Áreas protegidas e democracia
Sobre participação cidadã e gestão integrada
e participativa de áreas protegidas e gestão socioambiental
Bruno Walter Caporrino
Foto: Bruno Walter Caporrino. BR 210, Perimetral Norte, dentro da Terra Indígena Wajãpi
Promulgada em 1988
a Constituição Federal estabelece, pela primeira vez na história do país, os
fundamentos, princípios e objetivos de um Estado democrático de direito e, por
isso, calca esse programa no pilar da participação cidadã.
Organizado como
uma pirâmide, seguindo o princípio da pirâmide de Kelsen, esse Programa está
estruturado de maneira a, desde seu vértice, iluminar todos os demais artigos e
leis. Funcionando como uma cascata, o Diploma Constitucional conta com 5
cláusulas pétreas: seus 5 primeiros artigos são inquestionáveis e inegociáveis
porque contém os elementos estruturais de todo o projeto de Estado democrático
de direito.
Em seu primeiro artigo,
a Constituição estabelece, parágrafo único, que “todo o poder emana do povo,
que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos”, logo depois de
determinar, ainda neste Artigo, que são fundamentos deste projeto de Estado
democrático de direito “I–a soberania; II–a cidadania; III–a dignidade da
pessoa humana; IV–os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V–o
pluralismo político”.
A cidadania e o
pluralismo político são os fundamentos que mais nos interessam aqui porque
serão eles a base das políticas públicas voltadas ao meio ambiente e, por isso,
para compreendê-las a fundo é interessante contemplar o que a lei maior
estabelece e como se articulam e repercutem princípios e objetivos contidos na
Constituição em leis e mecanismos afeitos às áreas protegidas.
Funcionando como
uma cascata, a Constituição vai vincular, obrigatoriamente, cada artigo
subsequente a esses fundamentos que estão no vértice. Ainda no Art. 3º,
estipula que um dos objetivos fundamentais do país é “promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação” (inciso IV) e no Artigo 4º determina que prevalência dos
direitos humanos (Inciso II) e autodeterminação dos povos (inciso III) são
princípios do Brasil nos seus relacionamentos internacionais.
O ordenamento
jurídico brasileiro estipula uma hierarquia segundo a qual todos os artigos da
Constituição obedecem ao que consta nas cláusulas pétreas, devendo determinar
condições para sua concretização da mesma maneira que a legislação
infra-constitucional, que deve especificar em detalhes cada determinação
constitucional, sempre à luz do prisma dessa pirâmide.
Iluminados por
esses princípios, seguem artigos capitais para a implementação do Estado
democrático de direito assentado sobre o respeito à sociobiodiversidade, que é
condição sine qua non para sua implementação. Um grande advento trazido
pela Constituição é vincular o direito ao meio ambiente equilibrado à
diversidade sociocultural do país, alinhando-se com o movimento que
possibilitava ao conhecimento científico estabelecer essa intrínseca
correlação.
Dentre os artigos
da Constituição que interessam para seguir nessa seara destaca-se, por exemplo,
o artigo 216, que dispõe sobre as manifestações culturais diversas como
patrimônio imaterial e segue a constatação de que, já que o pluralismo
político é essencial para o Estado democrático de direito tanto quanto a
igualdade, é fundamental respaldar os diversos grupos que compõem a comunidade
nacional em seu direito à diversidade. Isso é necessário para que, sendo
diversos, expressem isso de maneira cidadã por meio da participação e, assim, o
regime democrático se realize. Eis como o direito à diversidade sociocultural
se vincula ao pluralismo político e a partir disso uma série de normas
determina condições específicas para que seja possível assegurar diversidade de
ideias e de opiniões e posicionamentos.
Já o artigo 225 da
Constituição determina que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações”.
A Lei Maior do
país estabelece que o meio ambiente sadio e equilibrado é um direito, mas
também determina que zelar por isso exige participação cidadã, pois é dever de
todos e, afinal, todo o poder emana do povo que, como conjunto de cidadãos, tem
dever de agir em prol do bem estar da coletividade, segundo o próprio
ordenamento constitucional.
Formalmente há que
se dizer que, para que o Programa Constitucional possa ser realizado, uma série
de políticas públicas se faz necessária. A fim, portanto, de dar
encaminhamentos programáticos mais concretos e específicos à concretização do
que determina no Art. 225, foi promulgada em 2000 a Lei 9.985/2000, que
institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, mais comumente
conhecido como Snuc. Formalmente, o Snuc regulamenta o art. 225, § 1o, incisos
I, II, III e VII da Constituição Federal, instituindo o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação da Natureza e estipula providência para sua gestão e
manutenção.
