De
recreio[1]
Bruno
Walter Caporrino
(Macapá, novembro de 2011)
Por
mais distantes, variadas e isoladas que sejam as cidades, e, mais ainda, as
comunidades ribeirinhas que se espraiam pelas restingas, no caso dos grandes
rios, ou nos afluentes ainda menores dos seus contribuintes, na Amazônia, há
algo que as liga, que as une, que as comunica: a água. O elemento universal na
vida amazônica constitui grandes e milenares vias que celebram a teoria de
Torricelli e comunica os vasos: as bacias, as comunidades e as pessoas que
nelas habitam.
Contrariando
soberanamente os patéticos esforços urbanizantes, industrializantes, dos
arautos do “desenvolvimento regional” – ou seja, da moderna exploração da
delicada mão-de-obra de belas meninas indígenas, hábeis no tecer cestos, para
as linhas de produção de eletrônicos da Zona Franca – e rindo-se deliciada das
fracassadas e quixotescas estradas (de ferro ou não) que os governos militares
tentaram impor a si, a Amazônia deleita-se em cobrir de mata projetos de um
Brasil “moderno, urbano, industrial” que só encontra ecos nos mercados de
capitais e na ideologia dos “50 anos em 5”: porque se há uma Trans-Amazônica,
uma via que a comunica, esta é a calha dos grandes ou pequenos rios.
E,
se há algo isola estas comunidades, é o mesmo elemento que as comunica todas: a
água afeta tudo e todos no universo amazônico, quase numa ode à Espinoza,
afetando todos os elementos e conduzindo toda a energia e as trocas entre eles.
Vivendo em função dela, senão sobre ela (em barcos, canoas, casas flutuantes ou
palafitas) o amazônida agrupa-se com maior ou menor rarefação às margens dos
rios, e, assim, mesmo sem iluminação outra que o breu ou o sebo das velas, sem telefonia
ou qualquer outro meio de comunicação eletrônico, ele sempre se valeu dos
grandes ou pequenos barcos que percorriam cada igarapé ou rio onde houvesse
borracha e caucho, peixe, carne de caça ou peles a trocar por pilhas, rádios,
tecido, panelas, cachaça, sal, açúcar, café, toda sorte de produtos que o
caboclo, mesmo em sua auto-suficiência, não produzia, mas desejava.
O
marreteiro, este condutor do batelão que se embrenha nas curvas e liga aldeias
a seringais, assume assim, na Amazônia, o lugar de um mito histórico: quase um
agente do Leviatã tirânico que, proprietário dos grandes vapores, dos seringais,
dos barracões, e das almas retirantes e sua produção, ele comunica, troca, faz
o escambo que permite a aquisição e venda de bens, e, mesmo explorando o
indígena, o seringueiro, ou o caboclo filho dos dois, presta-lhe de certa forma
um serviço: em seu batelão, escoa-se a produção local dos recantos mais
aparentemente inacessíveis, até as vilas ou cidades maiores, onde, do porão
deste batelão, passavam e ainda passam para armazéns, muitas vezes flutuantes
que os repassam aos porões dos recreios, que os levam às capitais.
Em
contrapartida, o marreteiro, por levar mercadorias de uma calha a outra,
transpondo as “bolas” de “terra firme” antigamente muito mais difíceis de se
transpor, acabava tecendo, qual uma Penélope paciente, teias de sociabilidade
que apenas a Radiobrás, em seu programa matinal captado por todos os rádios
portáteis (comprados ao marreteiro, assim como suas pilhas) conseguia: ele
comunicava pessoas, comunidades, levando não apenas cartas de amor como
testamentos, documentos, dinheiro, aflições e angústias aos solitários homens
que insistiam em percorrer estradas de seringa longe das esposas.
O
mesmo faziam os grandes vapores, elegantes e imponentes, todos em ferro, que
eram manipulados pelos proprietários dos seringais, dos barracões, e das almas
que alimentavam a tudo isso em regime de servidão, através do sistema de
aviamento que os obrigava a viver para trabalhar na dura lida tão rica e
belamente narrada pelo magistral Arthur Engrácio, pelo exímio Ferreira de
Castro.
Mas
a diferença, contudo, entre ambos, residia nos percursos: os vapores, que
ostentavam o poderio de seus proprietários, faziam as grandes linhas, ligando
as capitais (Manaus, Belém, Rio Branco) aos seringais e fazendas, ao passo em
que os batelões seguiam adiante, enfrentando praias, restingas, paus, e toda
sorte de desafios que apenas aqueles que já se dedicaram a viajar sozinhos numa
pequena embarcação rio acima saberão do que se trata aqui.
O
fato que nos interessa aqui é que, com a configuração de um sólido mercado
capaz de absorver a borracha escoada pelos vapores e pelos batelões, acabou por
agitar-se as vias fluviais, e permitir-se a diversos armadores independentes
estruturar embarcações em madeira, perfeitamente elegantes e adequadas ao
contexto naval e cultural local, e cujo feitio impressiona pelo equilíbrio das
formas, pelo esmero na confecção e pela navegabilidade ligeira e vacilante, mas
segura e serena.
