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terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Resíduos e Resquícios - A vida que poderia estar sendo mas não está

Originalmente publicado na Revista Piseagrama, edição 05, "Descarte"
http://piseagrama.org/artigo/1135/residuos-e-resquicios-rio-amazonas/

Resíduos e resquícios
Bruno Walter Caporrino[1]

Sobre as águas. Assim, simplesmente. Nunca contra as águas, e nem mesmo a favor delas, porque com elas, nelas. É assim que se constroem as vilas e comunidades que se espraiam pelas restingas, furos, voltas, paranás, lagos e rios da bacia amazônica: sobre as águas, em função das águas, ao ponto de ser possível dizer que a vida das populações ribeirinhas se define conscientemente em sua relação com o universo água que contamina, liga e afeta tudo na Amazônia.


Muitos pensam, até hoje, que o universo amazônida é pautado pela escassez, enquadrando as imagens das casas ribeirinhas, seus jiraus e pontes em uma moldura significacional e simbólica que cai por terra (ou melhor, vai por água abaixo) quando confrontada com a realidade múltipla e vária que esse jeito de viver, estar e pensar o meio apresenta através das vilas, casas e embarcações.
A história da ocupação da Amazônia é prenhe de provas de que o modelo urbano que emerge dos feudos europeus trazendo consigo valores e modos de produção pautados pela sedentarização, centralização e domesticação – e, portanto, dominação ­– de uma natureza entendida como matéria inerte e inanimada é, apenas, como todo modelo, um dentre muitos possíveis. Mostra também que os retirantes nordestinos que deixaram a seca para sobreviver num universo pautado pela água em seu grau máximo são os mais hábeis artífices do que nos define como homens: a capacidade de lidarmos com as gentes e com a matéria do mundo de um modo dialético que nos permita adaptá-los a nossas tramas conceituais sem contudo moldá-los ou retalhá-los às nossas.
A ruptura ocidental entre Natureza e Cultura, esse par cartesiano que é o mito fundador de nossa cosmologia, faz pouco sentido na mente dos valentes exilados da seca que, obrigados a conviver com tantos Outros (gentes tão diversas, bichos que são gente, ou seja, animais que são animados e, portanto, agentes), de modo que aprenderam com os indígenas a entendê-los sob outras modalidades de relação pautadas por sua vez pela ideia de que todo ser vivo é dotado de alma (é animado) e que alma é exatamente a capacidade de entender, apreender, perceber, interagir e, sobretudo, agir.



Isso se revela de forma concreta e tangível no modo como essas pessoas constroem suas casas, produzem sua comida, plantam suas roças, extraem seu açaí, cobrem suas casas com palha de ovi ou buçu. Disso decorre que a vida ribeirinha não é uma vida “às margens”: eles não estão às margens do “progresso” e da “civilização” simplesmente porque são uma civilização em função de suas interações com todas as outras civilizações com as quais com-vivem. Seu viver não é nem uma luta árdua contra, nem uma ode bucólica à “natureza”, simplesmente porque essa não existe: tudo, na vida ameríndia, cabocla e amazônida, é cultura.
O caso das áreas de ressaca na cidade de Macapá é uma metáfora real e concreta de como o encontro entre cosmologias e, portanto, modos de produção e entendimento da vida é o real mote da história humana da Amazônia, ao demonstrar como jeitos de ocupar o espaço, produzir e descartar a vida podem ser diversos e que não há um modo universal melhor do que os outros, se pensamos em adaptação e não em evolução, quando almejamos nos desenvolver como sociedade.
Trazendo consigo a modalidade de relação com o rio e com o universo amazônico, os ribeirinhos e caboclos que foram atraídos para Macapá a partir da década de 1950 passaram a exercer ali suas maneiras de viver e pensar ao habitar os rios, lagos e áreas alagáveis conhecidas como ressacas, construindo casas sobre jiraus (palafitas). Mas a vida às voltas com uma cidade pensada e realizada de acordo com valores e modalidades de entendimento urbanos ocidentais, que encontra no burgo seu arquétipo e nas metrópoles a sua obra-prima, exigiu que essas populações adaptassem uma vez mais seu modo de vida já tradicional com plasticidade tal que o resultado é uma incrível interação entre modalidades de relação aparentemente opostas.
As áreas do território de Macapá regidas pelo regime das marés do Amazonas são áreas baixas por onde o rio adentra a cidade, como numa metáfora sorrateira do modo como a Amazônia sempre se ri da tendência ocidental de dominar e domesticar isso que seria a Natureza. Aos caboclos coube, portanto, a astúcia de adaptar seus modos de pensar-se e lidar com o espaço edificando, em madeira, verdadeiras vilas ribeirinhas sobre jiraus nas quais o rio e o córrego são a rua, e as palafitas se estendem ligando casas e formando praças sem qualquer planejamento que não o individual, num exercício pleno e autônomo de cidadania que consiste em deixar que a cidade se faça a si mesma através das mãos e engenho dos próprios cidadãos.