Portanto, as
Unidades de Conservação (UCs) são instrumentos legalmente reconhecidos para a
gestão que, conforme determina a legislação (Constituição e Snuc) deve ser
integrada e participativa: os Conselhos, sejam deliberativos ou consultivos,
são peças-chave para a referendação das ações dos gestores.
Criar e gerenciar
uma Unidade de Conservação é dever e responsabilidade do poder público,
sobretudo porque manter o meio ambiente equilibrado, direito de todos os
cidadãos brasileiros, é dever do Estado. Mas não somente, pois tal
responsabilidade é dividida com os cidadãos e os Conselhos gestores ou
consultivos são os fóruns primordiais para essa gestão compartilhada.
O Snuc determina
que toda a gestão das Unidades de Conservação seja apreciada por um Conselho,
que pode ser consultivo, no caso de UCs de proteção integral, ou gestor, no
caso de UCs de uso sustentável nas quais morem populações. O Snuc estipula isso
a fim de promover a participação nas decisões executivas inerentes à sua gestão
com a sociedade civil, ali representada pelos atores designados pela Portaria
de instituição do Conselho, iluminado pelo fundamento da cidadania.
O programa
estipulado pelo Snuc para cada categoria de UC, que poderá ser municipal,
estadual ou federal, e de uso sustentável ou proteção integral é acompanhado de
determinações a respeito de como se deve proceder para instituir a UC:
critérios para sua criação e manutenção passam pela consolidação de um
zoneamento e do Plano de Manejo que, também segundo o Snuc, deve contemplar critérios
rigorosos inscritos na Lei 9.985/2000 e detalhados em resoluções do Conselho
Nacional do Meio Ambiente (Conama), por exemplo.
Os Conselhos são,
então, o principal mecanismo por meio do qual os objetivos preconizados pelo
Snuc chegam perto de ser efetivados em prol de uma gestão integrada e
participativa, o que, por sua vez, depende de uma aplicação concreta do que
preconiza a Constituição Federal desde seu art. 1º.
Mas a participação
cidadã diferenciada em prol da gestão socioambiental não se restringe aos
Conselhos de UCs. Há outros fóruns legalmente estabelecidos por meio dos quais
a gestão deve ser paritária, participativa e integrada, como os Conselhos
Estaduais de Meio Ambiente e os Conselhos Municipais de Meio Ambiente.
Os Conselhos
Estaduais de Meio Ambiente são integrantes do Sistema Nacional do
Meio Ambiente (Sisnama), instituído pela Lei Federal nº 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional
do Meio Ambiente, regulamentada pelo Decreto Federal nº 99.274/90.
Já a instituição
dos Conselhos Municipais de Meio Ambiente está prevista na Lei nº 6.938/1981,
que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), bem como na
Resolução Conama nº 237/1997, que trata sobre a revisão e complementação dos
procedimentos e critérios utilizados para o licenciamento ambiental.
Além disso, sempre
à luz do parágrafo único do Artigo Primeiro da Constituição Federal, o
ordenamento jurídico brasileiro também prevê a constituição de outros fóruns
deliberativos que asseguram a participação cidadã e determinam condições para
que esta seja realizada em sua plenitude com o advento da diversidade
sociocultural. É o caso dos Comitês de Bacias Hidrográficas. Segundo a Agência
Nacional de Águas e Saneamento Básico:
Os Comitês de Bacia são grupos de gestão compostos por
representantes dos três níveis do poder público (federal – caso a bacia envolva
mais de um Estado ou outro país, estadual e municipal), usuários da água e
sociedade civil.
É por meio de discussões e negociações democráticas,
que esses comitês avaliam os reais e diferentes interesses sobre os usos das
águas das bacias hidrográficas. Possuem poder de decisão e cumprem papel
fundamental na elaboração das políticas para gestão das bacias, sobretudo em
regiões com problemas de escassez hídrica ou na qualidade da água. As
principais decisões tomadas pelo comitê são: aprovar e acompanhar a elaboração
do Plano de Recursos Hídricos da Bacia, que reúne informações estratégicas para
a gestão das águas em cada bacia; arbitrar conflitos pelo uso da água (em
primeira instância administrativa); estabelecer mecanismos e sugerir os valores
da cobrança pelo uso da água (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, https://www.ana.gov.br/aguas-no-brasil/sistema-de-gerenciamento-de-recursos-hidricos/comites-de-bacia-hidrografica/comite-de-bacia-hidrografica ).
