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sexta-feira, 25 de setembro de 2020

os benefícios da realização da consulta prévia: da segurança jurídica ao aperfeiçoamento dos projetos e medidas

 

Dos benefícios da realização da consulta prévia: da segurança jurídica ao aperfeiçoamento dos projetos e medidas

Bruno Walter Caporrino


Fotografia: Bruno Walter Caporrino. Comunidade de Padaria, RDS do Iratapuru, Amapá, 2013. Zeiss Ikon Contaflex e película Ilford Delta 100, 35mm.

Em meio aos debates que permeiam o Fórum, acho importante lembrar que o Brasil, como signatário (em 1989) da Convenção no. 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT, (da qual é membro) incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto 5.051/2004 (revisado pelo 10.088/2019) e ocupando, por seu estatuto de tratado de direito humano, posição supra-legal (acima de todas as outras leis, e no nível da Constituição Federal), se obriga, portanto, a proceder a consulta prévia, livre, informada, de boa-fé e culturalmente adequada (Art. 6o da Convenção). Esse artigo do tratado ratificado pelo Brasil e que tem peso constitucional determina que:

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:

a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;

c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.

2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. (OIT, 1989).

A fim de salvaguardar o direito das populações indígenas e tradicionais à participação cidadã diferenciada e reforçando o direito à autodeterminação e ao autogoverno que a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, da qual o Brasil também é signatário, o processo de consulta prévia, livre, informada, de boa-fé e culturalmente adequada deve ser realizado antes que qualquer empreendimento os afete e durante todo o processo de licenciamento ambiental. Achei importante lembrar isso aqui no fórum pois se trata de algo que o Ministério Público Federal tem recomendado insistentemente e que é reivindicado pelas populações indígenas e tradicionais.

O teor da Convenção se coaduna ao que prescreve o diploma constitucional e, por isso, foi ratificada. O direito à participação se estende a todo cidadão brasileiro, sendo portanto necessário averiguar a legitimidade dos procedimentos de consulta à população não-indígena. Um aprendizado muito importante que a consulta prévia aos povos indígenas e tradicionais nos traz são seus protocolos de consulta, instrumentos próprios, como previsto pela OIT 169, por meio do qual determinam os critérios de legitimidade do processo de negociação com o Estado, definindo quem os representa, qual o quórum para uma decisão ser efetiva, quantas reuniões deve haver, quem deve estar presente e quem não deve em qual reunião.

Desenvolveram esses mecanismos porque, ao longo da história, os colonizadores foram hábeis em escolher "quem fala e representa esses índios", ferindo gravemente o princípio da autodeterminação dos povos e o fundamento do autogoverno, amparados, respectivamente, pela Convenção 169 da OIT e pela Declaração da ONU de 2007. Era comum que o poder colonial escolhesse quem eram os "chefes" e assim fez o próprio SPI.

O aprendizado que os povos indígenas e tradicionais nos trazem com os protocolos é que se apropriaram melhor que nós mesmos, ocidentais, da democracia representativa. Assim, como o direito à participação das decisões do Estado se estende a todos os cidadãos, todos têm que ser consultados e, no nosso caso, não-índios, os critérios de legitimidade das decisões e da representatividade deve ser pactuado.

Cumpre salientar que a BR 319 não matará as filhas dos manauaras com leishmaniose e estupro, não as afetará tanto quanto às indígenas e tradicionais, então é razoável que todos consideremos isso quando pensarmos no empreendimento. Ele cortará os mundos deles, não os de quem está nas grandes cidades.

Dito isso, é importante pontuar que para que o Estado democrático de direito seja realmente efetivado todos têm de ser consultados e, repito, a questão é definirmos quem, entre os 2.5 milhões de mauaras e etc fala pelo "Amazonense". É dizer: se um brasileiro vai à Washington, por exemplo, e diz ao governo estadunidense que os brasileiros desejam que todo o lixo nuclear dos Estados Unidos sejam despejados no Brasil, esse cidadão fala em nome do coletivo que diz representar?