Assim, em áreas como Congós, grandes extensões do Aturiá, do Igarapé das Pedrinhas e do Canal do Jandiá, populações ribeirinhas construíram verdadeiras polis onde interagem homens e onde estes interagem com o rio, suas marés e vontades de forma dialógica e vária, transpondo para o âmbito urbano modos ímpares de entender o espaço, o tempo, a vida e seu fabrico. Repletas de “pontes”, essas áreas são ocupadas por casas ribeirinhas ligadas e muitas vezes assistidas por um igarapé, canal ou baixio alagável (a ressaca) que permite que os barcos e canoas substituam os carros e motos, que são a realização máxima do modelo urbano ocidental.
Todavia, àqueles que pensam que as áreas de ressaca são um problema (como o Estado, esse leviatã estatístico e homogeneizante), as comunidades das ressacas constituem desafio por serem justamente uma provocativa solução. Longe de serem invasões, como se alega cotidianamente, são modos de entender o espaço a todo momento invadidos pelo modelo urbanístico caótico pautado pela expansão desenfreada, orquestrada pela “mão invisível” de concreto e alvenaria, pela ignorância completa das necessidades e sobretudo potencialidades do meio no qual se inserem e com o qual lidam.
Em vez de invadir, essas comunidades estão sendo invadidas, cercadas pela especulação imobiliária e por projetos do Estado que, não sendo voltados a beneficiar o cidadão mas sim o Capital, ignoram completamente os modos de vida e organização das pessoas que, morando nas ressacas, provam ao mundo inteiro que é possível com-viver com o rio, estar com ele em constante diálogo e interação.
Diante da incapacidade do Estado de ouvir e entender, as comunidades remanescentes das áreas de ressaca são cercadas por avenidas barulhentas e assoladas pelos problemas decorrentes da aglomeração urbana para os quais seus moradores ainda não conseguiram encontrar soluções mas que, dada a plasticidade de suas visões de mundo, poderiam conseguir, se o Estado não os disciplinasse a entender-se a si mesmas como um problema ambiental e, sobretudo, um problema legal e social.
Ao preconceito dos moradores de Macapá que enxergam as comunidades de ressacas como resquícios do atraso e da primitividade contra a qual a cidade copiada dos modelos fracassados da urbanização ocidental seriam erigidos como um monumento, assoma-se a falta de iniciativas do Estado e, por fim, a grave falta de auto-estima dos moradores que passam a se entender a si mesmos como invasores, atrasados, favelados, marginais. Por conta disso, o modelo de apropriação do espaço coletivo, pautado nas comunidades ribeirinhas pela interação com o meio e articulado pelo debate entre os seus entes constituintes, é isolado e minado.
A tradicional modalidade de relação com o que deve ser descartado, com aquilo que não se deseja mais, típica das sociedades ameríndias, passa de solução a problema: nas comunidades indígenas tradicionais, tudo o que se produzia, produzia-se para si com aquilo que era simplesmente extraído ou dado pelo meio. Lembremos os artefatos produzidos com tecnologia compartilhada por todos os membros dessa sociedade: a vida é, nesse sistema, produzida por si mesma, para si mesma, sem intermediários como o dinheiro (equivalente universal) ou o patrão, num compartilhamento pleno de saberes e técnicas. Todos sabem fazer tudo o que precisam. Os produtos extraídos meio, tais como peneiras, abanos, cestos, casas e barcos eram facilmente deglutidos pelo próprio meio, bastando jogá-los ao rio assim que não fossem mais ser utilizados.