O Conselho
Nacional de Recursos Hídricos pactua resoluções que determinam desde a
obrigatoriedade de formar um Comitê de Bacia Hidrográfica sobre corpo d´água no
qual se vislumbre fazer um empreendimento até as condicionantes e parâmetros
para o compartilhamento justo dos recursos hídricos entre os diversos segmentos
da sociedade.
Mencionei os
Conselhos Estaduais e Municipais de Meio Ambiente, mas, além destes, há o
Conselho Nacional de Meio Ambiente, conhecido como Conama, e que tem o papel de
assegurar, de maneira paritária, a representatividade da sociedade civil que
ocupava cadeiras com representantes eleitos nas Conferências de Meio Ambiente. Criado
pela Lei Federal nº 6.938/81 e, como dito, é o órgão colegiado brasileiro
responsável pela adoção de medidas de natureza consultiva e deliberativa acerca
do Sistema Nacional do Meio Ambiente. O Conama se reunia com
frequência duas vezes ao ano desde a década de 1980 porém, assim como outros
colegiados, não mais se reúne desde 2019.
Enquanto se
reunia, o Conama apreciava questões trazidas pela sociedade civil organizada ou
propostas pelos próprios gestores e deliberava resoluções de cunho técnico.
Suas resoluções funcionam como súmulas do Supremo Tribunal Federal (STF), na
medida em que consistem em pareceres técnicos, deliberados democrática e
paritariamente a fim de nortear o entendimento, a interpretação das leis e
estabelecer com suas resoluções obrigações para a sociedade civil ou Estado.
Uma importante
resolução do Conama é a Resolução 13/90 que, visando a conservação dos
ecossistemas protegidos por Unidades de Conservação, resolve que as atividades
econômicas exercidas no entorno das unidades de conservação devem ser definidas
pelo órgão responsável pela UC, juntamente com os órgãos licenciadores e de
meio ambiente. Também é famosa a resolução 428/2010, na qual lemos que:
O
CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE-CONAMA, no uso das atribuições e
competências que lhe são conferidas pelo art. 8º da Lei nº 6.938, de 31 de agosto
de 1981, regulamentado pelo Decreto nº 99.274, de 06 de julho de 1990 e tendo
em vista o disposto em seu Regimento Interno, Anexo à Portaria MMA nº 168, de
13 de junho de 2005, e: Considerando a necessidade de regulamentar os
procedimentos de licenciamento ambiental de empreendimentos de significativo
impacto ambiental que afetem as Unidades de Conservação específicas ou suas
zonas de amortecimento, resolve:
Art.
1º O licenciamento de empreendimentos de significativo impacto ambiental que
possam afetar Unidade de Conservação (UC) específica ou sua Zona de
Amortecimento (ZA), assim considerados pelo órgão ambiental licenciador, com
fundamento em Estudo de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto
Ambiental (EIA/RIMA), só poderá ser concedido após autorização do órgão
responsável pela administração da UC ou, no caso das Reservas Particulares de
Patrimônio Natural (RPPN), pelo órgão responsável pela sua criação. (CONAMA,
2010).
Essa resolução é
um marco porque, na prática, o gestor da Unidade de Conservação só pode emitir
a autorização (ato administrativo relativo à gestão da Unidade), a rigor, se
submeter isso ao Conselho da mesma, o que fortalece muito os Conselhos como
instâncias de participação com um poder, embora vago, de veto e modificação de
propostas que incidem sobre o território. Talvez por ser algo vago, nem
conselhos nem gestores façam muito uso desses dispositivos, que foram muito
usados no Amapá em diversos
casos[PC1] .
Além do Conama há
também o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, conhecido como CNRH. Trata-se
de um colegiado intergovernamental que, além de outras competências, tem a
função legal de: (i) promover a articulação do planejamento da gestão dos
recursos hídricos com os planejamentos nacional, regional, estadual e dos
setores usuários; (ii) acompanhar a execução e aprovar o Plano Nacional de
Recursos Hídricos; (iii) determinar as providências necessárias ao cumprimento
de suas metas, e (iv) estabelecer critérios gerais para a cobrança pelo uso dos
recursos hídricos.
