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quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Dos selvagens: o diabo é que nós não fazemos jus à Toga



por Bruno Walter Caporrino

 

Nesta quarta-feira, 30 de agosto de 2023, o mundo assistiu, incrédulo, ao  voto do ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal – STF, a Suprema Corte brasileira, no caso de repercussão geral que tem como pivô a “tese” do marco temporal.

O ministro que proferia o voto vestia a Toga, ícone máximo do pilar civilizatório ocidental. Tal ícone foi estabelecido Contrato Social que, teoricamente, nos separaria da barbárie ao inaugurar o Estado democrático de direito. Se recorrermos a todos os teóricos do Estado, à toda a discussão que historicamente nos trouxe até aqui enquanto sociedade, desde Platão até os Federalistas, passando por Rousseau e Hobbes, temos que a instituição do Contrato Social é o marco civilizatório inaugural de nossa humanidade e que tudo o que social e politicamente construímos desde então assenta-se sobre esses parâmetros de civilidade e humanidade: reformulados e aperfeiçoados, esses valores continuam, todavia, a fundar e fundamentar nossa humanidade, sempre nos dissociando, epistemológica e politicamente, do "estado de natureza" no qual estaríamos distantes do humano e próximos aos animais, à negação da humanidade.

Mas voltando ao ministro: lendo seu voto, ele recorreu à vasta literatura para fazer um sobrevôo pela verdadeira barbaridade genocida e etnocida que constitui a gênese do Estado brasileiro: inúmeros exemplos históricos de correrias e bandeiras, expedições de caça e violência aos povos indígenas, foram apresentados pelo ministro que, sob a Toga, contraditoriamente terminou por votar a favor da "tese" de que aqueles povos indígenas perseguidos, dizimados, escravizados, açoitados, violados e violentados na longa noite de genocídio etnocida que constitui a história do Brasil; depois de terem sido violentados e expulsos das terras que tradicionalmente sempre ocuparam, não têm direito ao usufruto constitucionalmente assegurado à demarcação desses territórios tradicionais nos casos em que não estivessem nessas terras em 05 de outubro de 1988.

Reconhecendo o morticínio perpetrado por nossa sociedade, com chancela legal, o ministro ainda assim votou pela continuidade de tal projeto. Sequer se preocupou em distorcer os fatos históricos, em negar que a história da sociedade e do Estado brasileiro é a história de iniqüidades e morticínios, antes de afirmar, em Plenário da Suprema Corte, que tal projeto deve prosseguir. Enumerou episódios dolorosos, recorrendo a documentos históricos para afirmar que sim, houve pilhagem e assassínio e que, mesmo assim, defendia a referida "tese".

O teor da "tese" consiste em que, por terem sido açoitados, violentados, perseguidos, escravizados, ameaçados física e culturalmente e, portanto, terem sido forçados por meios violentos a abandonar tais territórios de modo a não estarem neles em 05 de outubro de 1988, tais povos não têm direito à demarcação desses territórios.

Cumpre lembrar que tal "tese" foi estabelecida pelo próprio STF em 2009 quando, debruçando-se sobre a demanda Macuxi por Raposa Serra do Sol, estabeleceu 19 condicionantes das quais emana tal proposição: qual seja, a de que, depois de terem sido forçados por meios violentos – inclusive pelo Estado, ativa e dolosamente – a se retirar de seus territórios, não teriam, por isso mesmo, o direito de reivindicar a tradicionalidade de sua ocupação por não estarem nesses territórios em 05 de outubro de 1988.

O cinismo dessa "tese" só pode ser traduzido pela seguinte asserção: “eu, representante do Estado que vos violou, inclusive por meio do aparato estatal, inclusive por meio de leis, como os Autos da Devassa – na era cabanagem – ou o assimilacionista e etnocida Estatuto do Índio – declaro que vós, por terem sido por nós perseguidos e violentados, por nós expulsos de seus territórios historicamente, agora não têm direito a reivindicar seu usufruto com a devida chancela do Estado por não estarem nesses territórios em 05 de outubro de 1988: te corri à bala, e se não estavas em seu posto em outubro de 88, sinto muito, problema seu". 

Colocar nesses termos é essencial para que não percamos de vista o sarcasmo desse verdadeiro acinte não somente aos povos indígenas como também a todos os cidadãos e cidadãs brasileiros, à Humanidade e aos valores mais caros ao Ocidente e ao Estado democrático de direito em si, nos desguiando das prestidigitações malabaristas que a chicana dos rábulas converte em "argumentação técnico-jurídica".

Paralelamente a esse absurdo julgamento com repercussão geral na Suprema Corte, vale enaltecer, tramita em caráter de urgência no Senado o Projeto de Lei 2903/2023, decorrente do PL 490/2023: alicerçado sobre a mesma violenta proposição, o Projeto de Lei ainda por cima pugna que povos indígenas que, tendo sofrido por séculos a atuação etnocida da sociedade brasileira – e, reitere-se, do Estado – teriam “perdido seus traços culturais, deixando de ser indígenas e, portanto, sendo possível ao Estado revisar, com base em tal ‘perda de cultura’ seu direito às terras indígenas demarcadas”.

Novamente, não vejo como formular de outra maneira se não em primeira pessoa: “eu, legislador eleito pelo povo, no usufruto dos poderes a mim conferidos nesse sentido, discuto no Congresso Nacional o destino dos povos indígenas, sua sobrevivência; se serão finalmente extintos e dizimados, com base nos efeitos devastadores da própria prática etnocida que tal sociedade, por meio do Estado e com aval das leis, perpetrou, como foi o caso do famigerado Estatuto do Índio, Lei 6.001/1973, que tutelava os povos indígenas ao tomá-los por crianças incapazes e inumputáveis a quem o Estado deveria domesticar e esbranquiçar por múltiplos meios e recursos a fim de que, perdendo sua cultura, fossem finalmente ‘integrados à comunhão nacional’, uma vez que, diante de séculos submetidos a tais práticas etnocidas, finalmente ‘perderam sua cultura’”.

Ver um ministro da Suprema Corte, abrigado  sob a Toga, no conforto de sua cadeira e posição na sociedade, votar como votou, defendendo a perpetuação do etnocídio e do genocídio como política de Estado, enquanto os povos indígenas, educada e civilizadamente, assistiam aflitos a tal julgamento do lado de fora, me fez recordar um episódio por mim vivenciado na Escola de Direito da Universidade Federal do Amazonas, UFAM, onde fiz meu mestrado em antropologia social.

Na ocasião eu assistia a uma excelente palestra de professora doutora da Universidade sobre direito e povos indígenas em um simpósio científico quando um aluno do 5º ano de direito, aberto o espaço para perguntas, fez uma série de rodeios –  visivelmente preocupado em esconder seu desprezo e rancor –  para finalmente declarar achar “absurdos os tantos privilégios de que os povos indígenas, que mal sabem falar português e escrever, verdadeiros estrangeiros dentro do Brasil", usufruem: discrepantes, seus privilégios ferem a soberania nacional e instauram desigualdades no seio do Estado democrático, argumentava.

"Veja-se por exemplo”, prosseguiu, ganhando coragem, o estudante de direito, “o caso simples do ingresso desses indígenas em órgãos do Judiciário brasileiro: diferentemente de todos os ‘cidadãos comuns’ esses indígenas entram seminus, sem camisa, de bermuda e, pior!, entram armados – usando arcos e flechas, lanças e bordunas, forçam o Judiciário a lhes dar um tratamento privilegiado e desigual”.

Não me contive e solicitei à egrégia professora o direito à réplica, fazendo este quinto-anista entender o que significa, no direito – sua área de estudo –  o princípio da isonomia, resgatando Hans Kelsen e explicando qual a importância de se oferecer condições diferenciadas para que os diferentes, no exercício de sua diferença, poderem usufruir de direitos em condições de igualdade. Busquei demonstrar-lhe como, historicamente, tais povos foram, mais do que alijados de direitos, subjugados violentamente pelo Estado com o uso da Lei, ao que o estudante retrucou que “no fundo, tudo isso são privilégios: o Poder Judiciário se curva perante eles, cedendo em demasia enquanto eles em nada cedem”.

 A isso contra-argumentei com uma pergunta: em termos de cessão, vamos analisar quem cede e quem em nada cedeu ou cede jamais? Argumentei que que tais povos, mesmo depois de terem sido caçados e mutilados, escravizados e dizimados, pelo aparato estatal, com chancela do Estado e do Poder Judiciário, fundamentando tais práticas em leis, ainda tinham a generosidade, a benevolência (ou, melhor ainda, a civilidade) de, depois de tudo isso, ainda reconhecer nossa língua, nossos costumes, nossas leis, nossa Constituição, nossas instituições, nossos Procuradores da República, nossos Juízes, nossas cortes e leis como legítimos, e ainda acessavam tal sistema, a despeito de toda a dificuldade, reconhecendo-o, endossando-o, litigando civilizadamente em nossas cortes para que faça valerem as nossas leis: litigando respeitosamente para que os deixemos continuar existindo enquanto tais. Resta inequivocamente claro quem cede, nessa história, e quem não.

Ver o Congresso Nacional e o togado André Mendonça confortavelmente decidindo acerca da continuidade do etnocídio e do genocídio como política de Estado, sob a chancela legal, me fez recordar desse episódio porque, no fundo é disso que se trata: novamente, os povos indígenas demonstram publicamente sua civilidade ao reconhecer nosso idioma, nossas leis, nosso Poder Judiciário, nosso Estado, nossas instituições como legítimos para determinar, por nossas leis – sem nos forçar a nos adequar a seus sistemas sociopolítico e epistemológico – a continuidade ou não de sua existência como povos, como humanidade. O que está em xeque é a nossa humanidade, e não a deles; a nossa civilidade, e não a deles – é isso que a sociedade precisa finalmente entender.