A segunda questão que o processo de consulta prévia, livre, informada e de boa-fé nos ensina é que quanto mais prévio, livre de chantagens, coerção, coação, pressão e ameaça; quanto mais informado forem todos os cidadãos, subsidiados com informações idôneas e neutras, e quanto mais organizados forem os cidadãos acerca de como desejam se reunir para pactuar decisões, mais apurado e bom para todas as partes é qualquer projeto.

Quanto mais informações de qualidade toda a sociedade brasileira obtiver acerca dos impactos que qualquer obra traz e quanto mais fóruns deliberativos tiver, e quanto mais legítimos forem esses fóruns, melhor para todos. Resumidamente, portanto, cuido que todos deveríamos parar de "nivelar por baixo", libertando-nos da lógica da escassez segundo a qual para um grupo se dar bem outro tem, necessariamente, que ser prejudicado. Essa lógica faz com que a população aceite mineradoras construindo barragens precárias, aceite a total fragilização da legislação ambiental e do licenciamento, disputando a tapas as migalhas de empreendimentos bilionários que instituem precariedade para causar disputas e, assim, instalar-se com o menor custo e maior lucro.

Assim, se todos são devidamente consultados, previamente, sem pressões ou ameaças, e com base em informações aprofundadas, o que é um processo longo, ao fim dele é possível chegar a alternativas inclusive muito mais eficientes e melhores.

A experiência mostra que  nos contextos onde houve consulta prévia aos indígenas e tradicionais e o processo de consulta aos cidadãos não-indígenas foi longo, amplo, superando as audiências públicas que são perigosas por serem sumárias e sem representantes de todos os segmentos; nesses contextos os projetos foram debatidos por toda a sociedade, os prós e contras foram esmiuçados e outras propostas, inclusive muito melhores, foram desenhadas. Ou seja, todos os cidadãos têm de ser consultados, aos indígenas e tradicionais a OIT 169 assegura que esse processo seja diferenciado para compensar desigualdades nas condições de compreensão e ofertar os direitos em igualdade (CF art.5o) e a decisão deles têm que ter peso 2, primeiramente porque serão seus mundos os mais afetados e em segundo lugar por serem os donos originais da terra.

Quando o mercado consegue colocar os atores uns contra os outros, alegando que a proposta pronta deve ser aceita, ele.nega a possibilidade de se construir outras propostas. Isso é lucrativo. Para as empresas. A Vale é um exemplo e Mariana e Brumadinho demonstram que, se a sociedade civil tivesse conhecimento prévio do empreendimento e pudesse alterar a proposta, exigindo como condição para sua instalação, portanto, outros tipos de barragem, outros lugares para elas, etc, todos teriam lucrado e o fim do Rio Doce e das vidas de 200.000 pessoas teria sido evitado.

Todos têm que ser consultados, aos indígenas e tradicionais o peso da decisão deve ser maior e as consultas aos não-índios devem ser mais qualificadas: definir quem fala em nome de quem, quem toma as decisões em nome de quem, possibilitar que toda a sociedade tenha acesso a informações verdadeiras e sérias e possa debater sem ameaças ("ou você aceita o projeto ou demito os professores da escola do seu bairro", como diversas vezes se verifica que ocorre, por exemplo). Com consulta ampla e qualificada todos ganham.

Adianto o tema do próximo texto dessa série: licenciamento não é consulta prévia. Convenção 169 da OIT, em consonância à Constituição, não determina quilometragem para a Consulta Prévia, o que feriria o direito de autodeterminação. Destarte, é importante colocar a questão da consulta prévia como pauta qualificada maro-zero, sob o risco de cometer etnocídio e mesmo genocídio, o que ninguém quer. Quanto à essa discussão sobre quilometragem, me recordo de uma frase que os Wajãpi, primeiro povo indígena a ter um Protocolo de Consulta e que tive a honra de ajudar a construir dizem: "placa não fala".

Carapanã com malária, peão molestador de criança, mercúrio, grileiro, pistoleiro, não obedecem quilometragem ou respeitam limites de áreas protegidas, de modo que os impactos da conexão instaurada pelo asfaltamento transcendem em muito, e brutalmente, quilometragem. Cumpre lembrar o posicionamento do MPF, expresso pelo doutor Felício Pontes quanto à fragilidade da legislação ambiental ao determinar quilometragem restrita e aspectos diminutos na avaliação dos impactos.