Poderosos[PC2] fóruns legalmente
reconhecidos com base nos fundamentos do Estado democrático de direito e,
portanto, imprescindíveis para a realização do fundamento da participação
cidadã no zelo pelo meio ambiente equilibrado, esses Conselhos vêm sofrendo,
todavia, dilapidação e desidratação. Segundo Tomanik:
Dentro
de enfoque intergovernamental, a Lei nº 9.433, de 1997, institui que o CNRH é
composto por representantes: (i) dos ministérios e das secretarias da presidência
da República, com atuação no gerenciamento ou uso de recursos hídricos; (ii)
indicados pelos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos; (iii) dos usuários; e
(iv) das organizações civis de recursos hídricos (art. 34, I a IV). Pela lei,
cada Conselho Estadual deve indicar um representante, seu membro ou não. O
decreto nº 2.612, de 1998, com alterações posteriores, em vez de adotar a
redação da lei, ou seja, referir-se a representantes indicados pelos Conselhos
Estaduais de Recursos Hídricos, modificou o sentido daquela e estabeleceu que
haverá no Conselho representantes dos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos.
Em desacordo com a lei, limitou o número dos representantes estaduais a cinco,
escolhidos em cada região administrativa federal, pelos conselhos estaduais ali
existentes, sendo os suplentes obrigatoriamente de outro estado, da mesma
região (art. 2º, IV, § 2º). Com isto, a maioria dos estados e até o Distrito
Federal deixaram de integrar o conselho, participando, quando é o caso, de
Câmaras Técnicas, o que não é a mesma coisa e nem o previsto na Lei nº 9.433,
de 1997. (Pompeu, Cid Tomanik. (2003). O papel do conselho nacional de recursos
hídricos - CNRH. Ciência e Cultura, 55(4), 42-44. Retrieved September
06, 2020, from http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252003000400023&lng=en&tlng=pt.)
Subsidiando tudo
isso havia, até maio de 2019, a Política Nacional de Participação Social.
Instituída pelo Decreto 8.243/2014, a política pública instituia o Sistema
Nacional de Participação Social e, assim, vinculava administrativamente as
conferências nacionais, por exemplo, aos demais fóruns, possibilitando a
concatenação das deliberações conjuntas entre sociedade civil e Estado.
O Sistema seria
chefiado pela Secretária-geral da Presidência da República, estando previstos
um conselho permanente; comissões temáticas; conferências nacionais periódicas;
uma ouvidoria pública federal; mesas de diálogo; fóruns interconselhos;
audiências e consultas públicas; e ambiente virtual de participação social. A
intenção era permitir que as entidades influenciassem as políticas e os
programas de governo e consolidassem a participação social amarrando as
diversas instâncias e mecanismos participativos, entre eles as Conferências
Nacionais de Meio Ambiente.
Paralelamente a
isso, o Brasil dispõe de outros mecanismos infra-constitucionais que subsidiam
a manutenção da diversidade sociocultural essencial à participação cidadã. Um
exemplo é o Decreto 6.040/2007, que Institui a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, a ser gerenciada de maneira paritária
e participativa pela Comissão
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais (CNPCT): povos e comunidades tradicionais poderiam,
organizados, estabelecer consensos e representantes que, nesta Comissão, seriam
ouvidos pelo Estado acerca de como proceder para salvaguardar seus direitos.
Essa participação ocorre paralelamente nos demais fóruns de participação, desde
os Conselhos Municipais de Meio Ambiente ao Conama, passando pelos conselhos
das UCs.
As políticas
públicas instituídas mediante pressão organizada da sociedade civil foram
conformando um arcabouço normativo infra-constitucional concatenado. Exemplo
disso é que a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena (PNGATI)
foi criada com base nas experiências concretas dos próprios povos indígenas que
já faziam seus Planos de Gestão muito antes da Política existir e elaborada de
maneira participativa, por meio do Projeto GATI, parceria da The Nature
Conservancy com a Fundação Nacional do Índio. O decreto 7.747/2012, que
institui a Política foi debatido e referendado pelos povos indígenas e
estabelece meios para a integração entre a gestão das Terras Indígenas e das
Unidades de Conservação.
Como mencionado, o
Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
que determina que os povos indígenas e tradicionais têm direito à serem
consultados de maneira prévia, livre, informada, de boa-fé e culturalmente
adequada pelo Estado.
Para que o Estado
possa consultar os povos indígenas e tradicionais de maneira adequada,
respeitando portanto sua autodeterminação e seu direito ao autogoverno, cada
povo indígena e comunidade tradicional tem o direito de, coletivamente,
determinar os critérios e condições para que a consulta prévia seja realizada,
elaborando seus Protocolos de Consulta, documentos pactuados nos quais
critérios e parâmetros para a tomada de decisões e sua representatividade face
ao Estado sejam legitimados em função de sua autodeterminação.