O Estado democrático de direito, inaugurado pela Constituição – que vem sendo acintosamente desrespeitada pelo Legislativo e pelo Judiciário – preconizam um pacto civilizatório centrado no respeito e que este pacto, afinal, seria o que nos civilizaria, segundo os próprios valores fundantes do Ocidente moderno: quem o diz são os teóricos de todo esse sistema, os pilares sobre os quais se assentam a nossa civilização, não eu, ou os povos indígenas. O conceito de civilização emerge e permeia cada desvão de debate que trouxe a o ocidente moderno burguês até a construção daquele recinto onde votava-se o destino dos que, nesse processo, sempre foram relegados ao "plano da natureza" e, portanto, epistemologicamente, associados ao "estado de natureza" cuja negação é, filosoficamente, o pilar de todo nosso sistema de justiça e organização social.

Mas diante de tudo o que temos assistido, só nos resta uma conclusão: se empregarmos o conceito fundante desse arcabouço normativo, centrado na emergência da civilização - o modo de vida ocidental moderno - como negação do estado de natureza a que sempre foram relegados os Outros oprimidos por esse sistema, a questão adequada a se enunciar é: se há algum civilizado nessa história, uma vez mais, são os povos indígenas. 

É possível dizê-lo, no manejo dos regimes de valores que fundamentam a legitimidade da própria Toga, uma vez que os povos indígenas são aqueles que, nessa história, mais endossam, reconhecem e respeitam nossos Poderes Legislativo e Judiciário, nossa Constituição Federal, reiteram o pacto que eles fazem, com isso, em prol do Estado democrático de direito. Talvez seja até possível dizer que, por sua natureza sociopolítica e condição histórica, os povos indígenas sejam os únicos a terem realmente firmado um Contrato Social conosco e nosso sistema de valores, enquanto nossos representantes nesses poderes desrespeitam não apenas os povos indígenas e sua humanidade, sua cidadania, como também a Humanidade como um todo ao desrespeitar nossos próprios pilares fundantes e fundamentais de humanidade e civilidade: agem em desacordo com os próprios regimes simbólicos, epistemológicos, políticos e sociais que fundamentam e legitimam a Toga que vestem.

Como dizia Michel de Montaigne em seu célebre ensaio (escrito no século XVI) sobre “os canibais”: “o diabo é que eles não usam calções”. Ou seja, a única diferença, para Montaigne, entre os selvagens e os civilizados (depois de demonstrar como seus costumes, no fundo, são tão humanos como os costumes da humanidade ocidental, não obstante tão diversos) é que os selvagens não usariam calções.

Mas ó, grande Montaigne, quão triste é a história do Ocidente: estavas redondamente enganado porque há uma brutal diferença entre “selvagens” – indígenas – e “civilizados” – não-índios, e é justamente o fato de que os selvagens, que não usam Toga, serem os únicos que fazem jus a ela. 

O diabo, Montaigne, é que nós que não merecemos a Toga, pois se há alguém, nessa história toda que, de acordo com os nossos valores - de acordo com os valores e critérios fundantes de nossa civilização e humanidade - faz jus à Toga e a tudo o que ela representa, esse alguém são os índios. Em outras palavras, os não-ocidentais se mostram, com mais esse episódio, melhores ocidentais que nós.

Altamira, 30 de agosto de 2023

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

os benefícios da realização da consulta prévia: da segurança jurídica ao aperfeiçoamento dos projetos e medidas

 

Dos benefícios da realização da consulta prévia: da segurança jurídica ao aperfeiçoamento dos projetos e medidas

Bruno Walter Caporrino


Fotografia: Bruno Walter Caporrino. Comunidade de Padaria, RDS do Iratapuru, Amapá, 2013. Zeiss Ikon Contaflex e película Ilford Delta 100, 35mm.

Em meio aos debates que permeiam o Fórum, acho importante lembrar que o Brasil, como signatário (em 1989) da Convenção no. 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT, (da qual é membro) incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto 5.051/2004 (revisado pelo 10.088/2019) e ocupando, por seu estatuto de tratado de direito humano, posição supra-legal (acima de todas as outras leis, e no nível da Constituição Federal), se obriga, portanto, a proceder a consulta prévia, livre, informada, de boa-fé e culturalmente adequada (Art. 6o da Convenção). Esse artigo do tratado ratificado pelo Brasil e que tem peso constitucional determina que:

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:

a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;

c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.

2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. (OIT, 1989).

A fim de salvaguardar o direito das populações indígenas e tradicionais à participação cidadã diferenciada e reforçando o direito à autodeterminação e ao autogoverno que a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, da qual o Brasil também é signatário, o processo de consulta prévia, livre, informada, de boa-fé e culturalmente adequada deve ser realizado antes que qualquer empreendimento os afete e durante todo o processo de licenciamento ambiental. Achei importante lembrar isso aqui no fórum pois se trata de algo que o Ministério Público Federal tem recomendado insistentemente e que é reivindicado pelas populações indígenas e tradicionais.

O teor da Convenção se coaduna ao que prescreve o diploma constitucional e, por isso, foi ratificada. O direito à participação se estende a todo cidadão brasileiro, sendo portanto necessário averiguar a legitimidade dos procedimentos de consulta à população não-indígena. Um aprendizado muito importante que a consulta prévia aos povos indígenas e tradicionais nos traz são seus protocolos de consulta, instrumentos próprios, como previsto pela OIT 169, por meio do qual determinam os critérios de legitimidade do processo de negociação com o Estado, definindo quem os representa, qual o quórum para uma decisão ser efetiva, quantas reuniões deve haver, quem deve estar presente e quem não deve em qual reunião.

Desenvolveram esses mecanismos porque, ao longo da história, os colonizadores foram hábeis em escolher "quem fala e representa esses índios", ferindo gravemente o princípio da autodeterminação dos povos e o fundamento do autogoverno, amparados, respectivamente, pela Convenção 169 da OIT e pela Declaração da ONU de 2007. Era comum que o poder colonial escolhesse quem eram os "chefes" e assim fez o próprio SPI.

O aprendizado que os povos indígenas e tradicionais nos trazem com os protocolos é que se apropriaram melhor que nós mesmos, ocidentais, da democracia representativa. Assim, como o direito à participação das decisões do Estado se estende a todos os cidadãos, todos têm que ser consultados e, no nosso caso, não-índios, os critérios de legitimidade das decisões e da representatividade deve ser pactuado.

Cumpre salientar que a BR 319 não matará as filhas dos manauaras com leishmaniose e estupro, não as afetará tanto quanto às indígenas e tradicionais, então é razoável que todos consideremos isso quando pensarmos no empreendimento. Ele cortará os mundos deles, não os de quem está nas grandes cidades.

Dito isso, é importante pontuar que para que o Estado democrático de direito seja realmente efetivado todos têm de ser consultados e, repito, a questão é definirmos quem, entre os 2.5 milhões de mauaras e etc fala pelo "Amazonense". É dizer: se um brasileiro vai à Washington, por exemplo, e diz ao governo estadunidense que os brasileiros desejam que todo o lixo nuclear dos Estados Unidos sejam despejados no Brasil, esse cidadão fala em nome do coletivo que diz representar?

A segunda questão que o processo de consulta prévia, livre, informada e de boa-fé nos ensina é que quanto mais prévio, livre de chantagens, coerção, coação, pressão e ameaça; quanto mais informado forem todos os cidadãos, subsidiados com informações idôneas e neutras, e quanto mais organizados forem os cidadãos acerca de como desejam se reunir para pactuar decisões, mais apurado e bom para todas as partes é qualquer projeto.

Quanto mais informações de qualidade toda a sociedade brasileira obtiver acerca dos impactos que qualquer obra traz e quanto mais fóruns deliberativos tiver, e quanto mais legítimos forem esses fóruns, melhor para todos. Resumidamente, portanto, cuido que todos deveríamos parar de "nivelar por baixo", libertando-nos da lógica da escassez segundo a qual para um grupo se dar bem outro tem, necessariamente, que ser prejudicado. Essa lógica faz com que a população aceite mineradoras construindo barragens precárias, aceite a total fragilização da legislação ambiental e do licenciamento, disputando a tapas as migalhas de empreendimentos bilionários que instituem precariedade para causar disputas e, assim, instalar-se com o menor custo e maior lucro.

Assim, se todos são devidamente consultados, previamente, sem pressões ou ameaças, e com base em informações aprofundadas, o que é um processo longo, ao fim dele é possível chegar a alternativas inclusive muito mais eficientes e melhores.

A experiência mostra que  nos contextos onde houve consulta prévia aos indígenas e tradicionais e o processo de consulta aos cidadãos não-indígenas foi longo, amplo, superando as audiências públicas que são perigosas por serem sumárias e sem representantes de todos os segmentos; nesses contextos os projetos foram debatidos por toda a sociedade, os prós e contras foram esmiuçados e outras propostas, inclusive muito melhores, foram desenhadas. Ou seja, todos os cidadãos têm de ser consultados, aos indígenas e tradicionais a OIT 169 assegura que esse processo seja diferenciado para compensar desigualdades nas condições de compreensão e ofertar os direitos em igualdade (CF art.5o) e a decisão deles têm que ter peso 2, primeiramente porque serão seus mundos os mais afetados e em segundo lugar por serem os donos originais da terra.

Quando o mercado consegue colocar os atores uns contra os outros, alegando que a proposta pronta deve ser aceita, ele.nega a possibilidade de se construir outras propostas. Isso é lucrativo. Para as empresas. A Vale é um exemplo e Mariana e Brumadinho demonstram que, se a sociedade civil tivesse conhecimento prévio do empreendimento e pudesse alterar a proposta, exigindo como condição para sua instalação, portanto, outros tipos de barragem, outros lugares para elas, etc, todos teriam lucrado e o fim do Rio Doce e das vidas de 200.000 pessoas teria sido evitado.

Todos têm que ser consultados, aos indígenas e tradicionais o peso da decisão deve ser maior e as consultas aos não-índios devem ser mais qualificadas: definir quem fala em nome de quem, quem toma as decisões em nome de quem, possibilitar que toda a sociedade tenha acesso a informações verdadeiras e sérias e possa debater sem ameaças ("ou você aceita o projeto ou demito os professores da escola do seu bairro", como diversas vezes se verifica que ocorre, por exemplo). Com consulta ampla e qualificada todos ganham.