Uma vez que bastava jogar ao rio um produto inutilizado e pronto, é comum visitar comunidades ribeirinhas e ver as pessoas descartando toda sorte de coisas de suas embarcações e casas assim que a maré sobe. Nas comunidades de Afuá, Gurupá, no Bailique, é comum encontrar praias onde o rio acumula toda sorte de artefatos, como matapis (estrutura de palha trançada em formato cilíndrico para aprisionar camarões), esteiras, cestos, tábuas serradas. As crianças se divertem nesses ambientes em um exercício arqueológico muitas vezes engraçado, a gritar “olha! A panela da Velha Pobre”, apontando para uma cuia quebrada, e fazendo referência à Serra da Velha Pobre, próxima a Almeirim, sobre a qual costuma-se dizer que costumava errar pelas vilas e comunidades catando toda sorte de artefatos para re-criá-los e, assim, dar-lhes novo significado e existência.
Não é de lixo que se trata, mas de objetos descartados que, ao deixarem de ganhar significação e uso para os homens, passam a perder seu encantamento, e tornam a ser palha, fibra, madeira. O hábito de deitar ao rio toda sorte de resíduos orgânicos tem origem nessa mesma modalidade de relação, e, como é comum dizer-se, atrai os peixes para mais perto do jirau, de modo que a belíssima compreensão de Lavoisier realiza-se nesses contextos como em nenhum outro: nada, absolutamente nada, se perde. Tudo se recria. Basta, portanto, extrair, transformar, e, depois, descartar.
Mas, tal como o modo de produção da vida ocidental influenciou a ocupação do espaço, a condução e equação da vida econômica e simbólica, ele também proporcionou mudanças bruscas no modo como se produz, utiliza e descarta utensílios. Longe de poder simplesmente jogar pela janela o material confeccionado para usufruto próprio com a matéria do próprio meio, devolvendo-o a ele, agora, com cada vez mais produtos manufaturados introduzidos na vida ribeirinha, agora as pessoas se veem obrigadas a acumular dentro de suas casas toda sorte de material que antes bastava descartar.
“Fazer o quê não é? Essas coisas são todas duras. Duram muito mais, mesmo quebradas. A gente joga do catrario, do navio, do iate, porque não tem condições de levar com a gente a bordo. Veja o senhor: esses cestos todos que a gente usa para carregar o caroço do açaí. Eles se acabando, vão tudo para dentro do rio, mas é palha, se acaba na hora. Essas coisas de plástico, essa lixarada toda aí de cidade, isso o povo tem que aprender ainda a usar”, diz Seu Inácio, que vem semanalmente à Macapá à bordo de sua lancha vender o açaí que retira de sua comunidade, no rumo da baía de Afuá. No caso, Seu Inácio se refere ao azafamado porto do Igarapé das Mulheres, onde encostam embarcações de pequeno e médio porte que ligam a metrópole às vilas e comunidades e onde esse choque de modelos se revela no acúmulo de lixo no leito do pequenino estuário.





