos da OIT 169 e da legislação infra-constitucional em diversos momentos, desde conferências de meio ambiente até a realização de reuniões dos conselhos das UCs. [PC3] Quando as comunidades e povos tradicionais possuem Protocolos de Consulta elaborados, os critérios para sua deliberação interna de consensos e sua representatividade ficam claros e essa participação é mais efetiva: novamente, a integração é fundamental.

É importante pontuar, também, que a participação da sociedade civil organizada, incluindo segmentos tradicionais da população, transcende os conselhos específicos das Unidades de Conservação. A Lei 9.985/2000 determina, em seu Artigo 26, determina que:

Art. 26. Quando existir um conjunto de unidades de conservação de categorias diferentes ou não, próximas, justapostas ou sobrepostas, e outras áreas protegidas públicas ou privadas, constituindo um mosaico, a gestão do conjunto deverá ser feita de forma integrada e participativa, considerando-se os seus distintos objetivos de conservação, de forma a compatibilizar a presença da biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o desenvolvimento sustentável no contexto regional.

Assim, desde 2000 vêm se consolidando Mosaicos de Áreas Protegidas como instâncias de gestão integrada e participativa que transcendem a escala das Unidades de Conservação e promovem um ganho de escala na gestão e na participação social ao contarem com Conselhos Consultivos dos Mosaicos: fóruns onde representantes da sociedade civil se reúnem com representantes dos órgãos públicos para deliberar conjuntamente (na prática é isso que ocorre) os rumos e detalhes da gestão de todo o conjunto de áreas protegidas.

Para tal, os Mosaicos aprenderam com os anos que a melhor forma de assegurar a gestão integrada e participativa promovendo o desenvolvimento sustentável em escala regional seria superar as diferentes racionalidades de gestão (cada UC tem um órgão e equipe gestora, sendo de categorias diversas, podendo ser municipais, estaduais ou federais) e engendrar ações conjuntas e concatenadas envolvendo a sociedade civil: por isso os conselhos consultivos dos Mosaicos são tão importantes e a experiência concreta prova que se trata de poderosos fóruns de indução do desenvolvimento regional.

O mais interessante é que o Artigo 26 da lei do Snuc menciona um conjunto preexistente de Áreas Protegidas, sem restringir-se a Unidades de Conservação. Portanto, como Terras Indígenas e Territórios Quilombola também são consideradas Áreas Protegidas, essas deveriam ser incluídas na constituição de Mosaicos.  O pioneiro Mosaico de Áreas Protegidas da Amazônia Oriental (Amor), obteve, depois de oito anos reunindo seu Conselho Consultivo, o reconhecimento, via portaria, de sua existência e composição incluindo, por primeira vez e, infelizmente ainda única, Terras Indígenas em sua composição.

Esse Conselho Consultivo influenciou a região de maneira significativa. O melhor exemplo é o processo de consulta prévia, que o Estado do Amapá foi obrigado a realizar juntamente com o governo federal, quanto ao ordenamento fundiário do entorno da Terra Indígena Wajãpi, que é o primeiro processo de consulta prévia nos termos de um Protocolo de Consulta e Consentimento: esse processo foi pactuado e referendado pelo Conselho, do qual os Wajãpi, os assentados de reforma agrária do assentamento em questão, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a secretaria de estado de meio ambiente do Amapá fazem parte[PC4] .

O ordenamento fundiário de todo o estado do Amapá foi outro exemplo de como um Conselho Consultivo fortalecido, que conte com comunidades tradicionais organizadas e bem assessoradas chegando a consensos sólidos e com órgãos públicos dispostos a referendar suas ações, pode engendrar benefícios em escala muito maior que a das UCs e do próprio Mosaico, além de possibilitar que direitos como o de consulta prévia, sejam efetivados (Caporrino, 2019).

As Áreas Protegidas cumprem melhor sua função quando seus conselhos deliberativos ou consultivos são realmente ativos e contam com a participação de representantes empoderados pelos coletivos de que devem ser porta-vozes e os Conselhos Consultivos dos Mosaicos possibilitam resultados consideráveis nesses contextos.  Mas dificuldades se acentuam e há contextos onde as UCs não puderam ser apropriadas pela sociedade civil, ora por serem muito recentes ora por questões logísticas e sociais e, geralmente, por conta da sua fragilidade financeira, de equipe, de recursos para realizar as ações, etc. São poderosas ferramentas para implementar a gestão socioambiental integrada e participativa e para induzir novos paradigmas para o desenvolvimento regional, mas dependem de uma série de condições para que sejam plenamente instaladas.

Além disso, os Conselhos e Fóruns que possibilitavam, desde a promulgação da Constituição Federal em 1988, a participação cidadã essencial para a manutenção da sociobiodiversidade, foram radicalmente ameaçados: uma das primeiras ações do atual governo brasileiro foi a promulgação do Decreto 9.759/2019 que acabou anulando praticamente todos os colegiados de participação e extinguiu inteiramente a Política Nacional de Participação Social e riscou do ordenamento jurídico brasileiro estabelecido pelo Decreto 8.243/2014.

Os conselhos consultivos de Unidades de Conservação e dos Mosaicos, que possibilitam a deliberação cidadã e paritária através de fóruns por meio dos quais comunidades tradicionais são organizadas para influenciar políticas públicas, foram praticamente extintos. Com a promulgação do Decreto 9.759/19, e o voto parcialmente favorável do Supremo Tribunal Federal à Ação Direta de Inconstitucionalidade 6121 de 2019 ficou estabelecido, precariamente, que sejam praticamente reestruturados do zero num contexto onde órgãos essenciais a isso, como Fundação Nacional do Índio (Funai) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) estão sendo totalmente deslegitimados e desidratados e com imensas restrições (o governo federal exige que os Conselhos submetam à análise a composição de cada conselho, que pode vetar a participação de setores e organizações).

A Ação Direta de Inconstitucionalidade 6121, apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, ressaltou que com o Decreto 9.759/2020 o governo federal afrontava visceralmente o pilar primordial do Estado democrático de direito e solapava da sociedade brasileira os meios pelos quais influenciar de maneira participativa e democrática as políticas públicas, mas refutou apenas parcialmente o Decreto.

A democracia é visceralmente ameaçada com esse movimento e, para piorar, num contexto de graves ameaças às Unidades de Conservação, extinguir os conselhos gestores, conselhos consultivos e conselhos consultivos de mosaicos de áreas protegidas é uma grave ameaça, especialmente quando obras e empreendimentos são desenhados para a região amazônica: sem participação social, como afirmado, os projetos constituem graves ameaças à perpetuação de povos e comunidades tradicionais e de toda a biodiversidade.

As condições para a legitimação das decisões tomadas nesses fóruns receberão um texto específico a ser por mim postado aqui em momento oportuno. Não percam!

 


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