Adianto o tema do próximo texto dessa série: licenciamento não é consulta prévia. Convenção 169 da OIT, em consonância à Constituição, não determina quilometragem para a Consulta Prévia, o que feriria o direito de autodeterminação. Destarte, é importante colocar a questão da consulta prévia como pauta qualificada maro-zero, sob o risco de cometer etnocídio e mesmo genocídio, o que ninguém quer. Quanto à essa discussão sobre quilometragem, me recordo de uma frase que os Wajãpi, primeiro povo indígena a ter um Protocolo de Consulta e que tive a honra de ajudar a construir dizem: "placa não fala".

Carapanã com malária, peão molestador de criança, mercúrio, grileiro, pistoleiro, não obedecem quilometragem ou respeitam limites de áreas protegidas, de modo que os impactos da conexão instaurada pelo asfaltamento transcendem em muito, e brutalmente, quilometragem. Cumpre lembrar o posicionamento do MPF, expresso pelo doutor Felício Pontes quanto à fragilidade da legislação ambiental ao determinar quilometragem restrita e aspectos diminutos na avaliação dos impactos.

Altamira, caso pelo Procurador citado, teve um aumento de 500% no número de latrocínios e de quase 200% no caso de estupro assim que a Licença para Instalação de Belo Monte saiu. Por isso, quanto mais aprofundado e qualificado for um processo de consulta e, portanto, debate, com mais informações de qualidade apropriadas e discutidas por toda a população, ressalvando os direitos diferenciados dos povos indígenas, melhor será o processo de decisão relativo ao empreendimento.

Como saliento  a tese de que "uns poucos índios não podem parar a obra" é nula e, como tenho dito em diversos textos, quanto mais legítimo, representativo, qualificado for o processo de consulta prévia, mais qualificada fica a decisão da sociedade civil. Um exemplo é Mariana: a população local aceitou as barragens em uma única audiência pública de 5 horas na qual as 1500 paginas do Estudo de Impacto foram apresentadas num Power Point e os impactos foram traduzidos apenas como "pequenos detalhes técnicos".

O restante da audiência pública foi destinado a versar sobre os empregos e benefícios que a instalação da barragem prometia. A população de Mariana não estava legitimamente representada nessa audiência, havendo moradores que sequer conheciam as pessoas que diziam representá-los e, além disso, as comunidades não tiveram tempo e meios para se apropriar do Estudo e discutir nas bases. Investigações científicas demonstram que a população de Mariana, assim como de Brumadinho, desconheciam como eram as barragens de rejeitos e os riscos que aquela modalidade representava.

Mais de 90% dos moradores afirmou jamais ter visto o corte transversal dela e discutido os impactos, arrependendo-se da decisão. A grande conclusão é que quanto mais consulta prévia, livre, informada, culturalmente adequada e de boa-fé houver, mais aprofundada e qualificada será a discussão e a decisão e quanto mais a sociedade civil conhecer em detalhes os impactos de qualquer empreendimento e mais ela puder debater qualificadamente, melhor será sua decisão e melhores as contrapropostas porque mais qualificada a pauta.

No caso da BR 319 observa-se que as comunidades diretamente afetadas não estão sendo consultadas conforme determinam a OIT 169 e a Constituição, o que é grave infração a tratado de direito humano de peso constitucional e, ao mesmo tempo, o debate conduzido pela sociedade envolvente ignora as verdadeiras pautas, como o ordenamento fundiário, por exemplo. Ferrante e Fearnside já mostraram cientificamente, provando o aumento nos índices de desmatamento na linha do tempo e  na série histórica.

O ordenamento fundiário da região é frágil e, com a MP da grilagem, mais perigosa ainda se torna a conectividade discutida. Uma das pautas que a sociedade civil teria que conhecer e discutir é a do ordenamento fundiário, o que demanda uma análise do Cadastro  Ambiental Rural, CAR no Sigef, que mostraria a corrida por terras que o simples debate sobre o asfaltamento já causou.

Qualificar a pauta e fortalecer processos e instâncias de debate para a sociedade civil só traz ganhos a todos e possibilita a indução de políticas públicas mais qualificadas para a região. Então, havendo consulta prévia, como provo em minha dissertação de mestrado, políticas públicas que não eram eficientes ou existentes no território passam a ser reivindicadas como condição sine qua non para a instalação do empreendimento e as pressões oriundas do deslocamento populacional induzido por ele serão melhor mitigadas.

Lanço mão de um exemplo: qual é a situação do sistema de atenção à saúde nos municípios da região cortada pela estrada? O Idesam fez um belo e aprofundado estudo sobre esses 13 municípios e sabemos que, diante de seu IDH baixo, o sistema de saúde não terá condições de atender a todos os inúmeros grupos que se deslocarão para as margens da rodovia, por exemplo. Sem ordenamento fundiário esses grupos se digladiarão por terras e a violência se instala. Ninguém quer isso, a não ser uma minoria que visa promover especulação imobiliária usando a BR como indutor de valor às terras do entorno e isso é prejudicial à toda a sociedade.

Por fim, é importante lembrar que todos os casos onde estradas que cortaram a Amazônia sem consulta prévia e respeito às leis ambientais engendraram banhos de sangue, como estão para provar os Waimiri-Atroari sobre a BR 174, os Yanomami e Wajãpi quanto à BR-210, e todas as populações indígenas e tradicionais, pequenos agricultores e extrativistas mortos na história da Transamazônica. Tendo certeza que ninguém quer o genocídio, que estupro, grilagem, malária, leishmaniose, pistoleiros, se instalem na região, reitero que o único meio de evitar isso é realizar a consulta prévia nos termos da OIT 169 aos povos indígenas e tradicionais de todos os 13 municípios e realizar um processo qualificado e aprofundado  de consulta à toda a população, pois conhecendo bem os impactos, discutindo isso sem ameaça e pressão, pactuando consensos legítimos e estabelecendo condicionantes, toda a população ganha.

Um caso interessante é o dos Mura de Autazes e Careiro que tive a honra de ser designado pelo MPF e pela Justiça Federal como perito para a realização do Protocolo de Consulta e Consentimento Mura. A mineradora Potássio do Brasil, que foi ré na ação e teve de parar sua instalação por descumprimento à OIT 169 e à própria legislação do licenciamento afirmou na audiência final do processo, onde o Protocolo foi entregue, que avaliando o caso concluiu que seria muito mais interessante para o empreendedor ter realizado a consulta prévia antes de instalar-se.

Por não ter realizado, sofreu processo, a planta ficou parada e foi responsabilizada por uma série de ilícitos que sua instalação induz mas que não são de sua responsabilidade. Assim, a própria mineradora afirmou que, se tivesse conhecimento antes ,teria realizado a consulta prévia aos Mura e tradicionais e debatido de forma clara e transparente com a sociedade civil sobre o empreendimento. Afirmou inclusive que se tivesse feito isso teria se livrado de responsabilidades que não são de sua competência, mas sim das prefeituras, do governo do Estado, do governo federal: teve que arcar com custos de infra-estrutura (UBS ,por exemplo) que não eram de sua responsabilidade ,e foi responsabilizada pela grilagem e pelos assassinatos que a disputa por terras gerada por sua instalação engendrou.

Se tivesse havido consulta prévia e o ordenamento fundiário resolvido, se a sociedade civil tivesse se apropriado do projeto e discutido de forma ampla e legítima, sua instalação teria sido, como estimaram, 50% mais barata. Não tendo consulta prévia, não puderam induzir uma série de políticas públicas e tiveram que fazer coisas que não é seu papel fazer, além de serem obrigados a subornar prefeitos e vereadores, comprar lideranças, etc; pagar um processo judicial caríssismo. O próprio empreendedor concluiu que sem a consulta prévia faltou-lhe a segurança jurídica necessária para operar, deixando tudo mais caro, moroso, e improdutivo.

A conclusão a que se chega, portanto, é que Sendo o objetivo da consulta prévia assegurar a participação das populações indígenas e tradicionais nos processos de tomada de decisão de maneira diferenciada para que, com isso, possam exercer influência cultural e epistemológica nas decisões tomadas de maneira a fortalecer seus modos de vida e regimes de conhecimentos, o resultado final de processos de consulta deve ser considerado vinculante, ou seja, a resposta que esses povos e comunidades derem ao proponente, seja um "sim", um "não" ou um "sim, contanto que", deve ser totalmente considerado, sendo determinante para a realização ou não da proposta. 

Caso os afetados neguem a sua implementação, o proponente pode refazer o projeto ou proposta, incorporando as sugestões do povo ou comunidade, e submeter essa nova proposta a outro processo de consulta. Novamente, fica claro que a consulta prévia não apenas salvaguarda direitos desses povos e comunidades e direitos ambientais, como inclusive aperfeiçoa toda e qualquer proposta ou projeto, que vai sendo aperfeiçoado. No fim, os impactos acabam sendo diminuídos e, em muitos casos, poderão até mesmo ser praticamente nulos com esse aperfeiçoamento dos projetos e proposta

Áreas protegidas e democracia

 

Áreas protegidas e democracia

Sobre participação cidadã e gestão integrada e participativa de áreas protegidas e gestão socioambiental

Bruno Walter Caporrino

Foto: Bruno Walter Caporrino. BR 210, Perimetral Norte, dentro da Terra Indígena Wajãpi

Promulgada em 1988 a Constituição Federal estabelece, pela primeira vez na história do país, os fundamentos, princípios e objetivos de um Estado democrático de direito e, por isso, calca esse programa no pilar da participação cidadã.

Organizado como uma pirâmide, seguindo o princípio da pirâmide de Kelsen, esse Programa está estruturado de maneira a, desde seu vértice, iluminar todos os demais artigos e leis. Funcionando como uma cascata, o Diploma Constitucional conta com 5 cláusulas pétreas: seus 5 primeiros artigos são inquestionáveis e inegociáveis porque contém os elementos estruturais de todo o projeto de Estado democrático de direito.

Em seu primeiro artigo, a Constituição estabelece, parágrafo único, que “todo o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos”, logo depois de determinar, ainda neste Artigo, que são fundamentos deste projeto de Estado democrático de direito “I–a soberania; II–a cidadania; III–a dignidade da pessoa humana; IV–os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V–o pluralismo político”.

A cidadania e o pluralismo político são os fundamentos que mais nos interessam aqui porque serão eles a base das políticas públicas voltadas ao meio ambiente e, por isso, para compreendê-las a fundo é interessante contemplar o que a lei maior estabelece e como se articulam e repercutem princípios e objetivos contidos na Constituição em leis e mecanismos afeitos às áreas protegidas.