Quando objetos diferentes, que materializam diferentes modos de produção da vida, de divisão do trabalho, e de relação com a matéria do mundo, encontram-se com esse jeito de viver e com esse comércio do tempo e do espaço, o lixo passa a ser, então, um dos problemas mais imediatos postulados pelo processo de acumulação das pessoas nas áreas de ressaca e no entorno dos baixios e igarapés.

Devemos lembrar, entretanto, que essas comunidades são na verdade vítimas em vez de algozes: pululam iniciativas das próprias comunidades para coleta e tratamento de seus resíduos sem apoio algum do Estado. Muitos se organizam em mutirões semanais, detectando os canais por onde entra mais o lixo e os vedando com telas e grades. “Aqui no Jesus de Nazaré, a gente se organiza sem se reunir. Sozinhas as pessoas sabem que têm que levar o lixo lá para a rua de acesso à ponte. É muito comum os vizinhos juntarem o lixo aos domingos, ouvindo um som, assando um peixe (risos). É uma questão de educação, não precisa reunir. Cada qual sabe seu fazer. Mas o lixo que fica aqui não é a gente que joga não, por isso que eu falo: ele vem todo com o vento, no verão, e com as enxurradas, no inverno”, diz dona Nazaré, moradora da área desde que começou a ser ocupada, há mais de 40 anos, em depoimento colhido num ensolarado domingo em que, recolhendo as garrrafas PET e sacolas plásticas que flutuavam defronte e debaixo de sua casa, ela e a vizinha abateram uma moreia cuja gordura usariam para fazer pomadas.
“Aqui no Perpétuo Socorro, a gente se criamos desde meninas. Meu pai pescava, e meu avô era carpinteiro naval. Tudo aqui era bairro de pescador. Não era essa sujeirada toda não. Antes, tinha era mato. Aparecia até cobra dentro de casa. Tem o caso do Anísio porre, que dormiu no jirau e acordou abraçado com sucuriju. As pessoas ouviram-no murmurar palavras de amor, e foram espiar, de gaiatice, porque ele era viúvo há muitos anos. O susto foi grande quando viram a bicha toda enrolada nele. Tinha bicho, tinha tudo, só não tinha era sujeira. Meu avô criou tracajá e jacaré na porta de casa até bem pouco antes de morrer. Não tinha prefeitura, nada. Mas cada qual cuidava do seu pedaço. Hoje isso aqui parece que inchou, tem gente um em cima do outro, é barulho, é briga, é lixo. Antes não era assim não”, enfatiza Dona Nita, simpática moradora do Perpétuo Socorro que prega o evangelho todos os domingos na penitenciária estadual e faz parto nas comunidades do entorno de Macapá.

Vemos assim que grande parte do lixo que flutua nas áreas de ressaca vem não dos moradores dessas áreas mas das ruas, córregos, galerias fluviais e lixeiras da cidade seca que as envolve. O vento e as chuvas arrastam para os canais e igarapés toda sorte de lixo que vem do asfalto, sendo um problema tanto ambiental quanto social porque as comunidades se veem obrigadas a conviver com os detritos sob suas casas. Para além das doenças e do desconforto provocados pelo acúmulo de lixo, as comunidades que criam tracajás e peixes no quintal de casa sob as pontes sofrem o preconceito vindo daqueles que justamente sujam suas áreas e os taxam de marginais sem higiene e boas condições de vida.
O caso do lixo nas áreas de ressaca de Macapá demonstra com clareza que as gentes e coisas interagem de forma ativa e que modelos de ocupação do espaço podem com-viver entre si, conquanto haja vontade política dos cidadãos para entender que as áreas de ressaca não são um problema, mas sim uma solução, e que os moradores têm respostas concretas a dar sobre o problema. “Teve um monte de estudante aí que veio aqui, de uma faculdade, querer ensinar a gente a cuidar do nosso lixo. Tinha que ver, as meninas, tudo de salto alto prendendo nas pontes, falando que a gente suja tudo, que querem nos ajudar a recuperar os impactos ambientais de morar aqui. A gente não é bicho não, isso aqui não é zoológico: a gente cuida do nosso lixo, o asfalto é que não cuida do dele, e a gente que paga o pato”, diz Seu Walmir, carpinteiro naval em Santana.



O lixo que assola essas comunidades é um exemplo concreto do modo como a cidade ocidental e o modo de produção da vida que se elogia como monumento é cego, surdo e falido.
Talvez seja possível dizer que, sob essa ótica, lixo é o jeito como produzimos a vida nas modernas sociedades industriais urbanas, pois o lixo não é outra coisa além do que nós mesmos nos esforçamos para fabricar com empenho, engenho e técnica, e que depois descartamos. Nesse sentido, desenvolvimento consistiria justamente em produzir a vida e não o lixo, descartando aquilo que pudesse ser transformado sem se perder, ou reutilizando aquilo que nós produzimos de modo tal que o meio não consegue absorver.
Se pensarmos nisso sob a ótica do desenvolvimento, não haverá dúvidas de que o jeito ribeirinho, indígena, e caboclo, de produzir a vida e descartar produtos é mais eficiente, e tecnologicamente desenvolvido. Mas os produtos inorgânicos não serão abandonados: será necessário, então, fortalecer a organização local das pessoas, valorizar as boas práticas que já existem, e, sobretudo, mudar o que não são hábitos, mas aspectos de uma visão de mundo diferente.



[1] Bruno Walter Caporrino é antropólogo de formação e  indigenista por profissão junto ao povo indígena Wajãpi, no Amapá, pelo Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, Iepé.