Sem que esses
povos e comunidades tenham condições para debater e estabelecer coletivamente
esses critérios legitimadores de tomada de decisão, sua autodeterminação e seus
regimes de conhecimentos e de relações estarão severamente ameaçados. Por isso,
auxiliá-los a conformar seus Protocolos de Consulta e Consentimento é condição sine
qua non para sua manutenção enquanto povos indígenas e comunidades
tradicionais já que, quando não participam da tomada de decisão, medidas
legislativas e administrativas, projetos e políticas públicas se tornam
extremamente equivocados e podem comprometer radicalmente sua própria
sobrevivência.
Mais do que isso,
a ausência de protocolos de consulta constitui grave ameaça à própria
perpetuação do Estado democrático de direito e é nesse sentido que desejamos
continuar orientando nossas ações, com apoio do Projeto que, temos certeza,
será por sua relevância aprovado.
Além disso, outras
políticas públicas resguardam esses direitos e determinam as condições para a
participação cidadã da sociedade como um todo e, em especial, dos povos e
comunidades tradicionais que, sabidamente são os segmentos que mais dependem
das relações ecossistêmicas equilibradas para perpetuar sua organização social
e regimes epistemológicos como também são as comunidades e povos que, vivendo
segundo esses regimes de saberes e relações, mais contribuem para a salvaguarda
do meio ambiente sadio e equilibrado.
Cumpre salientar que a
participação das comunidades e povos tradicionais na vida democrática do país
não se restringe ao momento e ao rito da consulta prévia e demonstrar
claramente que esta deve ser realizada, nos termos da OIT 169 e da legislação
infra-constitucional em diversos momentos, desde conferências de meio ambiente
até a realização de reuniões dos conselhos das UCs. [PC3] Quando as comunidades e povos
tradicionais possuem Protocolos de Consulta elaborados, os critérios para sua
deliberação interna de consensos e sua representatividade ficam claros e essa
participação é mais efetiva: novamente, a integração é fundamental.
É importante
pontuar, também, que a participação da sociedade civil organizada, incluindo
segmentos tradicionais da população, transcende os conselhos específicos das
Unidades de Conservação. A Lei 9.985/2000 determina, em seu Artigo 26, determina
que:
Art.
26. Quando existir um conjunto de unidades de conservação de categorias
diferentes ou não, próximas, justapostas ou sobrepostas, e outras áreas
protegidas públicas ou privadas, constituindo um mosaico, a gestão do conjunto
deverá ser feita de forma integrada e participativa, considerando-se os seus
distintos objetivos de conservação, de forma a compatibilizar a presença da
biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o desenvolvimento
sustentável no contexto regional.
Assim, desde 2000
vêm se consolidando Mosaicos de Áreas Protegidas como instâncias de gestão
integrada e participativa que transcendem a escala das Unidades de Conservação
e promovem um ganho de escala na gestão e na participação social ao contarem
com Conselhos Consultivos dos Mosaicos: fóruns onde representantes da sociedade
civil se reúnem com representantes dos órgãos públicos para deliberar
conjuntamente (na prática é isso que ocorre) os rumos e detalhes da gestão de
todo o conjunto de áreas protegidas.
Para tal, os
Mosaicos aprenderam com os anos que a melhor forma de assegurar a gestão
integrada e participativa promovendo o desenvolvimento sustentável em escala
regional seria superar as diferentes racionalidades de gestão (cada UC tem um
órgão e equipe gestora, sendo de categorias diversas, podendo ser municipais,
estaduais ou federais) e engendrar ações conjuntas e concatenadas envolvendo a
sociedade civil: por isso os conselhos consultivos dos Mosaicos são tão
importantes e a experiência concreta prova que se trata de poderosos fóruns de
indução do desenvolvimento regional.
O mais
interessante é que o Artigo 26 da lei do Snuc menciona um conjunto preexistente
de Áreas Protegidas, sem restringir-se a Unidades de Conservação. Portanto, como
Terras Indígenas e Territórios Quilombola também são consideradas Áreas
Protegidas, essas deveriam ser incluídas na constituição de Mosaicos. O pioneiro Mosaico de Áreas Protegidas da
Amazônia Oriental (Amor), obteve, depois de oito anos reunindo seu Conselho
Consultivo, o reconhecimento, via portaria, de sua existência e composição
incluindo, por primeira vez e, infelizmente ainda única, Terras Indígenas em
sua composição.