Funcionando como uma cascata, a Constituição vai vincular, obrigatoriamente, cada artigo subsequente a esses fundamentos que estão no vértice. Ainda no Art. 3º, estipula que um dos objetivos fundamentais do país é “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (inciso IV) e no Artigo 4º determina que prevalência dos direitos humanos (Inciso II) e autodeterminação dos povos (inciso III) são princípios do Brasil nos seus relacionamentos internacionais.

O ordenamento jurídico brasileiro estipula uma hierarquia segundo a qual todos os artigos da Constituição obedecem ao que consta nas cláusulas pétreas, devendo determinar condições para sua concretização da mesma maneira que a legislação infra-constitucional, que deve especificar em detalhes cada determinação constitucional, sempre à luz do prisma dessa pirâmide.

Iluminados por esses princípios, seguem artigos capitais para a implementação do Estado democrático de direito assentado sobre o respeito à sociobiodiversidade, que é condição sine qua non para sua implementação. Um grande advento trazido pela Constituição é vincular o direito ao meio ambiente equilibrado à diversidade sociocultural do país, alinhando-se com o movimento que possibilitava ao conhecimento científico estabelecer essa intrínseca correlação.

Dentre os artigos da Constituição que interessam para seguir nessa seara destaca-se, por exemplo, o artigo 216, que dispõe sobre as manifestações culturais diversas como patrimônio imaterial e segue a constatação de que, já que o pluralismo político é essencial para o Estado democrático de direito tanto quanto a igualdade, é fundamental respaldar os diversos grupos que compõem a comunidade nacional em seu direito à diversidade. Isso é necessário para que, sendo diversos, expressem isso de maneira cidadã por meio da participação e, assim, o regime democrático se realize. Eis como o direito à diversidade sociocultural se vincula ao pluralismo político e a partir disso uma série de normas determina condições específicas para que seja possível assegurar diversidade de ideias e de opiniões e posicionamentos.

Já o artigo 225 da Constituição determina que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

A Lei Maior do país estabelece que o meio ambiente sadio e equilibrado é um direito, mas também determina que zelar por isso exige participação cidadã, pois é dever de todos e, afinal, todo o poder emana do povo que, como conjunto de cidadãos, tem dever de agir em prol do bem estar da coletividade, segundo o próprio ordenamento constitucional.

Formalmente há que se dizer que, para que o Programa Constitucional possa ser realizado, uma série de políticas públicas se faz necessária. A fim, portanto, de dar encaminhamentos programáticos mais concretos e específicos à concretização do que determina no Art. 225, foi promulgada em 2000 a Lei 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, mais comumente conhecido como Snuc. Formalmente, o Snuc regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, instituindo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e estipula providência para sua gestão e manutenção.

Portanto, as Unidades de Conservação (UCs) são instrumentos legalmente reconhecidos para a gestão que, conforme determina a legislação (Constituição e Snuc) deve ser integrada e participativa: os Conselhos, sejam deliberativos ou consultivos, são peças-chave para a referendação das ações dos gestores.

Criar e gerenciar uma Unidade de Conservação é dever e responsabilidade do poder público, sobretudo porque manter o meio ambiente equilibrado, direito de todos os cidadãos brasileiros, é dever do Estado. Mas não somente, pois tal responsabilidade é dividida com os cidadãos e os Conselhos gestores ou consultivos são os fóruns primordiais para essa gestão compartilhada.

O Snuc determina que toda a gestão das Unidades de Conservação seja apreciada por um Conselho, que pode ser consultivo, no caso de UCs de proteção integral, ou gestor, no caso de UCs de uso sustentável nas quais morem populações. O Snuc estipula isso a fim de promover a participação nas decisões executivas inerentes à sua gestão com a sociedade civil, ali representada pelos atores designados pela Portaria de instituição do Conselho, iluminado pelo fundamento da cidadania.

O programa estipulado pelo Snuc para cada categoria de UC, que poderá ser municipal, estadual ou federal, e de uso sustentável ou proteção integral é acompanhado de determinações a respeito de como se deve proceder para instituir a UC: critérios para sua criação e manutenção passam pela consolidação de um zoneamento e do Plano de Manejo que, também segundo o Snuc, deve contemplar critérios rigorosos inscritos na Lei 9.985/2000 e detalhados em resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), por exemplo.

Os Conselhos são, então, o principal mecanismo por meio do qual os objetivos preconizados pelo Snuc chegam perto de ser efetivados em prol de uma gestão integrada e participativa, o que, por sua vez, depende de uma aplicação concreta do que preconiza a Constituição Federal desde seu art. 1º.

Mas a participação cidadã diferenciada em prol da gestão socioambiental não se restringe aos Conselhos de UCs. Há outros fóruns legalmente estabelecidos por meio dos quais a gestão deve ser paritária, participativa e integrada, como os Conselhos Estaduais de Meio Ambiente e os Conselhos Municipais de Meio Ambiente.

Os Conselhos Estaduais de Meio Ambiente são  integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), instituído pela Lei Federal nº 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, regulamentada pelo Decreto Federal nº 99.274/90

Já a instituição dos Conselhos Municipais de Meio Ambiente está prevista na Lei nº 6.938/1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), bem como na Resolução Conama nº 237/1997, que trata sobre a revisão e complementação dos procedimentos e critérios utilizados para o licenciamento ambiental. 

Além disso, sempre à luz do parágrafo único do Artigo Primeiro da Constituição Federal, o ordenamento jurídico brasileiro também prevê a constituição de outros fóruns deliberativos que asseguram a participação cidadã e determinam condições para que esta seja realizada em sua plenitude com o advento da diversidade sociocultural. É o caso dos Comitês de Bacias Hidrográficas. Segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico:

Os Comitês de Bacia são grupos de gestão compostos por representantes dos três níveis do poder público (federal – caso a bacia envolva mais de um Estado ou outro país, estadual e municipal), usuários da água e sociedade civil.

É por meio de discussões e negociações democráticas, que esses comitês avaliam os reais e diferentes interesses sobre os usos das águas das bacias hidrográficas. Possuem poder de decisão e cumprem papel fundamental na elaboração das políticas para gestão das bacias, sobretudo em regiões com problemas de escassez hídrica ou na qualidade da água. As principais decisões tomadas pelo comitê são: aprovar e acompanhar a elaboração do Plano de Recursos Hídricos da Bacia, que reúne informações estratégicas para a gestão das águas em cada bacia; arbitrar conflitos pelo uso da água (em primeira instância administrativa); estabelecer mecanismos e sugerir os valores da cobrança pelo uso da água (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, https://www.ana.gov.br/aguas-no-brasil/sistema-de-gerenciamento-de-recursos-hidricos/comites-de-bacia-hidrografica/comite-de-bacia-hidrografica ).

 

O Conselho Nacional de Recursos Hídricos pactua resoluções que determinam desde a obrigatoriedade de formar um Comitê de Bacia Hidrográfica sobre corpo d´água no qual se vislumbre fazer um empreendimento até as condicionantes e parâmetros para o compartilhamento justo dos recursos hídricos entre os diversos segmentos da sociedade.

Mencionei os Conselhos Estaduais e Municipais de Meio Ambiente, mas, além destes, há o Conselho Nacional de Meio Ambiente, conhecido como Conama, e que tem o papel de assegurar, de maneira paritária, a representatividade da sociedade civil que ocupava cadeiras com representantes eleitos nas Conferências de Meio Ambiente. Criado pela Lei Federal nº 6.938/81 e, como dito, é o órgão colegiado brasileiro responsável pela adoção de medidas de natureza consultiva e deliberativa acerca do Sistema Nacional do Meio Ambiente. O Conama se reunia com frequência duas vezes ao ano desde a década de 1980 porém, assim como outros colegiados, não mais se reúne desde 2019.

Enquanto se reunia, o Conama apreciava questões trazidas pela sociedade civil organizada ou propostas pelos próprios gestores e deliberava resoluções de cunho técnico. Suas resoluções funcionam como súmulas do Supremo Tribunal Federal (STF), na medida em que consistem em pareceres técnicos, deliberados democrática e paritariamente a fim de nortear o entendimento, a interpretação das leis e estabelecer com suas resoluções obrigações para a sociedade civil ou Estado.

Uma importante resolução do Conama é a Resolução 13/90 que, visando a conservação dos ecossistemas protegidos por Unidades de Conservação, resolve que as atividades econômicas exercidas no entorno das unidades de conservação devem ser definidas pelo órgão responsável pela UC, juntamente com os órgãos licenciadores e de meio ambiente. Também é famosa a resolução 428/2010, na qual lemos que:

O CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE-CONAMA, no uso das atribuições e competências que lhe são conferidas pelo art. 8º da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, regulamentado pelo Decreto nº 99.274, de 06 de julho de 1990 e tendo em vista o disposto em seu Regimento Interno, Anexo à Portaria MMA nº 168, de 13 de junho de 2005, e: Considerando a necessidade de regulamentar os procedimentos de licenciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental que afetem as Unidades de Conservação específicas ou suas zonas de amortecimento, resolve:

Art. 1º O licenciamento de empreendimentos de significativo impacto ambiental que possam afetar Unidade de Conservação (UC) específica ou sua Zona de Amortecimento (ZA), assim considerados pelo órgão ambiental licenciador, com fundamento em Estudo de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), só poderá ser concedido após autorização do órgão responsável pela administração da UC ou, no caso das Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPN), pelo órgão responsável pela sua criação. (CONAMA, 2010).

 

Essa resolução é um marco porque, na prática, o gestor da Unidade de Conservação só pode emitir a autorização (ato administrativo relativo à gestão da Unidade), a rigor, se submeter isso ao Conselho da mesma, o que fortalece muito os Conselhos como instâncias de participação com um poder, embora vago, de veto e modificação de propostas que incidem sobre o território. Talvez por ser algo vago, nem conselhos nem gestores façam muito uso desses dispositivos, que foram muito usados no Amapá em diversos casos[PC1] .