Altamira, caso pelo Procurador citado, teve um aumento de 500% no número de latrocínios e de quase 200% no caso de estupro assim que a Licença para Instalação de Belo Monte saiu. Por isso, quanto mais aprofundado e qualificado for um processo de consulta e, portanto, debate, com mais informações de qualidade apropriadas e discutidas por toda a população, ressalvando os direitos diferenciados dos povos indígenas, melhor será o processo de decisão relativo ao empreendimento.

Como saliento  a tese de que "uns poucos índios não podem parar a obra" é nula e, como tenho dito em diversos textos, quanto mais legítimo, representativo, qualificado for o processo de consulta prévia, mais qualificada fica a decisão da sociedade civil. Um exemplo é Mariana: a população local aceitou as barragens em uma única audiência pública de 5 horas na qual as 1500 paginas do Estudo de Impacto foram apresentadas num Power Point e os impactos foram traduzidos apenas como "pequenos detalhes técnicos".

O restante da audiência pública foi destinado a versar sobre os empregos e benefícios que a instalação da barragem prometia. A população de Mariana não estava legitimamente representada nessa audiência, havendo moradores que sequer conheciam as pessoas que diziam representá-los e, além disso, as comunidades não tiveram tempo e meios para se apropriar do Estudo e discutir nas bases. Investigações científicas demonstram que a população de Mariana, assim como de Brumadinho, desconheciam como eram as barragens de rejeitos e os riscos que aquela modalidade representava.

Mais de 90% dos moradores afirmou jamais ter visto o corte transversal dela e discutido os impactos, arrependendo-se da decisão. A grande conclusão é que quanto mais consulta prévia, livre, informada, culturalmente adequada e de boa-fé houver, mais aprofundada e qualificada será a discussão e a decisão e quanto mais a sociedade civil conhecer em detalhes os impactos de qualquer empreendimento e mais ela puder debater qualificadamente, melhor será sua decisão e melhores as contrapropostas porque mais qualificada a pauta.

No caso da BR 319 observa-se que as comunidades diretamente afetadas não estão sendo consultadas conforme determinam a OIT 169 e a Constituição, o que é grave infração a tratado de direito humano de peso constitucional e, ao mesmo tempo, o debate conduzido pela sociedade envolvente ignora as verdadeiras pautas, como o ordenamento fundiário, por exemplo. Ferrante e Fearnside já mostraram cientificamente, provando o aumento nos índices de desmatamento na linha do tempo e  na série histórica.

O ordenamento fundiário da região é frágil e, com a MP da grilagem, mais perigosa ainda se torna a conectividade discutida. Uma das pautas que a sociedade civil teria que conhecer e discutir é a do ordenamento fundiário, o que demanda uma análise do Cadastro  Ambiental Rural, CAR no Sigef, que mostraria a corrida por terras que o simples debate sobre o asfaltamento já causou.

Qualificar a pauta e fortalecer processos e instâncias de debate para a sociedade civil só traz ganhos a todos e possibilita a indução de políticas públicas mais qualificadas para a região. Então, havendo consulta prévia, como provo em minha dissertação de mestrado, políticas públicas que não eram eficientes ou existentes no território passam a ser reivindicadas como condição sine qua non para a instalação do empreendimento e as pressões oriundas do deslocamento populacional induzido por ele serão melhor mitigadas.

Lanço mão de um exemplo: qual é a situação do sistema de atenção à saúde nos municípios da região cortada pela estrada? O Idesam fez um belo e aprofundado estudo sobre esses 13 municípios e sabemos que, diante de seu IDH baixo, o sistema de saúde não terá condições de atender a todos os inúmeros grupos que se deslocarão para as margens da rodovia, por exemplo. Sem ordenamento fundiário esses grupos se digladiarão por terras e a violência se instala. Ninguém quer isso, a não ser uma minoria que visa promover especulação imobiliária usando a BR como indutor de valor às terras do entorno e isso é prejudicial à toda a sociedade.