Esse Conselho
Consultivo influenciou a região de maneira significativa. O melhor exemplo é o
processo de consulta prévia, que o Estado do Amapá foi obrigado a realizar
juntamente com o governo federal, quanto ao ordenamento fundiário do entorno da
Terra Indígena Wajãpi, que é o primeiro processo de consulta prévia nos termos
de um Protocolo de Consulta e Consentimento: esse processo foi pactuado e referendado
pelo Conselho, do qual os Wajãpi, os assentados de reforma agrária do
assentamento em questão, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra) e a secretaria de estado de meio ambiente do Amapá fazem parte[PC4] .
O ordenamento
fundiário de todo o estado do Amapá foi outro exemplo de como um Conselho
Consultivo fortalecido, que conte com comunidades tradicionais organizadas e
bem assessoradas chegando a consensos sólidos e com órgãos públicos dispostos a
referendar suas ações, pode engendrar benefícios em escala muito maior que a
das UCs e do próprio Mosaico, além de possibilitar que direitos como o de
consulta prévia, sejam efetivados (Caporrino, 2019).
As Áreas
Protegidas cumprem melhor sua função quando seus conselhos deliberativos ou
consultivos são realmente ativos e contam com a participação de representantes
empoderados pelos coletivos de que devem ser porta-vozes e os Conselhos
Consultivos dos Mosaicos possibilitam resultados consideráveis nesses
contextos. Mas dificuldades se acentuam
e há contextos onde as UCs não puderam ser apropriadas pela sociedade civil,
ora por serem muito recentes ora por questões logísticas e sociais e,
geralmente, por conta da sua fragilidade financeira, de equipe, de recursos para
realizar as ações, etc. São poderosas ferramentas para implementar a gestão
socioambiental integrada e participativa e para induzir novos paradigmas para o
desenvolvimento regional, mas dependem de uma série de condições para que sejam
plenamente instaladas.
Além disso, os
Conselhos e Fóruns que possibilitavam, desde a promulgação da Constituição
Federal em 1988, a participação cidadã essencial para a manutenção da
sociobiodiversidade, foram radicalmente ameaçados: uma das primeiras ações do
atual governo brasileiro foi a promulgação do Decreto 9.759/2019 que acabou
anulando praticamente todos os colegiados de participação e extinguiu
inteiramente a Política Nacional de Participação Social e riscou do ordenamento
jurídico brasileiro estabelecido pelo Decreto 8.243/2014.
Os conselhos
consultivos de Unidades de Conservação e dos Mosaicos, que possibilitam a
deliberação cidadã e paritária através de fóruns por meio dos quais comunidades
tradicionais são organizadas para influenciar políticas públicas, foram
praticamente extintos. Com a promulgação do Decreto 9.759/19, e o voto
parcialmente favorável do Supremo Tribunal Federal à Ação Direta de
Inconstitucionalidade 6121 de 2019 ficou estabelecido, precariamente, que sejam
praticamente reestruturados do zero num contexto onde órgãos essenciais a isso,
como Fundação Nacional do Índio (Funai) e Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade (ICMBio) estão sendo totalmente deslegitimados e desidratados
e com imensas restrições (o governo federal exige que os Conselhos submetam à
análise a composição de cada conselho, que pode vetar a participação de setores
e organizações).
A Ação Direta de
Inconstitucionalidade 6121, apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, ressaltou
que com o Decreto 9.759/2020 o governo federal afrontava visceralmente o pilar
primordial do Estado democrático de direito e solapava da sociedade brasileira os
meios pelos quais influenciar de maneira participativa e democrática as
políticas públicas, mas refutou apenas parcialmente o Decreto.
A democracia é
visceralmente ameaçada com esse movimento e, para piorar, num contexto de
graves ameaças às Unidades de Conservação, extinguir os conselhos gestores,
conselhos consultivos e conselhos consultivos de mosaicos de áreas protegidas é
uma grave ameaça, especialmente quando obras e empreendimentos são desenhados
para a região amazônica: sem participação social, como afirmado, os projetos
constituem graves ameaças à perpetuação de povos e comunidades tradicionais e
de toda a biodiversidade.
As condições para
a legitimação das decisões tomadas nesses fóruns receberão um texto específico
a ser por mim postado aqui em momento oportuno. Não percam!
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