Além do Conama há também o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, conhecido como CNRH. Trata-se de um colegiado intergovernamental que, além de outras competências, tem a função legal de: (i) promover a articulação do planejamento da gestão dos recursos hídricos com os planejamentos nacional, regional, estadual e dos setores usuários; (ii) acompanhar a execução e aprovar o Plano Nacional de Recursos Hídricos; (iii) determinar as providências necessárias ao cumprimento de suas metas, e (iv) estabelecer critérios gerais para a cobrança pelo uso dos recursos hídricos.

Poderosos[PC2]  fóruns legalmente reconhecidos com base nos fundamentos do Estado democrático de direito e, portanto, imprescindíveis para a realização do fundamento da participação cidadã no zelo pelo meio ambiente equilibrado, esses Conselhos vêm sofrendo, todavia, dilapidação e desidratação. Segundo Tomanik:

Dentro de enfoque intergovernamental, a Lei nº 9.433, de 1997, institui que o CNRH é composto por representantes: (i) dos ministérios e das secretarias da presidência da República, com atuação no gerenciamento ou uso de recursos hídricos; (ii) indicados pelos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos; (iii) dos usuários; e (iv) das organizações civis de recursos hídricos (art. 34, I a IV). Pela lei, cada Conselho Estadual deve indicar um representante, seu membro ou não. O decreto nº 2.612, de 1998, com alterações posteriores, em vez de adotar a redação da lei, ou seja, referir-se a representantes indicados pelos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, modificou o sentido daquela e estabeleceu que haverá no Conselho representantes dos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos. Em desacordo com a lei, limitou o número dos representantes estaduais a cinco, escolhidos em cada região administrativa federal, pelos conselhos estaduais ali existentes, sendo os suplentes obrigatoriamente de outro estado, da mesma região (art. 2º, IV, § 2º). Com isto, a maioria dos estados e até o Distrito Federal deixaram de integrar o conselho, participando, quando é o caso, de Câmaras Técnicas, o que não é a mesma coisa e nem o previsto na Lei nº 9.433, de 1997. (Pompeu, Cid Tomanik. (2003). O papel do conselho nacional de recursos hídricos - CNRH. Ciência e Cultura, 55(4), 42-44. Retrieved September 06, 2020, from http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252003000400023&lng=en&tlng=pt.)

 

Subsidiando tudo isso havia, até maio de 2019, a Política Nacional de Participação Social. Instituída pelo Decreto 8.243/2014, a política pública instituia o Sistema Nacional de Participação Social e, assim, vinculava administrativamente as conferências nacionais, por exemplo, aos demais fóruns, possibilitando a concatenação das deliberações conjuntas entre sociedade civil e Estado.

O Sistema seria chefiado pela Secretária-geral da Presidência da República, estando previstos um conselho permanente; comissões temáticas; conferências nacionais periódicas; uma ouvidoria pública federal; mesas de diálogo; fóruns interconselhos; audiências e consultas públicas; e ambiente virtual de participação social. A intenção era permitir que as entidades influenciassem as políticas e os programas de governo e consolidassem a participação social amarrando as diversas instâncias e mecanismos participativos, entre eles as Conferências Nacionais de Meio Ambiente.

Paralelamente a isso, o Brasil dispõe de outros mecanismos infra-constitucionais que subsidiam a manutenção da diversidade sociocultural essencial à participação cidadã. Um exemplo é o Decreto 6.040/2007, que Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, a ser gerenciada de maneira paritária e participativa pela Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT): povos e comunidades tradicionais poderiam, organizados, estabelecer consensos e representantes que, nesta Comissão, seriam ouvidos pelo Estado acerca de como proceder para salvaguardar seus direitos. Essa participação ocorre paralelamente nos demais fóruns de participação, desde os Conselhos Municipais de Meio Ambiente ao Conama, passando pelos conselhos das UCs.

As políticas públicas instituídas mediante pressão organizada da sociedade civil foram conformando um arcabouço normativo infra-constitucional concatenado. Exemplo disso é que a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena (PNGATI) foi criada com base nas experiências concretas dos próprios povos indígenas que já faziam seus Planos de Gestão muito antes da Política existir e elaborada de maneira participativa, por meio do Projeto GATI, parceria da The Nature Conservancy com a Fundação Nacional do Índio. O decreto 7.747/2012, que institui a Política foi debatido e referendado pelos povos indígenas e estabelece meios para a integração entre a gestão das Terras Indígenas e das Unidades de Conservação.

Como mencionado, o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho que determina que os povos indígenas e tradicionais têm direito à serem consultados de maneira prévia, livre, informada, de boa-fé e culturalmente adequada pelo Estado.

Para que o Estado possa consultar os povos indígenas e tradicionais de maneira adequada, respeitando portanto sua autodeterminação e seu direito ao autogoverno, cada povo indígena e comunidade tradicional tem o direito de, coletivamente, determinar os critérios e condições para que a consulta prévia seja realizada, elaborando seus Protocolos de Consulta, documentos pactuados nos quais critérios e parâmetros para a tomada de decisões e sua representatividade face ao Estado sejam legitimados em função de sua autodeterminação.

Sem que esses povos e comunidades tenham condições para debater e estabelecer coletivamente esses critérios legitimadores de tomada de decisão, sua autodeterminação e seus regimes de conhecimentos e de relações estarão severamente ameaçados. Por isso, auxiliá-los a conformar seus Protocolos de Consulta e Consentimento é condição sine qua non para sua manutenção enquanto povos indígenas e comunidades tradicionais já que, quando não participam da tomada de decisão, medidas legislativas e administrativas, projetos e políticas públicas se tornam extremamente equivocados e podem comprometer radicalmente sua própria sobrevivência.

Mais do que isso, a ausência de protocolos de consulta constitui grave ameaça à própria perpetuação do Estado democrático de direito e é nesse sentido que desejamos continuar orientando nossas ações, com apoio do Projeto que, temos certeza, será por sua relevância aprovado.

Além disso, outras políticas públicas resguardam esses direitos e determinam as condições para a participação cidadã da sociedade como um todo e, em especial, dos povos e comunidades tradicionais que, sabidamente são os segmentos que mais dependem das relações ecossistêmicas equilibradas para perpetuar sua organização social e regimes epistemológicos como também são as comunidades e povos que, vivendo segundo esses regimes de saberes e relações, mais contribuem para a salvaguarda do meio ambiente sadio e equilibrado.

Cumpre salientar que a participação das comunidades e povos tradicionais na vida democrática do país não se restringe ao momento e ao rito da consulta prévia e demonstrar claramente que esta deve ser realizada, nos termos da OIT 169 e da legislação infra-constitucional em diversos momentos, desde conferências de meio ambiente até a realização de reuniões dos conselhos das UCs. [PC3] Quando as comunidades e povos tradicionais possuem Protocolos de Consulta elaborados, os critérios para sua deliberação interna de consensos e sua representatividade ficam claros e essa participação é mais efetiva: novamente, a integração é fundamental.

É importante pontuar, também, que a participação da sociedade civil organizada, incluindo segmentos tradicionais da população, transcende os conselhos específicos das Unidades de Conservação. A Lei 9.985/2000 determina, em seu Artigo 26, determina que:

Art. 26. Quando existir um conjunto de unidades de conservação de categorias diferentes ou não, próximas, justapostas ou sobrepostas, e outras áreas protegidas públicas ou privadas, constituindo um mosaico, a gestão do conjunto deverá ser feita de forma integrada e participativa, considerando-se os seus distintos objetivos de conservação, de forma a compatibilizar a presença da biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o desenvolvimento sustentável no contexto regional.

Assim, desde 2000 vêm se consolidando Mosaicos de Áreas Protegidas como instâncias de gestão integrada e participativa que transcendem a escala das Unidades de Conservação e promovem um ganho de escala na gestão e na participação social ao contarem com Conselhos Consultivos dos Mosaicos: fóruns onde representantes da sociedade civil se reúnem com representantes dos órgãos públicos para deliberar conjuntamente (na prática é isso que ocorre) os rumos e detalhes da gestão de todo o conjunto de áreas protegidas.

Para tal, os Mosaicos aprenderam com os anos que a melhor forma de assegurar a gestão integrada e participativa promovendo o desenvolvimento sustentável em escala regional seria superar as diferentes racionalidades de gestão (cada UC tem um órgão e equipe gestora, sendo de categorias diversas, podendo ser municipais, estaduais ou federais) e engendrar ações conjuntas e concatenadas envolvendo a sociedade civil: por isso os conselhos consultivos dos Mosaicos são tão importantes e a experiência concreta prova que se trata de poderosos fóruns de indução do desenvolvimento regional.

O mais interessante é que o Artigo 26 da lei do Snuc menciona um conjunto preexistente de Áreas Protegidas, sem restringir-se a Unidades de Conservação. Portanto, como Terras Indígenas e Territórios Quilombola também são consideradas Áreas Protegidas, essas deveriam ser incluídas na constituição de Mosaicos.  O pioneiro Mosaico de Áreas Protegidas da Amazônia Oriental (Amor), obteve, depois de oito anos reunindo seu Conselho Consultivo, o reconhecimento, via portaria, de sua existência e composição incluindo, por primeira vez e, infelizmente ainda única, Terras Indígenas em sua composição.

Esse Conselho Consultivo influenciou a região de maneira significativa. O melhor exemplo é o processo de consulta prévia, que o Estado do Amapá foi obrigado a realizar juntamente com o governo federal, quanto ao ordenamento fundiário do entorno da Terra Indígena Wajãpi, que é o primeiro processo de consulta prévia nos termos de um Protocolo de Consulta e Consentimento: esse processo foi pactuado e referendado pelo Conselho, do qual os Wajãpi, os assentados de reforma agrária do assentamento em questão, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a secretaria de estado de meio ambiente do Amapá fazem parte[PC4] .

O ordenamento fundiário de todo o estado do Amapá foi outro exemplo de como um Conselho Consultivo fortalecido, que conte com comunidades tradicionais organizadas e bem assessoradas chegando a consensos sólidos e com órgãos públicos dispostos a referendar suas ações, pode engendrar benefícios em escala muito maior que a das UCs e do próprio Mosaico, além de possibilitar que direitos como o de consulta prévia, sejam efetivados (Caporrino, 2019).