Por fim, é importante lembrar que todos os casos onde estradas que cortaram a Amazônia sem consulta prévia e respeito às leis ambientais engendraram banhos de sangue, como estão para provar os Waimiri-Atroari sobre a BR 174, os Yanomami e Wajãpi quanto à BR-210, e todas as populações indígenas e tradicionais, pequenos agricultores e extrativistas mortos na história da Transamazônica. Tendo certeza que ninguém quer o genocídio, que estupro, grilagem, malária, leishmaniose, pistoleiros, se instalem na região, reitero que o único meio de evitar isso é realizar a consulta prévia nos termos da OIT 169 aos povos indígenas e tradicionais de todos os 13 municípios e realizar um processo qualificado e aprofundado  de consulta à toda a população, pois conhecendo bem os impactos, discutindo isso sem ameaça e pressão, pactuando consensos legítimos e estabelecendo condicionantes, toda a população ganha.

Um caso interessante é o dos Mura de Autazes e Careiro que tive a honra de ser designado pelo MPF e pela Justiça Federal como perito para a realização do Protocolo de Consulta e Consentimento Mura. A mineradora Potássio do Brasil, que foi ré na ação e teve de parar sua instalação por descumprimento à OIT 169 e à própria legislação do licenciamento afirmou na audiência final do processo, onde o Protocolo foi entregue, que avaliando o caso concluiu que seria muito mais interessante para o empreendedor ter realizado a consulta prévia antes de instalar-se.

Por não ter realizado, sofreu processo, a planta ficou parada e foi responsabilizada por uma série de ilícitos que sua instalação induz mas que não são de sua responsabilidade. Assim, a própria mineradora afirmou que, se tivesse conhecimento antes ,teria realizado a consulta prévia aos Mura e tradicionais e debatido de forma clara e transparente com a sociedade civil sobre o empreendimento. Afirmou inclusive que se tivesse feito isso teria se livrado de responsabilidades que não são de sua competência, mas sim das prefeituras, do governo do Estado, do governo federal: teve que arcar com custos de infra-estrutura (UBS ,por exemplo) que não eram de sua responsabilidade ,e foi responsabilizada pela grilagem e pelos assassinatos que a disputa por terras gerada por sua instalação engendrou.

Se tivesse havido consulta prévia e o ordenamento fundiário resolvido, se a sociedade civil tivesse se apropriado do projeto e discutido de forma ampla e legítima, sua instalação teria sido, como estimaram, 50% mais barata. Não tendo consulta prévia, não puderam induzir uma série de políticas públicas e tiveram que fazer coisas que não é seu papel fazer, além de serem obrigados a subornar prefeitos e vereadores, comprar lideranças, etc; pagar um processo judicial caríssismo. O próprio empreendedor concluiu que sem a consulta prévia faltou-lhe a segurança jurídica necessária para operar, deixando tudo mais caro, moroso, e improdutivo.

A conclusão a que se chega, portanto, é que Sendo o objetivo da consulta prévia assegurar a participação das populações indígenas e tradicionais nos processos de tomada de decisão de maneira diferenciada para que, com isso, possam exercer influência cultural e epistemológica nas decisões tomadas de maneira a fortalecer seus modos de vida e regimes de conhecimentos, o resultado final de processos de consulta deve ser considerado vinculante, ou seja, a resposta que esses povos e comunidades derem ao proponente, seja um "sim", um "não" ou um "sim, contanto que", deve ser totalmente considerado, sendo determinante para a realização ou não da proposta. 

Caso os afetados neguem a sua implementação, o proponente pode refazer o projeto ou proposta, incorporando as sugestões do povo ou comunidade, e submeter essa nova proposta a outro processo de consulta. Novamente, fica claro que a consulta prévia não apenas salvaguarda direitos desses povos e comunidades e direitos ambientais, como inclusive aperfeiçoa toda e qualquer proposta ou projeto, que vai sendo aperfeiçoado. No fim, os impactos acabam sendo diminuídos e, em muitos casos, poderão até mesmo ser praticamente nulos com esse aperfeiçoamento dos projetos e proposta

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