O
aumento no tráfego de correspondência e produtos engendrou uma expansão no
mercado de navegação fluvial, já que para além dos seringais, comunidades
começaram a se configurar como vilas, ao
passo em que em alguns pontos, onde soliloqüentes casas de madeira flutuantes
ou sobre palafitas começaram a se “conurbar”, para atender ao aumento no número
de seus moradores.
Para
atender à esta demanda, construía-se estas embarcações de feitio extremamente
elegante, compostas geralmente por dois conveses, e, no caso das mais
portentosas, três conveses e uma tolda que fazia as vezes de área de lazer, da
ainda existente “primeira classe”: trata-se das Gaiolas.
Concomitantemente
ao aumento da demanda de embarcações para escoar a produção, comunicar as
comunidades e vilas e levar passageiros que até pouco tempo simplesmente não
existiam, tomou a Amazônia uma cultura inédita até então, fruto das interações
históricas entre diversas (e variadíssimas) etnias indígenas com
ex-seringueiros (fugidos ou “alforriados” do aviamento), adaptando-se estilos
de manejo simbólico, cultural, religioso, lingüístico e concreto do mundo, num
constante fluxo de trocas e co-criações coletivas – mas isoladas, distantes, o
que garantiu seus feitios tão diversos.
Se o
mundo do seringal era, para o indígena cooptado ou para o migrante ludibriado (que
inicia sua pesada lide devendo, um mundo de trabalho pesado e isolamento e
solidão), com o boom da borracha e a
conseqüente queda de valor do produto fizeram com que houvesse uma dispersão
demográfica sem precedentes na região: e as embarcações independentes que
faziam o tráfego de produtos, correspondência e passageiros (até então inéditos,
como se disse) perdem paulatinamente o nome de Gaiolas (denominação devida ao
elegante gradeamento de madeira cujo feitio varia em função da região, da calha
navegada e à associação entre navegação e aviamento, semi-escravidão, na mentalidade
do seringal) e ganham, no Amazonas, o nome de Recreios.
Por
se tratar de longas distâncias a serem navegadas, os passageiros que esperavam
reencontrar entes queridos ou oportunidades de trabalho em cidades e vilas
distantes, bem como deixá-las ou retornar a elas, viam-se obrigados a largar os
afazeres diários (sempre muitos, fosse no seringal ou na serena vida
independente do ribeirinho) e deitar-se na rede, aguardando dias ou até semanas
a bordo, rio acima, ou abaixo, até encontrar seu destino. O que nos leva a
pensar, à rede que balança carinhosamente a cada banzeiro, que talvez, e muito
provavelmente, o destino seja justamente o viajar, navegar sendo tão preciso,
tão agradável e seguro, a bordo de um Recreio, a jogar cartas, dominó, prosear
ou simplesmente dormir e descansar, que viver não é preciso.
Ao
passar dias a bordo, conhecendo meninas bonitas ou homens interessantes, e
muitas vezes casando-se ou namorando com eles por longos anos, os passageiros
vivem a terceira margem do Rio: consagrando seu fluir existencial, que se dá em
função da água que comunica e toca a tudo e todos, eles se deixam estar, recreando,
dedicando-se a diversas formas de entretenimento e lazer (o que dá força ao
nome amazonense para as antigas gaiolas, que no Amapá e no Pará são
denominadas, hodiernamente, apenas de navios).
Constituindo,
assim, verdadeiras ilhas de sociedade (e sociabilidade), de Cultura, que se
movem elegantemente em meio à Natureza, singrando elegantemente os mais
comoventes veios amazônicos, os Recreios prestam às cidades, vilas, e
comunidades, o mesmo serviço que lhes prestavam os antigos vapores e batelões
de marreteiros: comunicam, trocam, equalizam informações, paixões e desilusões
epistolares, escoam a produção de aqui para ali, de cá para acolá. O Recreio
que corta o ignoto mundo amazônico nas noites estreladas é uma ilha de luz que
baila sobre as águas, em festa, deixando a tolda ou a popa do convés superior
ao arrastapé, ao forró, à “bagunça”: havia antigamente trios que jogavam ao
vento notas musicais de forró tradicional; atualmente há imensas caixas de som
que executam em alto e bom som o mais agitado e recente forró, o mais popular
techno-brega, o mais acelerado melody, ao passo em que o conhaque, a cachaça, a
cerveja e os ensopados de músculo ou tracajá, deliciosos e apimentados, matam a
fome.
Nesta
imensa trama de relações aquáticas, transpondo calhas, ligando mundos (se
queres ver algo de universal, volta os olhos para tua aldeia, já dizia Guimarães
Rosa), os Recreios cruzam histórias, fundem trajetórias pessoais, ensejam
casamentos, namoros, ataques do matreiro boto, negócios, e levam aos mais
distantes (embora tudo seja uma questão de perspectiva) locais os fios da
sociedade, qual uma Penélope que, delicada mas decidida, enciúma-se por fim do
Teseu que deixou-a para ir ao seringal em cujos meandros reina o Minotauro do
capital extrativista de acumulação (essa sim a única primitiva e selvagem) e
decide navegar, ela mesma, em festa, noite adentro, percorrendo os traçados que
Ariadne espalhou no labirinto dos rios.