As Áreas Protegidas cumprem melhor sua função quando seus conselhos deliberativos ou consultivos são realmente ativos e contam com a participação de representantes empoderados pelos coletivos de que devem ser porta-vozes e os Conselhos Consultivos dos Mosaicos possibilitam resultados consideráveis nesses contextos.  Mas dificuldades se acentuam e há contextos onde as UCs não puderam ser apropriadas pela sociedade civil, ora por serem muito recentes ora por questões logísticas e sociais e, geralmente, por conta da sua fragilidade financeira, de equipe, de recursos para realizar as ações, etc. São poderosas ferramentas para implementar a gestão socioambiental integrada e participativa e para induzir novos paradigmas para o desenvolvimento regional, mas dependem de uma série de condições para que sejam plenamente instaladas.

Além disso, os Conselhos e Fóruns que possibilitavam, desde a promulgação da Constituição Federal em 1988, a participação cidadã essencial para a manutenção da sociobiodiversidade, foram radicalmente ameaçados: uma das primeiras ações do atual governo brasileiro foi a promulgação do Decreto 9.759/2019 que acabou anulando praticamente todos os colegiados de participação e extinguiu inteiramente a Política Nacional de Participação Social e riscou do ordenamento jurídico brasileiro estabelecido pelo Decreto 8.243/2014.

Os conselhos consultivos de Unidades de Conservação e dos Mosaicos, que possibilitam a deliberação cidadã e paritária através de fóruns por meio dos quais comunidades tradicionais são organizadas para influenciar políticas públicas, foram praticamente extintos. Com a promulgação do Decreto 9.759/19, e o voto parcialmente favorável do Supremo Tribunal Federal à Ação Direta de Inconstitucionalidade 6121 de 2019 ficou estabelecido, precariamente, que sejam praticamente reestruturados do zero num contexto onde órgãos essenciais a isso, como Fundação Nacional do Índio (Funai) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) estão sendo totalmente deslegitimados e desidratados e com imensas restrições (o governo federal exige que os Conselhos submetam à análise a composição de cada conselho, que pode vetar a participação de setores e organizações).

A Ação Direta de Inconstitucionalidade 6121, apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, ressaltou que com o Decreto 9.759/2020 o governo federal afrontava visceralmente o pilar primordial do Estado democrático de direito e solapava da sociedade brasileira os meios pelos quais influenciar de maneira participativa e democrática as políticas públicas, mas refutou apenas parcialmente o Decreto.

A democracia é visceralmente ameaçada com esse movimento e, para piorar, num contexto de graves ameaças às Unidades de Conservação, extinguir os conselhos gestores, conselhos consultivos e conselhos consultivos de mosaicos de áreas protegidas é uma grave ameaça, especialmente quando obras e empreendimentos são desenhados para a região amazônica: sem participação social, como afirmado, os projetos constituem graves ameaças à perpetuação de povos e comunidades tradicionais e de toda a biodiversidade.

As condições para a legitimação das decisões tomadas nesses fóruns receberão um texto específico a ser por mim postado aqui em momento oportuno. Não percam!

 


terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Pequena autópsia de um povo sem alma



Bruno Walter Caporrino

Escrito em Agosto de 2016
Publicado na Revista Peixe-Elétrico #6[1]
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Ficha Técnica Peixe-Elétrico # 6
ISBN: 9788584741403
Selo: Peixe-elétrico
Data de publicação: 2016
Páginas: 140
TradutoresMauricio Acuña; Pedro Meira Monteiro; 

Heci Regina Candiani; Ricardo Lísias; José Oscar de Almeida;
IlustradorMarcelo Amorim

--- É preciso pintar todo o corpo da criança com urucum, para que os Donos não consigam “cheirar” seu princípio vital. Os Donos gostam muito do “cheiro”: para eles, é como uma flor, que eles podem querer arrancar da plantar. Se isso acontecer, a pessoa pode ficar louca, mudar o jeito como vê as coisas, passando a agir e se ver como cutia, anta; ficar doente, ou morrer, afirma Jawaruwa, enquanto espera, com a mão estendida, que a menina-moça que serviu-lhe a cuia com kasiri – a deliciosa cerveja de mandioca – venha buscá-la, agora que está vazia.
Aceito mais uma cuia. Sorvo, como manda a etiqueta, duma talagada só, enquanto Kasiripinã continua a prosa: “Muito antigamente, quando todos ainda se podiam ver como gente (mira), havia uma Cobra Grande, que devorava as gentes. Certa vez, conseguiram matá-la, e descobriram que seus desejos, coloridos, poderiam ser utilizados para ornar o corpo. Assim, Jacamim percorreu diversas aldeias avisando as gentes: venham pintar-se! Tukã moi morreu. Gente peixe, gente pássaro, gente anta, gente todas, chegaram e começaram a pintar-se. Gente Pacu pintou-se, dizendo ‘vou pintar-me como pacu’, e assim foi feito: pulou no rio, e lá está até hoje. Gente Jacamim, gente Anta, todas as gentes, tudos. Se pintaram enquanto nossos ancestrais, acanhados, apenas assistiam. Assim nossos ancestrais observaram como se pintavam copiaram essas pinturas, transformando-as em padrões de pintura que representam os das outras gentes. Se você pintar seu corpo igual mesmo onça, é muito perigoso! O Dono pode achar que você é onça, e você vira. Por isso fazemos os padrões, e tem regras, jeitos certos de usar”. Levanto-me para acender o cigarro de tabaco da roça enrolado em entrecasca de tawari no tição. Kasiripinã prossegue:
--- Tudo são gentes. Anta, cutia, pacu, veado, tudo. Moju, Dono das águas, lá embaixo tem sua aldeia. Poraquê é o tipiti no qual ele espreme goma de mandioca. Jacaré é seu banco, e pacu, por exemplo, seu beiju.
O recém-nascido tem seu corpo totalmente coberto de urucum, a fim de protegê-los dos Donos, enquanto todos nós nos pintávamos com urucum misturado à gordura de macaco quatá, para proteger nossas peles e preservar por mais tempo os padrões gráficos kusiwa que já tínhamos no corpo: aqueles aprendidos, copiados, pelos Wajãpi ancestrais, na época em que Tukã Moi foi morta.
Os padrões Kusiwa são a ponta do iceberg dos belo e riquíssimos regimes de conhecimentos Wajãpi. Regimes de conhecimentos realizados cotidianamente na prática: nas roças, nos caminhos, nas caçadas e pescarias, nas festas, na dispersão pelo território essencial para a gestão socioambiental, e que, comprovadamente asseguram sua qualidade. Nessa época, 2010, eu ainda trabalhava como assessor para o Programa de Formação de Pesquisadores Wajãpi: desde que os padrões de pintura corporal Wajãpi foram reconhecidos pela Unesco (2002) e pelo Iphan (2003) como patrimônio imaterial da humanidade e do Brasil, os Wajãpi, sempre extremamente organizados, construíram, com ajuda do Instituto Iepé, um Plano de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Wajãpi: um plano de ações voltadas ao fortalecimento das condições essenciais para a realização plena, cotidiana, vivida, de seus regimes de conhecimentos e relações.
Uma das muitas ações que os Wajãpi inseriram no Plano (todas intimamente correlacionadas) foi a formação de 20 pesquisadores Wajãpi. Esses jovens pesquisam os regimes de conhecimento Wajãpi, a fim de tomar consciência daquilo que é, por definição e excelência, inconsciente: a lógica que tudo liga no âmbito desses sistemas de conhecimentos, e as maneiras como essas lógicas são instanciadas na prática, na vida real. Nesse momento eu assessorava os pesquisadores – era a reta final para a conclusão de suas monografias, todas redigidas em língua Wajãpi e feitas com base na sistematização dos saberes coletados em entrevistas com os sábios – processo em execução contínua há mais de dez anos.
A grande tarefa a que nos dedicávamos era sistematizar os saberes, a fim de comparar narrativas e construir clareza a respeito da maneira como todos os saberes se ligam. Paralelamente a isso, esse Programa, que acabou formando jovens lideranças de forte expressão na conformação do Plano de Gestão Socioambiental, por exemplo, visava qualificar traduções: basicamente, destruindo a fácil ideia de que seja possível traduzir palavras, termo por termo, entre regimes de conhecimentos diversos. Todo o esforço dessas formações está em demonstrar que não existe tradução: mas que é possível construir explicações, e que, para que se possa explicar um elemento do conhecimento Wajãpi para um não-índio é necessário conhecer muito bem seu regime de conhecimento, e vice-versa. Construir explicações entre regimes diferentes exige que se os conheça, e que se frise, a todo momento, suas diferenças.
A conversa é interrompida por forte vendaval. Nos idos de 2010, o clima na terra indígena ainda não sofria as mudanças que, sensíveis, os Wajãpi já percebem hoje, e estávamos em pleno verão. Forte chuva era anunciada pelas densas e negras nuvens que se avizinhavam. “Estranho”, falei. “O tawari apagou-se. Será que alguém matou sucuriju, para chover assim, do nada?”. Todos rimos.
Saímos dessa aldeia e, no dia seguinte, em outra aldeia, ficamos sabendo que Sisiwa, que tem pajé forte, perdera um excelente e precioso cão de caça: engolido por uma sucuriju. Sisiwa tem pajé forte: nutriu-o e, com ele, pode enxergar as criaturas visíveis e invisíveis, dialogar e negociar com elas. Por conta disso, lhe foi dado abater a sucuriju que estava no igarapé no qual banhava as crianças. Matar sucuriju, criatura do Dono da água, é muito perigoso...
Por essa época, fiz uma mais um bloco de viagens à diversas aldeias, umas seguidas das outras. Como meu regime de trabalho preconizava a permanência em terra indígena por no mínimo 45 dias, e me facultava em média 15 dias de permanência em Macapá, mal saí da terra indígena embarquei para Belém, a fim de passear um pouco na cosmopolita capital. Atei minha rede no convés superior do Barco a Motor Ana Beatriz, e relaxei, disposto a curtir as próximas 24 horas à bordo.
Estranha febre, contudo, apoderou-se de mim. Em menos de quatro horas de viagem, ardia em febre: eram 17:00 hs. “Hora da malária”, pensei. Tranquilizei-me, imaginando que se tratava de mais uma malária vivax, e sabendo que os calafrios que causam tremores incontroláveis, e a febre forte, poderiam ser sanados em Belém. “Mano, tu tás suando tanto que tua rede tá pingando”, fui acordado por uma senhora, preocupada. Disse-lhe que poderia ser só mais uma malária, e quedei-me tranquilo: das cinco malárias que já tivera, quatro vivax e uma falciparum, só me preocupava sofrer novamente outra falciparum – essa sim extremamente perigosa, com considerável risco de óbito.
Quando aportamos em Breves, no meio do caminho, a febre estava tão forte, e meu corpo tão debilitado, que achei conveniente solicitar à essa senhora que já zelava por mim, preocupada, alguma atenção. “Tomara que não seja falciparum, mas até saber, não, obrigado, acho melhor não medicar”, disse ao comandante, que viera me ver enquanto embarcavam carga na embarcação, provavelmente acionado pela desconhecida senhora.
“Quem mandou comer peixe reimoso, olha aí, agora buiou”, ainda gracejei, visando tranquilizá-lo para que não decidisse me desembarcar em Breves. Viajando sozinho, calculei não ser bom negócio, já que íamos a Belém mesmo. Quando avistamos Belém, eu já não sabia se delirava ou de fato contemplava a linha de arranha-céus que se apodera da capital. Não sei como desembarquei. Sei somente que meu check-in no hotel onde tivera feito reserva era para meio-dia e que ainda eram 09:00hs quando um guarda repreendeu-me por deitar-me no banco da praça do Gasômetro, sem forças sequer para abrir os olhos, e sofrendo terríveis dores de cabeça. Frio!
Estranhando a força da febre e dos tremores, optei por dar entrada no hotel e descansar, pois os sintomas diferiam daquilo que sentira durante os outros episódios. Delirando na praça, coberto com a página principal d´O Liberal por morrer de frio sob os 35 graus Celsius típicos de Belém, comecei a lembrar de Viviane, sim, Viviane, a moça que morrera entre os Katukina do Rio Biá, povo com quem vivi e trabalhei no Amazonas antes – eu havia pego sua vaga, em 2009, alguns anos depois de sua morte.
Dei entrada no hotel, pedi mais três cobertores, e, sob o intenso calor da capital paraense, passei três dias trancado, delirando, até começar a urinar um líquido negro. Imediatamente me lembrei dos trágicos episódios que vira entre os Katukina, no Amazonas: “hemogoblinúria. Estou mijando hemoglobina. Em pouco tempo não poderei mais oxigenar tecidos. Falciparum é um plasmódio que se instala no cérebro – por isso a insuportável dor de cabeça”. Juntei forças, tomei um taxi, e peregrinei por todos os postos de saúde que me indicavam, juntando, com muito custo, minhas poucas forças.
“Ah, isso é dengue”. Foi o que ouvi nos três primeiros. No superlotado posto do Guamá, a ira, associada à cefaleia, devolveu-me a têmpera: “doutor, como podes afirmar, como fizeram os demais, que se trata de dengue, se sequer colheram meu sangue? Eu venho de uma terra indígena, zona endêmica de malária. Meus sintomas denotam falciparum, pois tenho insuportável cefaleia e hemoglobinúria, além da febre terrível. O senhor vai fazer só isso: pedir um exame da gota espessa, fazer pesquisa por plasmodium, e, confirmando, vai me dar primaquina e cloroquina”. O displicente sacerdote de branco do Saber Ocidental olhou-me com desprezo, levantou o bolso do jaleco, onde constavam seu nome e o número do CRM, e me mandou embora perguntando: “quem é o médico aqui?”.
Revoltado, cambaleei até a saída, onde a assistente social que me dera informações perguntou: resolveu?. “É dengue, disse ele, e me expulsou do consultório”. Fizestes o exame de sangue –  ela me perguntou?
--- Não, a bola de cristal do Saber Ocidental pós-moderno do médico, esse ser racional que opera segundo os ditames do Novum Organum contra os médiuns charlatães, por meio de método científico, permitiu-lhe diagnosticar-me em exames laboratoriais, e mesmo clínicos – sequer contaram minhas plaquetas! Ao dizer isso, uma bela médica que caminhava a passos largos deu meia-volta: “qual seu problema?”, perguntou. Narrei-lhe os sintomas ao que ela só fez preencher um pedido de hemograma. Colhido o sangue, aguardei sobre um banco no corredor, a delirar com sucurijus que viravam arco-íris – sua representação, pelo conhecimento Wajãpi – e com as podak, finas, esbeltas, e elegantes canoas Katukina, feitas unicamente com a casca do jatobá – tão finas e leves que o vento as leva. Assim eu quase havia perdido a minha, em 2009.
--- Sua hemoglobina está muito baixa, muito mesmo! Disse assustada a complacente Sacerdote de Jaleco Branco do Pós-Moderno Conhecimento Ocidental. Analisando parâmetros, dados colhidos sob o mais rigoroso método científico, ela contemplava uma análise laboratorial, científica, de meu sangue, consagrando o triunfo da Razão sobre as trevas da ignorância na qual, para o Ocidente pós-moderno, os “primitivos índios, esses seres da idade da pedra” ainda viviam. “Agora consigo um diagnóstico, minha primaquina, minha cloroquina, e me jogo na cama do hotel sob todos os cobertores do mundo”, pensei.
Frio!
--- Deve ser dengue, tome analgésicos. Essa foi a sentença produzida pela médica, as mãos no bolso do jaleco, o iPhone (uma riqueza, em 2010) a brilhar entre os finos dedos da mão direita. Numa cadeira de rodas, rumei até um taxi, cujo taxista me carregou até a cama do hotel. A partir desse ponto, não sei contar o que vivi ali, e o que era verdade e o que era delírio. Até que, no terceiro dia depois dessa tentativa de busca por auxílio do Sistema Único de Saúde, no qual, como todo bom cidadão ocidental civilizado eu depositara minha vida, o gerente do hotel viera me ver, perguntando se eu poderia deixar o hotel até as 17:00hs. “Precisamos desse quarto, pois as reservas são feitas pela internet, pagamento com cartão de crédito, não há como mudar o sistema”, sorriu amarelado.
A indefectível lógica cartesiana do Ocidente pós-moderno reside em mim: meu corpo, minha pessoa, meu Eu, são frutos dela. Como é frustrante ser feito à imagem e semelhança de um sistema simbólico, de um regime de conhecimentos, onde não há espaço para sua própria manutenção orgânica.
Sistemas! Sistemas racionais, lógicas sistemáticas: urinando um denso líquido negro, que manchou o chão do box, perguntei-me como faziam para manter a água na caixa d´água, a 16 andares de altura. Delírios. A viagem de 24 horas embarcado, de volta a Macapá é uma incógnita que se encerra com minha chegada em casa e, no dia seguinte, no escritório, o assombro dos colegas. “Você está cadavérico! Você está verde, muito verde”. Hepatite, pensei. Suspeitando não ser malária – ah, como somos crentes, crentes na lógica pragmática pós-moderna! – por crer nos médicos, fui trabalhar.
Nesse mesmo dia, fui acordado por colegas de trabalho que me banhavam – com roupa e tudo. Fortíssima febre e indescritível cefaleia me abatiam, e nesse momento eu só conseguia me concentrar em respirar – o que já era muito. Fui levado ao hospital de emergência de Macapá, onde fiquei internado por três dias e três noites: a pesquisa por plasmodium revelou malária mista – vivax e falciparum ao mesmo tempo, com 4 cruzes cada. Sozinha, a falciparum leva a óbito em oito a dez dias. Era meu nono.
Quedei-me internado num banco do corredor. Feliz da vida, entre momentos de extremo delírio e períodos de consciência, por ter conseguido o resultado (e os medicamentos) e por estar internado – ao menos. No segundo dia consegui uma maca de aço inox, que se usa para autópsias. Amigos que me visitaram dizem que eu tremia tanto que o ruído sobre a maca de metal parecia uma bateria de escola de samba. Há que rir. E o fiz.
Cacique Seremete foi me visitar. Passava pelo Hospital de Emergência em sua peregrinação por atenção à saúde: “médico mentiroso! Não acredita! Quem tem pajé pode ver os Donos, quem tem pajé pode conversar com criaturas, ogros, da floresta: pode oferecer tabaco, tirar doença. Essa minha doença mesmo: cânci. Não tinha isso antes! Nenhum Wajãpi tinha isso antes! Tudos doença a gente sabe tratar! Essas não. Médico diz que vai dar remédio, química, para tratar. É mentira. Espírito não-índio que me deixa doente é o mesmo que te deixa doente! Não existia malária para nós antes de começarem a chegar os não-índios na nossa região. Quem tem pajé tem que aprender a conhecer esses espíritos – saber o que eles querem, e poder tirar doença, negociar”, falou-me, consternado.
Como muitos Wajãpi, Seremete pegou malária logo depois de mim, juntamente com muitos outros Wajãpi. Isso não esqueço: em 2011 a Terra Indígena Wajãpi viveu um surto de malária. “Igual quando karai kõ, não-índios, chegaram, em 1970: Funai juntou nós tudo para aldeias centrais. Não é assim que moramos, você sabe. Fazemos nossas aldeias espalhadas. Moramos um pouco num lugar, depois fazemos roça em outro lugar, onde tem muito cocô de minhoca, terra plana, preta, e com areia, aí mudamos para lá. Quando karai kõ chegaram, juntaram nós: para proteger da malária e do sarampo que eles mesmos traziam!”, diz o grande cacique Waiwai Wajãpi, na aldeia Mariry, algum tempo depois que, curado da malária, retornei às aldeias, para ficar por mais cinco anos assessorando o Conselho das Aldeias Wajãpi Apina, a associação, a fazer seu Plano de Gestão Socioambiental, intitulado “Como estamos organizados para continuar vivendo dos jeitos Wajãpi”.
Por quê será que há tanta malária agora? Era essa a pergunta sobre a qual refletíamos, os pesquisadores e eu, antes de irmos às aldeias reunir as comunidades para reuniões onde eles, os pesquisadores Wajãpi, lhes faziam essas perguntas. O boom de malária surgiu quando a Secretaria de Estado da Educação começou a oferecer aulas de 5ª a 8ª série, centralizando todos os Wajãpi em apenas três escolas e promovendo a centralização da ocupação do território, algo totalmente contrário a seus jeitos de estar e percorrer as florestas.
Superpopulosas, as aldeias centrais passaram a sofrer junto com os Wajãpi, pois não é esse seu regime de ocupação do espaço, não é assim que caçam e partilham a caça; plantam, colhem, e partilham os produtos da roça; moram, caminham, vivem. O surto de malária caminhou de mãos dadas a outros problemas socioambientais e, portanto, de saúde, ao mesmo tempo, nossa reflexão caminhou para desvendar isso: com o tempo passou a ser preciso caminhar cada vez mais para caçar, pescar; os lugares bons para fazer roça passaram a ficar cada vez mais distantes das aldeias – sendo que o correto é fazer as aldeias em função das roças, e não o contrário...
Políticas públicas: atuação do Estado. A atenção à saúde indígena, que deve ser diferenciada, segundo comina ampla legislação, centraliza e sedentariza, em vez de acompanhar a dinâmica de ocupação espacial essencial à manutenção dos ambientes que é, por sua vez, essencial para a manutenção desses jeitos de conhecer, transmitir conhecimento, se organizar e viver. Uma das maiores reivindicações dos povos indígenas do Brasil é essa: que o Estado respeite o direito à sua autodeterminação, assegurado pela Constituição, e secundado pela legislação infra-constitucional, e os reconheça como cidadãos de direitos, como são. Mas trata-se de direitos diferenciados, a fim de que se preserve as condições para que continuem usufruindo de seus direitos à autodeterminação, a ser o que são por si mesmos.
Parece, contudo, que o Estado, em seu pensamento estatístico, os atropela. Parece, contudo, que o Estado, esse Totem da lógica racional e pragmática ocidental moderna, não é lá tão racional e moderno assim... de jaleco branco, o Estado ignora o indivíduo, não lhe estende o direito à ter alma. De Jaleco Branco e luvas, o laboratorista analisa meu sangue: usufrui de um sistema de conhecimentos calcado na cisão natureza/cultura, cisão na qual cultura se faz, justamente, mediante a superação e o domínio da natureza, sua manipulação – já que a natureza é, para esse sistema, entendida como inerte, inanimada, incapaz de inteligir, de ter agência, e de reagir.
Surtos de doenças como diabetes e hipertensão assolam populações tradicionais no Brasil: a merenda escolar, que poderia ser regionalizada (há lei para isso) consiste em carne em conserva, suco em pó, e assim vai. A educação que deveria ser diferenciada consiste em um uma brutal máquina pós-colonial de conversão das almas das gentes, soberanas sobre seus próprios sistemas de conhecimento, políticos, e de produção da vida em... consumidores treinados na periferia da periferia da periferia do sistema dos outros.
Em Belém, de folga novamente, em 2013, sofri um brutal assalto. Fotografava o Ver-o-Peso, enquanto minha bagagem e rede já se encontravam a bordo da embarcação na qual esperava retornar à minha casa – Macapá. Três sujeitos armados com facas tentaram furar-me, pelas costas. Reagindo mecanicamente, sem pensar, derrubei o primeiro ao chão, tomei-lhe a faca, e tentei defender-me do segundo, que derrubei com uma rasteira enquanto o terceiro mordia-me a mão. Ao girar com o corpo, rompi o ligamento do joelho direito – e capitulei. Eles roubaram minha carteira com identidade, dinheiro, cartão de banco... e a passagem do barco. “Blefado”, como se diz, voltei ao pequeno hotel onde estava hospedado, que me hospedou por confiança, até conseguir voltar a ter nome, pois sem RG e cartão de banco, sem dinheiro e sem poder andar, fui totalmente destituído de minha pessoa, de meu estatuto humano.
Os policiais que me atenderam disseram que eu fiz bem em reagir, embora eu me desculpasse por fazê-lo, sabendo que não se deve reagir a assaltos. “Égua macho, fizestes foi bem! A moda aqui é furar primeiro, roubar depois”. Na manhã daquele mesmo dia, os usuários de crack do centro de Belém haviam furado uma moça que, no chão, teve os brincos arrancados das orelhas. Não fui ao hospital e sem poder andar, voltei a Macapá dias depois – passando, novamente, por Breves, depois de provar, perante um juiz, que eu era eu, e poder sacar algum dinheiro no banco.
“Eles tentaram furar você? Por que?”, perguntou-me indignado meu amigo Jatuta, enquanto comíamos carne de veado moqueado com bem tucupi e pimenta. Roubar, respondi. “Vocês, povo da mercadoria, não têm alma: o corpo de vocês é igual casca, vazia”, respondeu-me o professor Aikyry Wajãpi, que contou, em seguida, como a Secretaria Especial de Saúde Indígena tratara sua filha e sua esposa quando essas, sofrendo com diarreias (que não existiam até bem pouco tempo atrás), buscaram atendimento no posto: “a culpa é do jeito que vocês vivem – igual bicho, no mato”, teria lhes dito o técnico de saúde.
Sisiwa me pedira uma saca de pacotes de tabaco Maratá e um isqueiro. Dei. Rezou meu joelho, que desinchou. “Mas não vai funcionar muito. Esse tipo de doença é difícil: não conheço os Donos de vocês”, disse, em Wajãpi. Descobri a cura faz pouco tempo: acometido por lancinante crise de apendicite aguda, que de chofre supurara, passei mais de 10 horas no mesmo Hospital de Emergência onde ficara curtindo as últimas malárias, urrando de dor, vomitando entre pessoas com deficiência mental que os parentes abandonam porque o Estado do Amapá não oferece mais atenção a essas almas.
 “Aqui a gente cura o corpo. Doença de alma é na igreja, esses endemoninhados têm que ser trancafiados e exorcizados”, resmungou o pastor evangélico que visitava uma senhora enferma que jazia sobre um colchão no chão. Com um esgar de nojo, ele cuspiu na lixeira ao sentir o odor de um desses tresloucados. Ah, a pós-modernidade! Manipulando seu smartphone, o pastor exigia a senha do Wi-Fi: queria conectar-se wireless para poder fazer um culto em livre stream para que, orando, na igreja, os fiéis lhe curassem com palavras. Feitiço – a palavra que age. Jamais fomos modernos.
Uma moça grávida de três meses sofria horríveis dores ao meu lado: toda sintomatologia de uma apendicite aguda também. Vomitávamos juntos na mesma lixeira, companheiros de desdita. Depois de dez horas sem ser medicado ou atendido, decidimos, minha amada Cabocla e eu, ir ao hospital particular, onde, mediante pagamento em espécie, e à vista – e somente assim! – fui operado. Dois dias depois, já em casa, fui informado pelo jornal local de que essa moça – e seu bebê – faleceram no Hospital de Emergência onde eu teria ficado se não tivesse conseguido dinheiro emprestado para custear minha cirurgia.
Pelos conhecimentos Wajãpi tudo está ligado. E tudo tem dono. Segundo esses regimes de conhecimentos, não existe “o pajé”, a pessoa pajé. Todos temos pajé. Você pode cultivar seu pajé, alimentando seus opiwarã com muito tabaco. Você cria, segundo essa epistemologia, fios invisíveis que te conectam aos donos, aos princípios vitais das criaturas – todas elas humanas, em essência, mas variadas segundo a manifestação de seus corpos.
Hoje, Sisiwa, eu sei. Cada vez que passamos por um processo de cura xamanística, nosso pajé se fortalece. Você pode cultivá-lo. Talvez por ter passado por algumas experiências de cura, hoje, Sisiwa, eu vejo: nossa doença está em nossa alma. Achamos que não estamos conectados. Achamos que somente humanos possuem agência – capacidade de agir, inteligir. Não atribuímos humanidade aos demais seres. Mas, o que é pior, colocando o corpo cartesiano, esse mecanismo separável em partes, manipulável, autopsiável, passivo, no centro de um sistema de conhecimentos calcado na cisão entre natureza e cultura e pressupondo, como fazia Descartes, que os animais não têm alma, que seriam mecanismos autômatos, fatiamos as esferas de nossas vidas: corpo é diferente de alma; só humanos têm alma, rim é rim, bois e homens os têm, mas, como os bois não têm alma... Assim como fatiamos as esferas de nosso conhecimento: matemática, química, física, história, geografia... alocamos o mundo em caixinhas, como Procustos ensandecidos que, não contentes em estripar a terra para extrair-lhe “recursos naturais”, cortamos e separamos a golpes de cutelo epistemológico.
O que é saúde? O Brasil vive, hoje, uma terrível epidemia de câncer: no filme “O veneno está na mesa”, Silvio Tendler alerta: o agronegócio, que devasta a Amazônia, promove o etnocídio indígena, está intimamente associado ao uso de pesticidas que causam essa epidemia. O que é doença? Vivendo e trabalhando com os povos indígenas, aprendi a fazer explicações sobre nossos próprios regimes de saberes. E, talvez, a fazer algumas perguntas: o que é qualidade de vida? O que seria cura? Vivemos a derrocada do Estado democrático de direito. O SUS capitula, juntamente com os demais direitos que constituem e base de nossa própria teoria do corpo e da pessoa.
“Dominamos a natureza”. Do alto do pedestal de nosso Totem Estado Pós-Moderno, pior, meu amigo Sisiwa, classificamos os próprios homens: sob o jugo de números, alocamo-los em um sistema de status que varia segundo as cifras que possuem os indivíduos em suas contas bancárias – variando, assim, seu grau de humanidade. Estamos todos doentes, e assim ficaremos, infelizmente, cada vez mais, ingerindo pesticidas, alimentando-nos mal, hipertensos, desnutridos, obesos, exaustos. Com a diferença de que não haverá sequer um sistema público de saúde para curar as feridas aparentes que decorrem da doença generalizada de nossa alma.

Macapá, setembro de 2016





[1] CAPORRINO, B. W.. Pequena autópsia de um povo sem alma - Um relato da experiência com o Programa de Formação de Pesquisadores Wajãpi e de quase morte nas redes do SUS do Pará. Revista Peixe-Elétrico, São Paulo, p. 01 - 22, 14 set. 2016. (http://www.e-galaxia.com.br/produto/peixe-eletrico-06/ )